Lifestyle

entrevista com Karina Barretto

“Negócios locais têm um papel poderoso na preservação da memória da cidade”

Sócia do Futuro Refeitório, em São Paulo, fala sobre como o restaurante se tornou ponto de partida para discutir transformações e imaginar rumos mais afetuosos para a cidade. Por Larissa Saram

Karina Barretto é sócia proprietária do Futuro Refeitório | Crédito: Erika Mayumi

Quando a chef Gabriela Barretto apresentou para a irmã, Karina, o lugar que havia encontrado para abrirem um café juntas, ouviu de imediato: “Você está louca! Isso aqui é enorme, impossível. Cadê o plano do pequeno negócio?”. Não era uma reação exagerada, já que para a ideia de inaugurar uma cafeteria simples, com croissants no cardápio, fácil de reproduzir, um galpão de mais de 850m² parecia mesmo um delírio.

Isso foi em 2017. Na época, o imóvel abrigava um estacionamento. Antes, foi uma fábrica de esculturas, a Bronzes Artísticos Rebellato, que funcionava ali desde os anos 1930. Para muita gente, aquele era só um galpão em ruínas, com sobras de estátuas. Para Gabriela, foi amor à primeira vista, como ela conta neste documentário.

Passados os primeiros ecos de absurdo que acompanharam o anúncio daquela proposta, Karina se deixou levar pelo encantamento da irmã e foi conquistada pela grandeza daquilo tudo também. E foi justamente o excesso de espaço que fez do Futuro Refeitório, um lugar aconchegante para fazer refeições e encontrar gente, localizado em Pinheiros, região oeste de São Paulo, o que ele é hoje. “O prédio não só nos desafiou como também nos deu margem para imaginar uma experiência mais ampla, mais generosa, mais urbana”, conta ela que, além de gestora e sócia-proprietária do restaurante, é também curadora de cafés especiais.

O convite para conversar com Karina para esta edição do Mulheres e a Cidade fazia todo o sentido já que, além de ser uma cuidadosa guardiã da história do imóvel em que o Futuro Refeitório está instalado, ela se dedica a pautar no Instagram e no podcast “Conversas no Futuro” papos sobre a relação entre as pessoas e o espaço público e a importância de cultivar encontros significativos. Tudo que a gente sonha para a nossa cidade! 

Karina (à direita) e a irmã Gabriela, na entrada do Futuro Refeitório | Crédito: Gui Galembeck

Larissa Saram: O nome é “Futuro Refeitório” e ao mesmo tempo ele fala tanto de memória. Como o conceito de memória e cidade entra na construção da experiência no restaurante?
Karina Barretto: 
O nome “Futuro Refeitório” aponta para frente, mas ele parte do passado. A ideia de futuro, pra gente, não é uma negação do que foi, é uma continuação, uma reinvenção. A memória entra na experiência do restaurante como um ingrediente essencial. Ela está na comida que resgata afetos, nas louças antigas que escolhemos, nas mesas compartilhadas, nas receitas afetivas. Está também na arquitetura que respeita o que já existia antes de nós e nos objetos que contam histórias, ainda que silenciosas. A cidade, por sua vez, é o pano de fundo dessa memória viva. Ao transformar um galpão antigo em um espaço de encontros cotidianos, criamos um gesto de cuidado com o que já foi. Não apagamos, reaproveitamos, ressignificamos. A experiência aqui é sobre pertencer: a uma mesa, a um bairro, a uma história.

LS: Você falou sobre o galpão – o Futuro Refeitório fica numa antiga fábrica de fundição, a Bronzes Artísticos Rebellato, que funcionava ali desde os anos 30. O que motivou vocês a manter muitas das características da construção original?
KB: 
Contar a história dele, que é tão bonita e rica. Manter a memória, mostrar as veias e raízes do tempo. Mostrar que é possível manter um espaço preservado e ainda fazer dele um uso comercial.

