
Passos rápidos, pensamentos perdidos no celular, tensão com a violência que, muitas vezes, nos encontra em alguma esquina. Mas, de repente, você olha pra cima e uma figura feminina de traços marcantes te encontra nessa fração de segundos. Ela quer te contar uma história no atravessar da avenida entre um farol e outro. É esse o desejo de Hanna Lucatelli ao espalhar murais por toda a cidade. Em suas pinturas, rostos de mulheres de diversas etnias que ocupam espaços, se impõem à paisagem urbana e transmitem uma mensagem. “A arte de rua tem essa capacidade única de interromper a rotina, provocar reflexão e criar diálogos que talvez não acontecessem de outra forma”, diz a muralista e artista visual na entrevista desta semana ao Mulheres e a Cidade.
Criada entre a periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro, o primeiro encontro de Hanna com a arte de rua foi ainda criança ao chegar à capital fluminense. “Atravessar a cidade e ver aqueles murais gigantes do profeta Gentileza pela janela do ônibus era como entrar em outro mundo”, conta. “Parecia que a cidade estava sussurrando algo importante”. Desses sussurros veio o desejo de se expressar através das pinturas espalhadas pelo espaço urbano. Até tentou escapar do destino artístico: pensou em fazer administração, mas redescobriu a arte em um curso de teatro. Essa reconexão a levou a se formar em Design de Moda em 2014 até engravidar. Pensou em abrir uma marca própria, depois um brechó, e entre essa busca por expressão, o desenho e a pintura voltaram a sua vida para não largar mais.
Hoje, não é difícil encontrar seus desenhos espalhados por todos os cantos, principalmente em São Paulo, onde mora. De bairros opostos como São Mateus e Vila Madalena, as pinturas de Hanna já marcaram a paisagem paulistana por diversas vezes. No Minhocão, por exemplo, ela criou um mural de 45 metros de altura na lateral de um prédio. O muralismo feminino ainda encontra resistência, mesmo com tantas artistas como ela conquistando destaque e espaços. Mas ela não desiste e sonha com muito mais. ”Pode ser em uma grande cidade, em um pequeno vilarejo, em um canto escondido que, de repente, se torna um ponto de encontro. Quero que minha pintura encontre quem precisa dela, onde quer que seja”.

Graziela Salomão: Como percebeu que queria colocar mulheres na sua arte?
Hanna Lucatelli: Foi um processo natural, quase inevitável. Sempre desenhei mulheres, mesmo antes de entender o porquê. Acho que foi uma forma de me expressar, de me enxergar no mundo e de dar voz às histórias que eu queria ver contadas na rua. Com o tempo, fui percebendo que essas figuras femininas não eram apenas personagens, mas símbolos de força, de existência, de identidade. Comecei a entender que minha pintura poderia ser um espelho para outras mulheres também, uma maneira de trazer visibilidade para nossas vivências, nossas emoções e nossa potência.
GS: Como são as mulheres que você coloca nas suas obras? E como escolhe e cria as mensagens que sempre estão junto com elas?
HL: Elas são personagens inventadas, colagens a partir de fragmentos de figuras reais. São múltiplas, assim como a própria experiência de ser mulher. Têm traços marcantes, olhares profundos, expressões que contam histórias. Algumas carregam introspecção, outras trazem força e desafio no olhar, mas todas têm presença, ocupam espaço, se impõem na paisagem urbana. As mensagens surgem do que estou sentindo no momento, do que vejo ao meu redor, das conversas que me atravessam. Às vezes, uma palavra basta. Outras vezes, é uma frase inteira que ecoa o que precisa ser dito. Sempre penso na interação entre a imagem e o texto, no que essa composição pode despertar em quem passa pela rua.
“Foi nesses muros, entre a doçura de um e a rebeldia do outro, que comecei a perceber que a cidade também se comunica. Que ela tem voz, e que a arte pode ser esse meio de diálogo, esse grito ou esse abraço espalhado pelos muros.“
GS: Qual a primeira lembrança que tem de a rua falar com você?
HL: Acho que a rua sempre falou comigo, mas a primeira vez que me lembro de realmente escutá-la foi ainda criança, chegando no Rio de Janeiro. Atravessar a cidade e ver aqueles murais gigantes do profeta Gentileza pela janela do ônibus era como entrar em outro mundo. Letras amarelas, palavras que pareciam mágicas, frases que eu ainda não entendia completamente, mas que já me causavam um impacto. Parecia que a cidade estava sussurrando algo importante. Em São Paulo foi diferente, mais bruto, mais urgente. Eram as pichações, os riscos rápidos, palavras cortadas no concreto. Eu olhava aquilo sem entender exatamente o que diziam, mas sentia que havia força ali, que alguém estava tentando falar, deixar um rastro. Foi nesses muros, entre a doçura de um e a rebeldia do outro, que comecei a perceber que a cidade também se comunica. Que ela tem voz, e que a arte pode ser esse meio de diálogo, esse grito ou esse abraço espalhado pelos muros.

