
Helena Silvestre tinha de 14 para 15 anos quando seus pais se tornaram religiosos de uma linha que condena qualquer tipo de participação política. Não demorou para que a casa onde morava, no Morro do Macuco, localizado no maior bairro da cidade de Mauá, o Jardim Zaíra, virasse palco de conflito entre pais e filha. Mais velha de seis irmãos, nascida em uma rua de terra, em frente a um córrego, desde os 12 anos Helena “tinha formigas na cabeça por fazer alguma coisa que fosse boa para o bairro”, como ela mesmo descreveu durante esta conversa para o Mulheres e a Cidade. Era militante da Juventude Operária Católica e estava sempre envolvida em iniciativas de auto-organização territorial. Entre ver os pais frustrados pelos caminhos que estava escolhendo e sem conseguir deixar de ser quem era, preferiu ir embora. Fugiu de casa.
Pouco tempo depois, no final de 2002, conheceu um movimento de moradia e trabalhou na base do que formaria a Ocupação Santo Dias, em São Bernardo do Campo. Foi nessa época que se tornou integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) – onde ficou até 2010 para depois fundar o Movimento Luta Popular. Quando a ocupação foi despejada, Helena estava entre as famílias e seguiu com elas até São Paulo. Na capital paulista, casou e viveu em diversos bairros. Primeiro, no centro, depois nas periferias, principalmente na Zona Sul. Seja como favelada ou como sem-teto, sempre na luta pelo direito à cidade. Boa parte dessas memórias estão nos livros escritos por Helena, como “Do verbo que o amor não presta” (Selo Sarau do Binho), “Cochichos de amor e outras alquimias” (Txai) e “Notas sobre a Fome” (Expressão Popular), indicado ao prêmio Jabuti em 2020.
Hoje, além de escritora, Helena Silvestre é uma das fundadoras do Coletivo Quilombo Invisível, da Revista Amazonas e da Escola Feminista Abya Yala, um espaço de partilha de conhecimento, estudo coletivo, fortalecimento e cuidado entre mulheres ativistas na periferia. É dessa forma que ela espalha a experiência visceral da convivência comunitária que, de acordo com Helena, é onde mora o futuro das cidades.

Larissa Saram: Você nasceu em Mauá e viveu toda a infância na Favela do Macuco, no Jardim Zaíra. Quais são as suas memórias desse tempo?
Helena Silvestre: Nasci em 1984 e quando eu saí do Zaíra era 2001. Até esse momento, na minha vida, celular era uma coisa de rico, telefone fixo era recém-chegado e eu só conhecia um computador porque trabalhava como telefonista desde os 16. A vida era boa porque a gente fazia ela ficar boa de alguma maneira. Inventava brincadeiras e imaginava tudo que não podíamos tocar ainda. Minha rua foi de terra, depois de asfalto. Em frente a casa onde vivi, primeiro havia um córrego – pedaço de rio assassinado pelo progresso – e depois uma fileira de casas que eu vi crescerem, ocupando pouco a pouco a margem da água enquanto escapavam dos fiscais da prefeitura, batendo laje ao anoitecer. Tínhamos muitas brincadeiras de rua e como a luz acabava sempre, no mínimo uma vez por semana, fazíamos fogueira, ficava correndo atrás de vaga-lume, brincava de gato-mia. Em algumas épocas do ano, quando a guerra chegava muito perto e não podíamos estar na rua por conta dos toques de recolher, a gente brincava em casa.
LS: São lembranças muito bonitas. Como a violência apagava um pouco o brilho desses momentos tão bons?
HS: Havia muita vida e havia muita morte. Quando encontrava um lençol estendido no chão, lá adiante no caminho, a gente sabia que devia desviar, passar rápido, não parar sem um adulto que estivesse junto para acompanhar conversas sobre morte. Difícil crescer menina – os becos escuros e os terrenos baldios passaram de espaços de brincar a locais de risco quando começaram a nascer peitos. Ou quando os primos começaram a chegar, encobertos de sujeira, depois de terem se safado de mais uma incursão violenta do Estado, se escondendo no primeiro bueiro que encontraram. Faltavam muitas outras coisas… Comida era sempre uma questão: com 8 bocas para sustentar com um único salário, o fim do mês tinha sempre um cardápio feito de farinha, cebolas e arroz. São muitas memórias, complexas, contraditórias, ricas de toda sorte de situações de convívio intenso entre vizinhanças e casa cheia.
