
Desde criança, Gabriele queria saber o que tinha do outro lado do mar. Como nenhuma resposta foi capaz de convencê-la, foi descobrir sozinha: em 2013, fez as malas e atravessou o oceano para uma temporada em Sevilha, no Sul da Espanha. “A experiência foi um divisor de águas e me deixou “Entre dos águas”, como o nome da canção flamenca famosa, sobretudo porque entrei em contato com uma nova possibilidade de vida ao observar as mulheres de lá. As espanholas ocupam as ruas como ninguém, caminham muito seguras de si e têm uma presença de espírito incontornável. Inspiram-me nisso e na frontalidade com que expressam os seus desejos, sem pedir licença”, falou Gabriele durante a nossa conversa para esta edição do Mulheres e a Cidade.
A passagem por Sevilha foi o começo de uma mudança completa de vida. Hoje morando no Porto, em Portugal, a jornalista começou a atuar também como travel designer, um tipo de planejadora exclusiva que ajuda a tirar o melhor das viagens, sobretudo para quem não tem tanto tempo para se organizar. O trabalho começou a partir das experiências pessoais de Gabi como flâneuse – e que ela conta em textos recheados de referências e beleza, publicados na newsletter “Bom Proveito”.
Nesse papo delicioso que tivemos, Gabi falou sobre vida estrangeira, desconfortos nas travessias, bagagens preciosas e como é ser uma mulher latino-americana que não cansa de explorar o mundo.

Larissa Saram: Como era a sua vida antes de sair do Brasil?
Gabriele Duarte: Sou de uma cidade pequena no litoral de Santa Catarina e, antes de atravessar o Atlântico, vivi por quase uma década em Florianópolis. Fui para estudar na universidade federal e acabei ficando. Nos últimos anos por lá, tive o privilégio de viver junto à praia, mas infelizmente nem sempre me sentia segura para ir sozinha. Isso porque havia casos de violência contra mulheres desacompanhadas que atravessavam um trecho de mata e de dunas para chegar ao mar. As questões de gênero, aliás, eram o meu foco enquanto repórter em um jornal estadual. Então, a minha rotina era bastante consumida pela redação, inclusive com plantões de fim de semana. A facilidade no contato com a natureza era o que me permitia descansar. Como o acesso à cultura era mais restrito em razão de a cidade estar fora do circuito nacional, principalmente à época, eu era uma flâneuse de praia. Uma coisa assim meio Agnès Varda wanna be [risos].
“Os lugares têm o potencial de nos transformar,
se houver entrega da nossa parte”
LS: E quando começou a nascer a vontade de mudar de país?
GD: Na Espanha, quando fui fazer um intercâmbio universitário, em 2013, junto com uma nova versão minha, porque os lugares têm o potencial de nos transformar, se houver entrega da nossa parte. Voltei ao Brasil fazendo planos de regressar à Europa. Queria viver de uma forma parecida com aquela que vivi em Sevilha, inclusive com a possibilidade de viajar ao redor como fiz durante o intercâmbio, mas por mais tempo, para criar raízes. Não consegui de imediato, aliás não consegui nem ir para São Paulo, que era uma vontade que tinha e hoje vejo que já não tem nada a ver comigo. Então me aquietei em Floripa e conheci o meu companheiro, que também já tinha planos de viver fora, com quem passei a dividir a angústia de não pertencer. Soube que era o momento certo em 2018, quando fui demitida do jornal. Foi um processo doloroso, uma decepção que me despertou uma urgência de ir embora. Também me obrigou a repensar quem eu era para além do crachá, então quis recomeçar em outro lugar. Depois, descobri que seria duas vezes mais difícil, e ainda teve uma pandemia no meio, mas cá estou.
LS: Hoje você vive em Portugal, no Porto. Como foi a escolha de viver aí?
GD: Era para ser Lisboa, mas acabei fazendo porto no Porto, ao norte de Portugal. Percebi que na capital as coisas seriam um bocadinho mais difíceis. Estava no auge da moda vir para cá: tanto a passeio, quanto para morar. Então optamos pela segunda maior cidade do país, que embora não fosse tão internacional naquela altura, ainda conjugava o que buscamos: mobilidade com o restante da Europa, mercado de trabalho aquecido, acesso à cultura e lazer, tranquilidade e proximidade do mar. A lusofonia também foi um dos principais critérios de escolha, porque sou uma amante desta língua que se desdobra de tantas maneiras. Eu só não sabia que haveria tanto preconceito linguístico em torno das variantes, algo que está melhorando, principalmente com a vinda de mais imigrantes de todos os lados, mas que ainda incomoda. Junto de um olhar que ainda é colonizador, nomeadamente para o corpo da mulher que vem de uma ex-colônia.

