Cultura

entrevista com Jéssica Moreira

“Ao escrever histórias sobre a periferia, consegui enxergar a ela e a mim mesma”

A jornalista, escritora e cofundadora da plataforma “Nós, Mulheres da Periferia” quer furar bolhas para falar sobre as vivências das mulheres periféricas. Por Graziela Salomão

Jéssica Moreira, jornalista e escritora | Foto: Reprodução redes sociais

Ela veio de Perus, bairro da zona noroeste de São Paulo, é cria do PROUNI (programa do Ministério da Educação que oferece bolsas de estudo em instituições particulares de educação superior), e tem como sonho contar as histórias visíveis e invisíveis da periferia. Com esse objetivo tão claro, a jornalista paulistana Jéssica Moreira co-fundou o “Nós, Mulheres da Periferia“, veículo de comunicação que busca quebrar estereótipos e construir novas narrativas a partir das vozes das mulheres periféricas. A trajetória de fazer um jornalismo de comunidade a levou a publicar o livro “Vãos: trens, marretas e outras histórias“, contando as histórias sobre o deslocar na cidade, e a ser, hoje, uma das finalistas do prêmio “+Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira”.

A cidade que segrega é aquela que também une mulheres em busca dos mesmos objetivos: se fortalecer, se conhecer, trazer visibilidade aos problemas comuns e defender seus direitos por vezes negligenciados. “Tenho muito receio de ser lida como uma romântica, mas realmente acredito que a gente vai contando as nossas histórias nas periferias e mostrando potências, mudando o olhar”, diz Jéssica. É trazendo luz ao trabalho de tantas e tantas mulheres periféricas, que podem ver e serem vistas da forma como são, que as mudanças vão acontecendo. Sem romantismo, mas com ação. Nossa conversa de hoje nas “Mulheres e a Cidade” é inspiradora e você vai sair dela com aquela vontade de ganhar a cidade, se juntar a Jéssica e tantas outras mulheres que fazem acontecer. Preparada?

GRAZIELA SALOMÃO: Você é uma das co-fundadoras do “Nós, Mulheres da Periferia”. Como surgiu a ideia do veículo e por que ser voltado para as mulheres periféricas
JÉSSICA MOREIRA:
Ele foi lançado oficialmente em março de 2014, mas o nosso primeiro artigo juntas tinha saído em março de 2012. Costumo brincar que os projetos feitos por mulheres são gestados muito antes de nascer, né? Tivemos a gestação do Nós para entender o que a gente queria. Com o artigo, vimos que tinha um vazio sobre informações ligadas às mulheres da periferia. Geralmente as pessoas não leem muito jornal, mas, de repente, aquele artigo chegou até elas, né? Não nos víamos na capa da revista, nas notícias. Quando nos víamos, era de uma maneira muito estereotipada, a mulher periférica no lugar generalizado, como piriguete ou raivosa, quando na verdade somos muitas e, inclusive, o que a gente quiser, né?
Lançamos o “Nós” e, em 2015, ganhamos um projeto de fomento cultural. Conseguimos fazer oficinas para mais de 100 mulheres, de 17 a 92 anos, em seis periferias diferentes da cidade. A gente queria discutir com elas quais são os estereótipos da mídia e como elas gostariam de ser vistas. Nessas oficinas elas fizeram autorretratos, se fotografaram e fotografaram umas as outras. Depois montamos uma exposição em que recriávamos essas periferias a partir desses relatos. Disso também resultou nosso primeiro documentário “Carolina”.

GS: E como você definiria o trabalho do “Nós” hoje?
JM:
Estamos sempre tentando sair de uma bolha para falar um pouco sobre as nossas vivências como mulheres periféricas. Nunca fomos um movimento social, mas muita gente acha que sim pelo fato de sermos da Periferia. A nossa ação social é contar histórias em um veículo de mídia. As pessoas tinham dificuldade de entender que éramos jornalistas e queríamos contar a notícia, não ser a notícia. Fomos construindo esse lugar e mostrando o que a gente era e como queria ser vista. Todas as mulheres que compõem o “Nós, Mulheres da Periferia” são graduadas, muitas se formaram por conta do PROUNI. Somos dessa geração que conseguiu se formar a partir das políticas públicas, então temos esse olhar de que a periferia não é apenas uma coisa, as mulheres das periferias são muitas variadas, com muitas profissões e identidades. Não podemos reduzir a periferia a um único lugar, temos que pensar as diversas intersecções. Hoje, o “Nós” tem uma redação formada por 15 mulheres – repórteres, social midia, designer, marketing, gestoras. A gente se divide na gestão, inclusive na das colegas que chegaram recentemente, para passar o que aprendemos e continuarmos nos fortalecendo. 