“A favela – e não a
cidade oficial – é a
expressão da pluralidade
étnica que este país
possui dentro destas
fronteiras desenhadas
por colonizadores.
Os expulsos, despejados,
arrancados de seu lugar
que tiveram de reconstruir
comunidades, mesmo que
sobre escombros e em
meio a condições cada
vez mais adversas”
LS: No seu perfil do Instagram você se descreve como “Afroindígena desterrada. Favelada matuta”. Quais são as suas raízes?
HS: Tenho raízes afro-indígenas. Minha mãe, assim como avó e bisavó, são mulheres de origem indigena do Sertão da Paraíba. Meu pai é um homem negro, sei pouco da sua familia, mas meus avós vieram de Minas Gerais para o interior de Sao Paulo e de lá para Mauá. Um dos maiores superpoderes que uma pessoa pode alcançar é o de conhecer algo de seu passado. Não é à toa que pessoas brancas deram e dão tanto valor a sobrenomes, histórias de imigraçãao e origens familiares. Mas pra quem é pobre e racializado, isso é coisa difícil. Eu tive a sorte de conviver com avó e bisavó maternas, pude aproveitar e alimentar a minha curiosidade com elas, aprender coisas, guardar pistas que depois de adulta me deram caminhos por onde procurar. “A favela é filha de quem?” É a pergunta guia de um de meus cursos de formação.
LS: E a favela é filha de quem?
HS: Entre muitas coisas, ela é filha da diáspora, da migração, das aldeias, quilombos e roças que entregaram seus filhos ao moinho de gente que botou de pé e fez funcionar a cidade industrial. A favela – e não a cidade oficial – é a expressão da pluralidade étnica que este país possui dentro destas fronteiras desenhadas por colonizadores. Os expulsos, despejados, arrancados de seu lugar que tiveram de reconstruir comunidades, mesmo que sobre escombros e em meio a condições cada vez mais adversas. Somos um cruzamento de ancestralidades banidas por séculos do catálogo Brasil. O encontro de povos em busca de viver e sobreviver, carregando cosmovisões, fés distintas, ritmos, modos de falar e de comer. Povos que se fizeram vizinhos pela força da pobreza e da exploração, desterrados, condenados da terra (mas não por ela) como diria Fanon. Eu sou parte disso, dessa multidão de gente singular e sabida dessa tecnologia de refazer casa onde seja. Sou favelada. E sou também matuta, porque enquanto a favela pôde, enquanto ela conseguiu manter campinhos de terra e terrenos baldios cheios de taioba a salvo da especulação imobiliária, os conhecimentos matutos sempre foram repassados para nós.

LS: Você iniciou a sua militância muito jovem e esse começo te levou a ser uma defensora da libertação de povos, corpos e territórios. Quais desafios enfrentou?
HS: Acho que os mesmos desafios que qualquer outra mulher que atua num conflito dos mais violentos e perigosos para ativistas no Brasil. Vivi as dificuldades de ser uma militante pobre girando pela cidade depois do trabalho, cansada, construindo reuniões em periferias diferentes. Fosse à noite, fosse nos finais de semana ou em tempo integral – quando desempregada – eu dedicava a maior parte do meu tempo livre a atividades de organização de lutas em favelas ou na realização e organização de ocupações por moradia. A primeira ocupação que ajudei a fazer foi em 2003 e a última foi em 2015. Embora ainda siga próxima das ocupações e da luta pela terra no espaço urbano, sobretudo através da minha articulação com mulheres moradoras destes espaços, já não atuo mais como meu principal foco de intervenção.
“Vivi momentos em
que fui ameaçada de
morte por proprietários
de terras que chegamos
a ocupar, tive de mudar
de casa algumas vezes
por razões de segurança,
fui detida, vivi confrontos
violentos com forças
repressivas atuando em
defesa de latifundiários
e embates com figuras
de poder estatal em
momentos de negociações
que buscavam evitar despejos”
LS: Por que decidiu parar?