LS: A sua newsletter “Bom Proveito” tem, principalmente, dicas e relatos de viagens que você faz – e são sempre destinos pouco óbvios. Como planeja essas viagens?
GD: As pessoas me perguntam com frequência como encontro os lugares que visito, porque se admiram com a beleza ou com a não obviedade daquilo que eventualmente compartilho pelo Instagram ou pela newsletter. A verdade é que eu pesquiso bastante, talvez em meios não convencionais. Eu nunca usei Tik Tok, então não sei bem o que viraliza em termos de viagem e tampouco quero saber. É claro que eu sigo pessoas com as quais me identifico na forma de viajar e descubro muitas coisas a partir do que elas compartilham. Mas eu também compro revistas, assisto filmes, principalmente os mais antigos, vou ao teatro, participo de clubes de leitura, ouço músicas em conjunto, assino newsletters especializadas e procuro beber da fonte de quem vive naquele local que quero conhecer. Além de construir repertório, isso tudo está muito junto de um investimento em autoconhecimento, no meu caso potencializado pela imigração, que me permite escolher destinos ou experiências em consonância com os meus desejos ou com o que desperta a minha curiosidade. Acredito mesmo que quem se conhece bem também viaja melhor, porque sabe o que busca. Indo além, as estações do ano bem demarcadas também guiam muito as escolhas de destinos, mas quase sempre no contrafluxo do turismo de massa: Escandinávia no verão, por exemplo.
“Por mais que viaje quase sempre com um roteiro, não abro mão de deixar espaço para a espontaneidade, o que quer dizer que vou me permitir perambular sem rumo e, com sorte, ser surpreendida. É no acaso que a mágica pode acontecer”
LS: Tem algum ritual toda vez que chega a um novo lugar? O que gosta de fazer primeiro?
GD: Não sei se é bem um ritual, mas gosto de sair para tomar um café no mercado público. Vejo esses espaços como o coração das cidades, onde a vida acontece, e é naquele epicentro que gosto de começar a observar a dinâmica do local. Outra coisa que sempre procuro é por um free walking tour, porque dá uma perspectiva ampla sobre a cidade, permitindo depois aprofundar no que quero desbravar mais, pegar dicas e ainda conhecer pessoas. Também sempre entro em alguma livraria, melhor ainda se for especializada em escritos de mulheres. Por mais que viaje quase sempre com um roteiro, não abro mão de deixar espaço para a espontaneidade, o que quer dizer que vou me permitir perambular sem rumo e, com sorte, ser surpreendida. É no acaso que a mágica pode acontecer. E para dar mais materialidade ao que é vivido, como aprendi com a escritora francesa Annie Ernaux, registro as minhas impressões em um caderninho ou em uma nota no celular.

LS: Como uma mulher que passa por várias cidades diferentes, quais são as sensações ao explorar um lugar novo e que te movem a querer continuar descobrindo o mundo?
GD: É exatamente o novo que me move. O não-saber, que está junto do prazer da descoberta: de um sabor, de uma cultura ou de uma paisagem que está do outro lado da margem. Além de uma arte, como sugeriu Alain de Botton, viajar é uma forma de conhecimento. Cada lugar que conheço expande o meu mundo interior. Sinto que passo a perceber mais de mim, dos outros e do mundo ao passo que viajo. Mas também acumulo ainda mais questionamentos, o que é saudável, por isso continuo. E tento levar comigo um pouco do que vi ali, por isso estou sempre de olho no que as pessoas, sobretudo as mulheres, estão lendo, vestindo, conversando, bebendo, comendo e por aí vai. Pego para mim o que faz sentido e sigo o meu caminho.
LS: Ser mulher em espaço público é estar constantemente vulnerável, não importa o país. Como você lida com isso? Tem estratégias?
GD: Sim, há lugares mais seguros que outros, mas ainda assim é preciso estar sempre atenta. Manter o radar ligado o tempo todo é bem cansativo. Não por acaso tantas mulheres vestiam-se de homem para perambular, como a George Sand e a Isabelle Eberhardt, esta última retratada em profundidade no livro da historiadora brasileira Paula Carvalho. Mas o mais assustador é que, por vezes, nem mesmo a companhia de um homem é capaz de intimidar a violência que pode ser cometida por outro homem contra uma mulher. Quanto às estratégias, mantenho os contatos de emergência atualizados e facilmente acionáveis, compartilho localização em tempo real com pessoas de confiança em momentos mais vulneráveis e só peço informação para outras mulheres. De toda a forma, me sinto mais segura aqui do que no Brasil. Não me esqueço da liberdade que senti a primeira vez que saí para tomar um copo com uma amiga e voltei para casa bem tarde da noite, de metrô, sem sentir medo. Deu até vontade de cantarolar Nina Simone.