“Somos dessa geração que conseguiu se formar a partir das
políticas públicas, então temos esse olhar de que a periferia não é
apenas uma coisa, as mulheres das periferias são muitas variadas,
com muitas profissões e identidades. Não podemos reduzir a periferia
a um único lugar, temos que pensar as diversas intersecções.”

GS: Informação é uma ferramenta poderosa quando as mulheres entendem seus espaços e seus direitos, né? Por isso decidiu ser jornalista?
JM:
Acho que hoje tenho essa consciência de quão importante foi a informação para que eu tivesse acesso a outros direitos, como à educação, à cultura, ao esporte. Tive acesso a todas essas coisas, então a narrativa da falta simbólica não me pertenceu, embora ela exista sim. É um desafio presente. Consegui entender mais tarde que só acessei esses direitos porque tive alguma informação. A partir do momento que você tem a sua narrativa, também vai construindo uma possibilidade de futuro. Meus pais estudaram até o 4º ano do do Ensino Fundamental, minha avó era uma pessoa não literada, mas essas pessoas com muita sabedoria, com uma leitura de mundo muito apurada e com muitas narrativas, sempre me deram muitas histórias. Minha mãe é manicure e eu sentava no salãozinho que ela fez no fundo do nosso quintal e ficava o sábado todo conversando com as clientes. Não cresci rodeada de um monte de livro, mas de muita história e isso me ajudou a ser o que eu sou hoje. Eu não entendia naquele momento porque estava escolhendo o jornalismo, mas sabia que queria contar histórias. Entrei na faculdade estudando Relações Públicas porque era o que minha nota dava. Depois de seis meses, troquei de curso. Comunicação comunitária de território foi a minha primeira formação de jornalismo, então o meu grande sonho era contar histórias do meu território. 

GS: Você disse num “Girl’s Talk” que o jornalismo abriu o seu pensamento em relação a sua própria identidade. Como foi descobrir isso?
JM:
Com certeza abriu porque, ao escrever histórias sobre a periferia, consegui enxergar a ela e a mim mesma. Muitas vezes a gente cresce e nem sabe qual é a história do nosso bairro, né? Parece que é tão desimportante perante a história nacional, mundial. Quando, como jornalista, fui em busca de contar as histórias do meu bairro, fui descobrindo coisas. Moro em Perus e a gente brinca que o bairro construiu o Brasil, porque o cimento que saía daqui realmente construiu Brasília. Ninguém conta isso na escola pra gente.

GS: Sua família foi fundamental nessa trajetória. Você também foi fazer um intercâmbio na Irlanda. Foi um choque estar longe? E como a quebrada é vista fora daqui?
JM:
Minha família sempre me apoiou muito. Me incentivava a estudar, minha madrinha sempre lia todas as redações que eu fazia. Desde criança, as pessoas sabiam que eu adorava escrever e brincavam com a ideia de que eu ia ser jornalista, escrever um livro. Ao estar na Irlanda, tive a experiência de entender que a periferia num país que recebe tanta gente de fora não é necessariamente geográfica. Eu morava no centro de Dublin, inclusive porque é onde dava para dividir quarto e era mais barato. A periferia está em quem é imigrante. Expandi um pouco o meu olhar e o meu entendimento do que era a periferia.