HS: Isso se relaciona com muitos desafios que vivi, alguns inclusive sem ter plena consciência de que me alcançavam. Ser a única mulher por anos em espaços de decisão de um movimento de moradia, ser a única com origem favelada em coletivos militantes fortemente marcados por uma composição de classe média progressista, viver machismos violentos que eram normalizados até mesmo na minha cabeça, ver que homens brancos, com origem abastada rápida e seguidamente se apropriavam do esforço militante de mulheres e assumiam destaque como porta vozes, representantes. Vivi momentos em que fui ameaçada de morte por proprietários de terras que chegamos a ocupar, tive de mudar de casa algumas vezes por razões de segurança, fui detida, vivi confrontos violentos com forças repressivas atuando em defesa de latifundiários e embates com figuras de poder estatal em momentos de negociações que buscavam evitar despejos. Ingressei e abandonei a universidade algumas vezes por priorizar a militância e me endureci um bocado até perceber que muito dessa dureza exigida das mulheres ativistas têm relação direta com a marca patriarcal que desenha até mesmo espaços de organização da esquerda.
LS: E como você avalia a importância das mulheres na construção de novas maneiras de se viver na cidade?
HS: Eu comecei a militância quando tinha doze anos de idade. De 1996 até 2016 militei intensamente em movimentos de organização de bairros, favelas e, a partir de 2003, em movimentos de moradia, primeiro no MTST e depois no Luta Popular. Todas estas organizações eram mistas, ou seja, juntavam homens e mulheres e isso é algo tão maravilhoso quanto estratégico. Nosso número segue sendo um de nossos maiores poderes, mas só o experimentamos quando conseguimos nos unir. No entanto, ao longo desses mesmos anos, nessas e outras organizações, descobri que nem tudo a que chamam de união é mesmo isso. Se para que uma unidade exista, uma parte tem que se anular, eu não chamo a isso união. E é o que ocorre frequentemente com o povo negro, com os povos indígenas, com os favelados, sem-tetos, com as dissidências e, é claro, com as mulheres. A ausência das mulheres deixa marcas na forma de fazer política, na análise da realidade, na identificação de alianças e naquilo que somos capazes de imaginar como alternativas. As mulheres são, todas elas, gente que conhece o que é ser oprimido. Este é um conhecimento essencial para gerar um mundo sem opressão. Quando as mulheres integram ativamente e com poder a produção de planejamentos, formas organizativas, referenciais de justiça e bem-viver, observamos que os temas das infâncias, da saúde, das águas, da velhice, da assistência, da alimentação e da terra ocupam uma centralidade muito maior do que as perspectivas de tomar o controle das fábricas ou tomar o controle do Estado.

LS: Quais são as suas lutas hoje?
HS: A favela nunca foi plenamente reconhecida como cidade. Basta dizer que a ela não são concedidos os mesmos direitos, estrutura e tratamento legados aos bairros nobres. Por muito tempo lutei, como favelada e como sem-teto, pelo direito à cidade. É compreensível, eu acho. A busca por aquilo que me foi negado, que nos foi negado. Mas com o passar do tempo essa perspectiva me pareceu limitada, condicionada de alguma maneira pelo modo de vida “deles”, como se tivessem conseguido colonizar até mesmo meus desejos, nossos desejos. Trata-se da seguinte reflexão: o que eu gostaria de viver, como cidadã (essa palavra que não gosto) se parece com o modo de vida das classes médias paulistanas? Minha insubordinação com a condição de pobreza que me foi imposta vai até onde? Não querer ser uma trabalhadora explorada é fundamental, mas o que eu quero ser então? A patroa exploradora? É essa a única alternativa? Não querer viver num território depredado pela violência policial, destroçado pela fome e falta de trabalho com significado, arrasado pelo estigma, pelo preconceito, pela superexploração e subalternização não pode significar querer viver num território que só existe tal como o conhecemos porque suga e extrai todos os outros. Eu já não luto mais pelo direito à cidade, eu luto agora pelo direito à comunidade. Esse presente é o futuro e, se tivermos algum sucesso, o futuro pode ser o passado, ou ao menos estar mais próximo dos modos de viver que existiam na aldeia, no quilombo, no terreiro, na comunidade de pescadores. Para mim, só pode existir futuro se ele for ancestral.
LS: Os seus livros têm muito de autoficção. Onde a narração sobre corpos marginalizados cruza com o pensar novas formas de ocupar e estar nos territórios?