GS: Por que a escolha da rua para ser a principal plataforma de trabalho da sua arte?
HL: A rua é democrática, livre, pulsante. Arte na rua não pede convite, não precisa de ingresso, não pertence a um grupo seleto. Ela é de todos. Sempre me atraiu essa ideia de levar arte para o cotidiano, para o inesperado, para o fluxo da cidade. Um mural pode transformar um espaço, pode ressignificar um caminho, pode mudar o dia de alguém que passa apressado e, de repente, se vê diante de uma imagem que o toca de alguma forma.
GS: Qual a principal missão da arte que você espalha pelas cidades?
HL: Minha busca é pela conexão e pelo coração aberto. Quero que as pinturas provoquem sentimento, que criem um momento de pausa, que tragam identificação. Muitas vezes, as mulheres que pinto olham diretamente para quem passa, como um convite ao encontro, ao reconhecimento. Quero que essas figuras femininas sejam vistas e que as mensagens despertem algo dentro de quem as lê. Se, por um instante, alguém se sentir representado ou tocado por um mural meu, então ele já cumpriu seu papel.

GS: Como a maternidade mudou a sua forma de ver a cidade e impactou na sua arte?
HL: A maternidade me trouxe um novo olhar sobre os espaços. Passei a perceber com mais sensibilidade a marginalização da mulher, a falta de acolhimento, a necessidade de segurança, de cuidado, de acessibilidade. A cidade pode ser um lugar duro para uma mãe, para uma criança. Isso fez com que meu trabalho ganhasse camadas de proteção, de suavidade, de acolhimento. Quero que minhas obras sejam refúgios visuais, que tragam conforto e humanidade.
“O subúrbio tem uma poesia própria, uma força que molda quem cresce nele. Há um senso de coletividade, de resistência, de criatividade no dia a dia. Você aprende a enxergar beleza onde poucos olham, a transformar o pouco que tem em algo maior. “
GS: Você passou a infância entre os subúrbios de Rio e São Paulo. Como isso impactou na construção da mulher que é hoje?
HL: O subúrbio tem uma poesia própria, uma força que molda quem cresce nele. Há um senso de coletividade, de resistência, de criatividade no dia a dia. Você aprende a enxergar beleza onde poucos olham, a transformar o pouco que tem em algo maior. Isso tudo ficou em mim e se reflete no meu trabalho. Trago essa vivência para as mulheres que desenho, para as mensagens que escrevo, e para a forma como ocupo os espaços urbanos.
GS: Qual é a cidade do seu coração? E por que?
HL: Nasci e cresci em Sao Paulo. Aqui é o chão onde minhas raízes cresceram, onde aprendi a enxergar beleza no concreto, no ritmo acelerado, na intensidade dos encontros. É a cidade que me moldou, que me ensinou a ocupar espaços, a transformar paisagens brutas em poesia. Aqui, minha pintura encontrou seu primeiro eco, se espalhou pelos muros, fez parte da pulsação da cidade. De uns anos para cá tenho me dividido entre Salvador e São Paulo. Salvador foi e é um chamado. Um reencontro com algo que sempre esteve em mim, mas que eu ainda não tinha olhado de frente. Foi chegando lá que entendi que algumas raízes não estão no chão, mas no sangue, na pele, na memória. Em Salvador, me vi refletida de um jeito profundo. A cidade me deu tempo, me deu mar, me deu filhas, me banhou. Me reconectou com histórias que atravessam gerações e que, de alguma forma, também moram na minha arte. Hoje, meu coração bate entre esses dois lugares. São Paulo é movimento, Salvador é respiro. São Paulo me fez quem eu sou, Salvador me lembrou de onde eu vim. E talvez seja nesse vai e vem entre as duas que eu realmente me encontre nessa fase da vida.