LS: Onde moram os desconfortos em uma viagem e como você faz para driblá-los?
GD: Ainda que possa haver uma perspectiva hedonista, viajar é por si só desconfortável. Em geral, parte-se de um desconforto, de uma falta ou de uma busca. E também porque deixamos o que é familiar em direção ao desconhecido, ainda que momentaneamente. Por mais que haja planejamento, perrengues acontecem e é preciso jogo de cintura para resolvê-los ou bom humor para abraçar o caos. Tento fazer o básico bem feito: aprendo as principais palavras no idioma local, baixo o tradutor e o mapa offline, salvo todas as reservas em uma pasta no celular, levo uma garrafa de água para ir abastecendo e viajo com uma necessaire com remédios que podem ser úteis, além de sempre ter um seguro de viagem. Junto da pochete com documentos e cartões, uso uma mochila ou no máximo uma mala de mão com a intenção de me locomover facilmente. Quem vai ao mar se prepara em terra, mas vez ou outra acontecem uns enjoos, sim [risos]
“E o que é viajar se não olhar? Olho com o que sou: uma mulher latino-americana que carrega uma terra mágica no corpo e que todos os dias resiste a acostumar-se com o que sonhou viver. Que não quer perder o olhar estrangeiro, por mais que o tempo passe”
LS: Há muita poesia nos conteúdos que você publica, tanto na newsletter como nas fotos do seu Instagram. Como enxergar recortes de beleza pelas cidades? Como exercita esse olhar?
GD: Me alegro quando outras pessoas também enxergam a beleza que gosto de retratar. O nosso olhar é o que somos, a bagagem que carregamos e o que temos de mais precioso. E o que é viajar se não olhar? Olho com o que sou: uma mulher latino-americana que carrega uma terra mágica no corpo e que todos os dias resiste a acostumar-se com o que sonhou viver. Que não quer perder o olhar estrangeiro, por mais que o tempo passe. Cultivo a minha mirada no próprio ato de viajar, que é a minha fonte de inspiração assim como foi e é para tantas outras pessoas. Viajar ao Brasil, o meu local de partida, é como ajustar o foco. Mas também exercito o olhar no dia a dia, nesta beleza menos óbvia do cotidiano, porque nem sempre é possível estar viajando, pelo menos não fisicamente. O ordinário pode revelar-se tão ou mais belo quanto o extraordinário, mas para vê-lo é preciso adotar uma postura de interesse e curiosidade, além de um estado de presença. Por isso, tenho passado alguns períodos sem redes sociais, inclusive em viagens. Quase nunca publico e muito menos fico fazendo scrolling quando estou viajando, porque sinto que preciso estar ali por inteiro para conseguir enxergar os lugares também na sua totalidade. Ainda que isso seja uma ilusão, porque nunca conseguimos ver tudo e é preciso aceitar isso para ver melhor, inclusive. Uma coisa que me aterra bastante é ler poesia de manhã e, em Portugal, estou bem servida neste gênero. Quando me mudei, a primeira pessoa que conheci foi uma poeta portuguesa recém retornada de Berlim, a Francisca Camelo, que me apresentou o Porto em um walking tour antes de ser finalista do Oceanos. De outra geração, a Sophia de Mello Breyner Andresen também me guia, principalmente porque tem na linha do mar a sua inspiração.

LS: Além do olhar, os outros sentidos acabam ficando mais ligados em ambientes que são novidades. Para você, ser uma flâneuse é sempre estar atenta a tudo ao redor?
GD: Também, e acho que a capa do livro da Lauren Elkin, com a foto da Ruth Orkin de uma mulher caminhando apesar dos olhares masculinos, evidencia bem isso. Mas, para mim, ser flâneuse também é permitir errância para o olhar, não só para os pés. E não tem como fazer isso em um estado de vigilância permanente. Sinto que é preciso entrar no fluxo da caminhada, quase como integrando-se àquela paisagem, mesmo que isso implique em ser vista pelo outro. Aliás, eu adoro observar outras mulheres caminhando ou simplesmente ocupando o espaço público. Sou lembrada de que elas também tiveram que afugentar o “anjo da casa” para estarem ali, como descreveu Virginia Woolf, a flâneuse londrina. Carregamos uma cumplicidade no olhar que é bastante encorajadora. Sempre estivemos flanando por aí, mesmo que a historiografia das cidades insista em nos apagar e que o imaginário social diga que é perigoso sairmos de casa. Evidente que a experiência feminina de caminhar pelas ruas difere da masculina: flâneuse não é o feminino de flâneur, é muito mais, simplesmente porque há mais em jogo. Basta sair à rua caminhando e prestando atenção.
LS: Já tem alguma viagem planejada para este 2025?
GD: Acabei de voltar de Bordeaux, na França, uma cidade feita à medida para caminhar ou pedalar sem rumo, só observando as belezas ao redor entre uma taça de vinho e outra. Como o corpo já vai dando sinais de cansaço do inverno, tenho planos de relaxar os músculos em alguma terma romana. Há várias por aqui, mas ando de olho especificamente em uns balneários na região da Extremadura, na Espanha, que é bem pouco conhecida. Na primavera, se tudo der certo, vou realizar o sonho de visitar a Grécia. Estou quebrando a cabeça para escolher uma entre mais de mil ilhas para conhecer.