HS: Acho que a narrativa não é exatamente sobre corpos marginalizados, sabe? Eu diria que é a narrativa produzida por tais corpos, não sobre eles. E isso faz muita diferença porque nós alimentamos – a custo de muito sofrimento – uma imagem nossa, de nós pra nós mesmas, por dentro, que destoa de toda essa marginalização a que nos lançaram, a essa desumanização escancarada, essa subalternização imposta de muitas maneiras. Se partirmos daí, da ideia de que estes corpos produzem narrativa sobre sua experiência e que essa experiência é tremendamente marcada pela necessidade de inventar e reinventar maneiras de existir, de ocupar lugar no mundo, de estar em cima do chão pertencendo a dinâmicas coletivas que mesmo precárias lhes sustentam a vida, encontraremos abundância de cruzamentos. Um elemento ancestral desse cruzamento é a tecnologia edificada na diáspora negra que promove a permanente capacidade de refazer comunidade onde quer que haja gente com ganas de viver. Essa sabedoria se transmitiu como legado, atravessando gerações, séculos, fronteiras, legislações e chegou às favelas, onde foi incorporada no modo de vida que atenta ao fato de que ninguém é inteiramente autossuficiente, somos interdependentes. Outra linhagem fundamental da encruzilhada favelada são os saberes originários, indígenas, ameríndios, saberes que sempre proliferaram plantas e canteiros medicinais onde nem espaço disponível havia. Fosse em caixotes de feira, em vasos, na beira dos córregos, trepadas pelos muros ou em pequenas brechas de concreto, as pessoas faveladas e sem teto cultivam e parecem saber que a vida humana precisa estar em convivência com vidas não-humanas, que a monocultura de gente também é um problema e pode sufocar.
“(…) essa cidade moderna,
que concentra e individualiza,
ela aparece como o futuro
das aldeias, quilombos,
povoados e vilas pesqueiras.
E isso não é verdade. A aldeia
é outro modo, outro tempo,
outras relações e centros,
assim como os quilombos,
assim como os terreiros de
candomblé, assim como as
comunidades ribeirinhas.
Um tempo em que o presente
é o futuro e o futuro é
o passado também”
LS: Queria que você comentasse mais sobre essa perspectiva do viver em comunidade, em como está conectado a novas estratégias para narrar e habitar a cidade. Esse é nosso futuro?
HS: Olhe, estamos em um momento em que é difícil dizer o que será nosso futuro. Primeiramente talvez porque a ideia de futuro pode ser uma armadilha do pensamento ocidental. Eu sei que digo essas coisas esquisitas, que faço rodeio grande pra contar de certas questões, mas é que a gente parece não enxergar o óbvio, sabe? E talvez ele seja mesmo o mais difícil de ver. O pensamento ocidental hegemônico, que é colonialista e branco, não aceita outros tempos que não o seu, imposto, linear, progressivo. Um tempo que faz do passado algo cada vez mais distante, ao ponto de esquecermos de onde nascem os ovos do omelete. Nessa perspectiva temporal, a cidade-mercadoria, a cidade brutalmente extrativista, cidade-capital financeiro, essa cidade moderna, que concentra e individualiza, ela aparece como o futuro das aldeias, quilombos, povoados e vilas pesqueiras. E isso não é verdade. A aldeia é outro modo, outro tempo, outras relações e centros, assim como os quilombos, assim como os terreiros de candomblé, assim como as comunidades ribeirinhas. Um tempo em que o presente é o futuro e o futuro é o passado também. Nós ouvimos e lemos o Ailton Krenak dizer que “o futuro é ancestral” mas não parecemos atinar com os significados disso. Nas favelas e periferias, essas dinâmicas e formas outras subsistem, amalgamadas, retorcidas, renovadas, desconectadas formalmente de suas matrizes, mescladas. A favela – mesmo sem terra – cultivou memórias úteis para a proliferação da vida. Ela manteve vivas algumas sabedorias da terra, ainda que para isso tivesse de plantar em caixotes de feira ou nas lajes. A favela impunha lutas em defesa da vida que revelam frequentemente que somos interdependentes: as vizinhas que se revezam buscando filhos na escola sabem disso, as mulheres que precisam de creches, porque sem ajuda é muito difícil zelar, na pobreza, por uma criança. Aqueles que juntam amigos para encher uma laje, fazer uma lombada que desacelere os carros ou levantar um poste que a chuva derrubou, sabem disso também. A favela tem muito o que ensinar sobre comunidade, mas não sei se a cidade quer aprender a ser um território comunitário. Há uma série de “abundâncias e facilidades” que nem todo mundo está disposto a largar.