GS: As mulheres são a grande força das quebradas. Como fazer com que a sociedade visibilize essa força, essa luta e a importância da economia do cuidado?
JM:
Acho que não tem uma resposta única. Um problema complexo envolve muitos sujeitos, muitos projetos e a invisibilidade passa por muitos lugares. Quando você é uma pessoa invisível, é invisível para as políticas públicas, para o sistema de educação, para a comunicação. E a gente sabe quem tem uma intersecção de gênero, território, cor, raça. Quanto mais a gente conta essas histórias, mais consegue mostrar essas pessoas para outras e talvez ajude nessa transformação do olhar. Não tenho nenhuma pretensão de pegar na mão de ninguém e ser a palestrante porque esse lugar de ficar explicando é cansativo. Hoje tem acesso à informação que é grande o suficiente para as pessoas entenderem e sentirem a importância dessa multiplicidade de vozes. Tem um caminho bem longo, mas não podemos deixar de olhar para trás e ver tudo que a gente caminhou, que as mulheres negras nunca deixaram de trabalhar, que muitas são chefes de família inclusive. Será que a gente está vendo isso? Será que as nossas histórias estão contando isso? Será que quando a gente fala sobre o feminismo, está falando sobre essa mulher? Será que as nossas produções audiovisuais estão dando conta dessa diversidade? Claro que contar história é uma parte dessa resposta, mas a gente precisa também contar novas histórias ao fazer políticas públicas. Tenho muito receio de ser lida como uma romântica, mas realmente acredito que a gente vai contando as nossas histórias nas periferias e mostrando potências, mudando o olhar.

“Só imagino outros futuros quando tenho alguma ideia do
que foi o passado. No afrofuturismo é muito presente isso:
olho o passado para me ver no presente e então me
imaginar e construir um futuro. Um futuro onde o
povo preto exista e exista vivo, né?”

GS: Vindo de um bairro de periferia, mulher, negra, todas as suas conquistas até agora e projetos que criou são uma forma de inspirar, e de trazer junto com você outras mulheres também?
JM:
Não sou uma estudiosa disso, mas uma entusiasta que lê e que gosta de escrever sobre. Quando a gente fala da mulher negra, estamos falando de uma população que nem sempre teve a escrita como ferramenta, mas sim a oralidade, inclusive como sobrevivência. A gente chega até aqui com algumas histórias que nos foram contadas, nem sempre escritas, então somos uma das primeiras gerações das famílias que escreve sua própria história. No nosso dia a dia, somo um povo muito estratégico, e que só está vivo porque é assim. Então, me vejo como uma pessoa que tenta ser estratégica e que sabe utilizar da oralidade da palavra para continuar sobrevivendo. Acho que a gente tem que ter consciência e saber um pouco de história para não achar que está inventando a roda e dar continuidade em imaginar outros futuros possíveis. Só imagino outros futuros quando tenho alguma ideia do que foi o passado. No afrofuturismo é muito presente isso: olho o passado para me ver no presente e então me imaginar e construir um futuro. Um futuro onde o povo preto exista e exista vivo, né?

Foto: Reprodução redes sociais

GS: Ainda há passos muito longos a serem dados na presença de mulheres periféricas em todos os espaços sociais, e também na comunicação. Como fazer esses passos serem mais rápidos para encurtar os caminhos?
JM:
Não sei te responder porque é de novo uma daquelas questões que são complexas demais para a gente ter uma resposta única. Envolve muitos fatores e sujeitos e eu acho que não é uma questão só governamental de políticas públicas. Mas também acredito muito na educação como um mínimo múltiplo comum. Quanto mais a gente oferece educação, mais colhemos frutos não só no futuro, mas no presente também. A gente está falando de poder criar perspectivas no agora para existir depois. E também precisamos pensar que a gente vive numa sociedade estruturalmente racista e que o debate precisa continuar. Quanto mais a gente evidencia os problemas estruturais, mais chance tem de pensar caminhos em conjunto.

GS: Seu livro “Vão: trens, marretas e outras histórias” é um livro de crônicas e poesias sobre o deslocar pela cidade, os vãos que por vezes nos separam e as potências das histórias de cada um. Ao pensar na sua própria história, como você a escreveria neste contexto?
JM:
Lembro da frase do escritor Alejandro Zambra em “Formas de voltar para casa”: “Sabia pouco, mas pelo menos sabia isto: / que ninguém fala pelos outros / Que, mesmo que queiramos contar histórias alheias,/ terminamos sempre contando nossa própria história”. Não quero ser narcisista, egocêntrica, mas no fim, ao contar as histórias que conto, estou tentando visibilizar aquilo que sempre foi invisível: eu, meus pares, meu território. Por isso também, e não só, essa vontade tão grande de contar histórias das periferias, dos vãos, das pontes em todos os formatos, onde eu conseguir. No fim do dia, minha grande militância é contar histórias que ainda não foram contadas.

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