Cultura

entrevista com Ângela Bacamarteira

“Depois de 20 anos numa metrópole, escolhi voltar pra as minhas raízes”

A história da primeira mulher a liderar um Batalhão em uma das mais tradicionais festas juninas do país e homenageada 2024 do São João de Caruaru. Por Larissa Saram

Ângela Bacamarteira, a primeira mulher a liderar um batalhão de bacamarte e homenageada do São João de Caruaru 2024

A cultura dos bacamarteiros é secular, mas se você não mora na região Nordeste do Brasil, talvez nunca tenha ouvido falar do batalhão que promove um espetáculo de disparos de pólvora seca nas festas juninas de Sergipe, Paraíba e Pernambuco, onde acontece o famoso São João de Caruaru. 

Há muitas divergências sobre a origem da tradição, uns dizem que remonta à homenagem prestada pelos soldados da Guerra do Paraguai, em 1870, ao nascimento de São João Batista. Alguns edtudiosos afirmam que a arte popular vem muito antes disso, por volta de 1780, quando os negros escravizados para trabalhar em engenhos de cana de açúcar brincavam de roda e atiravam com a arma artesanal. O que é certo é que ao longo de todos esses anos apenas homens integravam os batalhões. Mas Ângela Maria de Oliveira Souza, conhecida como Ângela Bacamarteira, mudou tudo.

Nascida na zona rural de Caruaru, ela acompanhou desde muito pequena o pai, o sr. Zacarias, chefe do Batalhão 27, nas apresentações de disparos. A paixão do pai foi transmitida para a filha junto com todos os ensinamentos e mesmo durante os 20 anos em que morou em São Paulo, Ângela não deixou de participar das festas: todo junho, ela voltava para Sítio Araçá para se apresentar.

A agricultora aposentada é hoje a primeira mulher a chefiar um batalhão de bacamarteiros. A relevância desse papel e a inspiração da figura de Ângela para toda a comunidade renderam uma homenagem no São João de Caruaru 2024. Na conversa para esta edição do “Mulheres e a Cidade”, ela contou sobre sua história de vida:

Angela e seu pai, o sr. Zacarias (Reprodução | Instagram)

LARISSA SARAM: Como começou a sua história com o bacamarte? 
ANGELA BACAMARTEIRA: Meu pai era um bacamarteiro, apaixonado pelo 27 [batalhão]. Nasci e me criei acompanhando toda a trajetória dele. Na minha adolescência, já comecei a participar das festas juninas. Eu tinha 12 anos quando dei o primeiro tiro – com o apoio de meu pai, para não me machucar.  Tudo que sei hoje a respeito do bacamarte, foi o sr. Zacarias quem me ensinou. Ele sempre foi minha inspiração.

LS: E como enfrentou – e ainda enfrenta – o machismo da cultura do bacamarte?
AB: Não foi fácil, dizem que é uma brincadeira de homem, né!? Foram anos de luta por causa do preconceito, do machismo. Eu quebrei um tabu. Hoje estão vendo as bacamarteiras com outros olhos, mas vez em quando a gente ainda escuta aquelas piadinhas…Enfrento muito bem, nunca faltei com respeito com ninguém. O machismo ainda continua, infelizmente, mas sou feliz porque consegui ser a primeira mulher bacamarteira de Caruaru.

“Amo o que faço,
é uma paixão ser bacamarteira.
Essa homenagem aumentou
a minha responsabilidade,
mas sou muito grata”


LS: Nos anos 80, você saiu de Pernambuco e foi morar em São Paulo. Por que fez essa mudança?
AB:
Foi uma opção, como é sempre para todos os nordestinos, pra melhorar de vida, pela sobrevivência. E valeu a pena porque aprendi muito, São Paulo foi uma escola pra mim. Lá trabalhei em supermercados, lanchonetes, uma vida bem batalhadora. Meus filhos nasceram em São Paulo, foi uma época feliz.

LS: E por que voltou pra Caruaru?
AG:
Por causa do bacamarte. Mesmo quando morava em São Paulo, vinha todo ano brincar mais meu pai, no Batalhão 27. Em 2000, vendi minha casa, comprei um sítio aqui, ao lado do sítio do meu pai. Antes de ir para São Paulo, já era agricultura, e voltei a ser. Depois de 20 anos numa metrópole, escolhi voltar pra as minhas raízes, pra onde eu nasci, pra onde criei toda essa história e onde estou até hoje. Ficar na zona rural é ter uma qualidade de vida melhor.

LS: Como é a sua vida no Sítio Araçá?
AB:
Sou agricultora aposentada e costuro para completar a renda. Acordo às 3h, vou costurar, almoço, tiro um cochilo, costurar mais e vou dormir 19h30 , 20h. É bom, zona rural é assim. O que eu mais gosto daqui é a tranquilidade, de colher as minhas próprias verduras, frutas, tem uma água mineral boa, não preciso comprar. Tudo isso é primordial na minha vida. Tem as dificuldades, de transporte, as estradas que não são pavimentadas, é tudo de terra batida. Aqui temos uma área de preservação, que é o Parque Natural Municipal Professor João Vasconcelos Sobrinho, uma reserva muito rica em água. É maravilhoso morar aqui!

LS: Qual é a importância de ser uma das homenageadas do São João de Caruaru em 2024?
AB: Amo o que faço, é uma paixão ser bacamarteira e estar como chefe de 20 e poucos homens e 14 mulheres. Me sinto realizada. E essa homenagem aumentou a minha responsabilidade, mas sou muito grata. O mais importante é que nunca ninguém do bacamarte tinha sido homenageado. Então foi uma surpresa, estou muito feliz.

“Quebrei tabus, enfrentei
preconceitos, isso me dá
uma força que nem sei explicar”


LS: Como estão sendo as apresentações?
AB:
Eu me sinto vivendo uma história de anos, de luta, porque quebrei tabus, enfrentei preconceitos, isso me dá uma força que nem sei explicar. Quando vou me apresentar, sou aplaudida por todos e é uma felicidade que não é só minha. Olho pros meus bacamarteiros, sempre sorrindo, é uma energia fantástica. Só a gente que está vivendo esse momento é que sente a magia. Ser uma chefe como sou hoje é especial, muito especial. E eu adoro descontrair, interagir com o público. Eu me apresento em Caruaru, no pátio [Pátio de Eventos Luiz Gonzaga], na estação ferroviária, e é muito bom sentir o carinho do público, dos turistas. Faço as apresentações também na zona rural, nas três noites –  Santo Antônio, São João e São Pedro. Tem forró pé de serra, a gente toma uma cachacinha, recebe os amigos. Sempre gostei muito!

LS: É no espaço público que a gente perpetua a cultura e as tradições de uma região. Como você acha que as ruas tem contribuído para manter as tradições do bacamarte e também do São João de Caruaru?
AB: O São João de Caruaru é multicultural. Nós temos o apoio da prefeitura e da Fundação de Cultura, mas eu diria que precisaria melhorar, para nós que somos artistas, que carregamos tradição. Temos as nossas dificuldades, os gastos, é caro sair para se apresentar em Caruaru, por exemplo. Eu, como chefe, tenho que pagar o trio pé de serra, o transporte. Não só eu, mas todo mundo das outras culturas, como a quadrilha, pífano. Eu acredito que os órgão públicos deveriam apoiar mais a cultura. Cultura é muito importante nas nossas vidas.

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