LS: Como quais?
HS: Qual o custo das lindas avenidas decoradas em luzes nos bairros chiques? Das regiões cômodas com comércios ou serviços que não fecham nunca? Das diaristas baratas – que todo mundo chama de “ a moça que me ajuda lá em casa”? Qual o custo de consumir tanta água sem produzir nenhuma? De consumir tanto alimento sem produzir nenhum? De consumir tanta energia que só mesmo destruindo a Amazônia, os rios e os territórios invadidos pela monocultura de placas solares e moinhos eólicos? Qual o custo de receber alimentos prontos ou produtos da China sem sair de casa? A cidade traga, suga, extrai de muitos territórios para existir tal como é. Toda a monocultura da soja, ou da cana, ou da laranja, ou o gado, tudo isso é base para o modo de vida de ultra-ricos que são citadinos, cidadãos de bem, urbanos. Toda a brutal violência sobre as favelas e periferias, essa monocultura de guerra que aqui atua diretamente contra pobres racializados através das polícias e milícias, essa indústria da guerra, gera um lucro que sustenta o modo de vida de ultra-ricos que são citadinos, cidadãos do mundo em suas mais caras cidades – incluindo São Paulo. Então a cidade precisa querer ser um território comunitário. É isso ou ter de se mover num trânsito infernal, sob um aquecimento climático de 40 graus no outono, usando máscaras por conta da poluição do ar e amamentando crianças com microplástico enfiado até no leite materno.
“(…) aprendo muito com
isso, dançando em cada
época com porções diversas
de minha comunidade
periférica e favelada, cada
vez mais com suas mulheres,
crianças, plantas e bichos.
Isso me expõe a mais miséria
e violência do aquelas que
já recebi de nascença. Mas
também me expõe a uma
capacidade incontrolável,
que habita as pessoas
empobrecidas e violentadas,
de refazer comunidade
onde quer que seja”
LS: Nas entrevistas que dá, você sempre me pareceu uma pessoa otimista. Estou certa? Como manter o otimismo vivendo em grandes cidades?
HS: Está certa sim. Não sei se a palavra otimista é aquela que eu usaria, mas eu sou. Acredito que pode ser diferente e não se trata de fé cega. Talvez, de faca amolada – para brincar com os versos da música de Milton Nascimento e Beto Guedes. E digo isso porque desde que comecei na militância, nunca deixei de atuar comunitariamente. Tem tanto problema que você pode mudar sempre a sua forma de intervenção, pode sempre se conectar com novos coletivos, com novas demandas, com outras formas de luta e continuar militando. Eu fiz isso, faço isso e aprendo muito com isso, dançando em cada época com porções diversas de minha comunidade periférica e favelada, cada vez mais com suas mulheres, crianças, plantas e bichos. Isso me expõe a mais miséria e violência do aquelas que já recebi de nascença. Mas também me expõe a uma capacidade incontrolável, que habita as pessoas empobrecidas e violentadas, de refazer comunidade onde quer que seja. A reinvenção permanente de maneiras de sobreviver, o melhor possível, com o bem-viver por horizonte, não só para si: eis uma ideia preciosa para qualquer projeto anticapitalista e ela está em ação no cotidiano das mulheres faveladas, das mulheres negras, das mulheres indígenas, afro-indígenas, lésbicas, trans, bissexuais, putas, ciganas, imigrantes. Estou exposta a essa riqueza, que produz maneiras de viver sem se afastar demais das lições da terra, plantando em vasos quando até o chão arrancaram de nós, quando até nossos filhos foram assassinados pelo Estado, depois de adolescentes, depois de havermos lutado sozinhas para lhes preservar da fome, das doenças e da morte. Eu atuo exposta a essa potência enorme de vida, que me faz pensar na potência de vida das crianças pequenas ou das sementes. Eu não poderia ser pessimista.