“Acreditávamos que o tombamento fosse um caminho possível para preservação do imóvel, mas infelizmente o processo foi arquivado. Não estávamos lutando apenas pelo nosso negócio dentro dele, mas pela preservação da memória da cidade. Este imóvel é um oásis no caos urbano, um pequeno tesouro aberto
ao público”

LS: Em 2024, vocês iniciaram o processo para o tombamento do edifício onde funciona o restaurante. O que levou vocês a tomar essa decisão? Como está esse processo hoje?
KB: 
Acreditávamos que o tombamento fosse um caminho possível para preservação do imóvel, mas infelizmente o processo foi arquivado. Não estávamos lutando apenas pelo nosso negócio dentro dele, mas pela preservação da memória da cidade. Este imóvel é um oásis no caos urbano, um pequeno tesouro aberto ao público. Foi uma grande tristeza, imensa dor, ver como são votados os processos de pedido de tombamento no órgão responsável – o CONPRESP. Aquilo é um grande teatro, pura encenação. As votações são feitas sem os conselheiros conhecerem o imóvel, sem nunca terem visto o imóvel – apenas com base nas palavras do relator. Nosso processo foi retirado de pauta duas vezes, para chegar no fim e – sem nenhuma base de defesa ou fundamento – arquivarem o tombamento por estarem muito cansados e sobrecarregados com outros processos. É ridículo.

O Futuro Refeitório funciona hoje em um imóvel que já foi uma fábrica de bronzes artísticos e foi parte importante da cena artística de São Paulo | Crédito: Divulgação

LS: Quais foram os principais desafios nessa luta para preservar o imóvel onde está o Futuro?
KB: Acho que nosso maior desafio foi a carga emocional e energética despendida. As reuniões no Conpresp acontecem às segundas-feiras, às 14h30 – quem tem essa disponibilidade? Perdi as contas de quantas vezes nos deslocamos para lá e passamos horas a fio tentando entender como se dão os processos. Não é fácil – propositalmente – e não é acessível ao cidadão comum entender política. Se você não for homem, branco, então prepare-se para ser ignorado um milhão de vezes. Nós persistimos até o final.

LS: E o que ficou de aprendizado?
KB: O maior aprendizado é que temos uma comunidade incrível e uma marca muito potente. Levantamos mais de dez mil assinaturas de pessoas a favor da mesma causa. Saímos exauridas e profundamente tristes, mas com a certeza de que, não importa onde, o Futuro Refeitório seguirá existindo.

“Quando um negócio local valoriza o que está ao redor — a história da rua, o prédio antigo, os saberes populares, os modos de fazer que vieram antes, ele se torna um ponto de continuidade”

LS: Como você acha que os negócios locais podem ajudar a preservar a memória da cidade?
KB: Negócios locais têm um papel poderoso, e muitas vezes negligenciado, na preservação da memória da cidade. Porque são eles que vivem o cotidiano, conhecem os vizinhos pelo nome, acompanham as transformações do bairro de perto. Quando um negócio local valoriza o que está ao redor, seja a história da rua, o prédio antigo, os saberes populares, os modos de fazer que vieram antes, ele se torna um ponto de continuidade. Uma espécie de elo entre passado e presente. Isso pode acontecer de muitas formas: usando mobiliário antigo ao invés de descartá-lo, resgatando receitas, ou até abrindo espaço para conversas sobre o território e sua história. A cidade não é feita só de concreto, ela é feita de camadas de memória. E os negócios locais podem ser guardiões vivos dessas camadas, desde que escolham olhar pra trás com o mesmo interesse com que planejam o futuro.

Karina Barretto / Crédito: Erika Mayumi

LS: Qual é o futuro que você sonha para a cidade de São Paulo?
KB: Gostaria que São Paulo fosse uma cidade onde você conhece quem faz o seu pão, quem torra o seu café, quem conserta a sua bicicleta, planta seu tomate. Uma cidade em que as pessoas consigam morar perto de onde trabalham e que os espaços públicos sejam realmente públicos. Mais verde, menos cinza. Gostaria que pudéssemos aproveitar os Rio Tietê e Pinheiros e suas margens. Aliás, que tantos outros rios soterrados pudessem voltar a respirar e nós com eles. E também, principalmente, uma cidade que preserve suas camadas de história — não como algo do passado, mas como matéria-prima para imaginar futuros mais gentis, diversos e afetivos. Sem memória é muito difícil evoluir de maneira não ditatorial.

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