GS: Os murais são obras de arte a céu aberto. Como é vê-lo impactando e prendendo a atenção dos olhares de quem passa tantas vezes correndo pelas ruas da cidade?
HL: É emocionante. Me arrepia e me faz chorar sempre que termino. Ver um mural meu ganhando vida no espaço urbano e capturando o olhar das pessoas, muitas vezes apressadas e distraídas, é sempre uma experiência poderosa. A arte de rua tem essa capacidade única de interromper a rotina, provocar reflexão e criar diálogos que talvez não acontecessem de outra forma. Meu trabalho busca dar visibilidade às mulheres que foram historicamente marginalizadas, violentadas e excluídas dos espaços de decisão e poder. Quando alguém se reconhece em uma de minhas pinturas ou sente que aquele espaço agora pertence um pouco mais a elas, sei que a arte cumpriu seu papel de transformação.
GS: Ainda se tem muito preconceito com o muralismo feminino?
HL: Sim, mas estamos avançando. Por muito tempo, a arte de rua foi um espaço dominado por homens, e por movimentos artisticos em que mulheres não cabiam. Aquelas que começaram a ocupar esse território enfrentaram resistência. Ainda há olhares de estranhamento, desafios, mas com o entendimento do movimento do Muralismo muitas mudanças aconteceram e cada mural pintado por uma mulher é um passo importante para romper barreiras.
“Mesmo quando a tinta some, a arte continua existindo na memória de quem passou por ali.”
GS: Os murais são arte que ficam na cidade durante um ciclo. Como você entende esse tempo que a sua obra tem de vivência no espaço urbano?
HL: Eu vejo o mural como algo orgânico, que nasce, vive e um dia se transforma ou desaparece. Mesmo quando a tinta some, a arte continua existindo na memória de quem passou por ali. O impacto de uma obra não está só na parede, mas no que ela despertou enquanto esteve ali.

GS: Tem alguma obra que, ao pensar, seja a que mais você se vê nela?
HL: Todas carregam algo de mim, mas sempre a última tem mais de quem sou agora. Me vejo mais naquele mural que é o último, mas cada um tem uma história, um trajeto percorrido para que ele nascesse, e em alguns desses trajetos vejo a mágica do universo acontecendo de forma inquestionável..Com esses eu me conecto mais não pela forma, mas pela história dele.
GS: Você participou do projeto Tarsila Inspira. Como foi revisitar o trabalho da Tarsila? E como isso te impactou como artista e como mulher?
HL: Tarsila abriu caminhos para a arte brasileira, trouxe um olhar único para nossa identidade visual e nossa história através da arte visual. Revisitar sua obra foi como ter uma conversa com alguém que, de alguma forma, já me influenciava há muito tempo. Me fez pensar na continuidade da arte, no que levamos adiante, no que ressignificamos. Foi um encontro muito potente.

GS: Onde você gostaria que seus murais chegassem?
HL: Onde puderem tocar alguém. Pode ser em uma grande cidade, em um pequeno vilarejo, em um canto escondido que, de repente, se torna um ponto de encontro. Quero que minha pintura encontre quem precisa dela, onde quer que seja. Quero que meus murais cheguem onde a pele arrepia, onde o olhar se reconhece, onde o coração pulsa mais forte. Que cheguem em muros altos, em becos escondidos, em esquinas onde ninguém espera, mas precisa ver. Quero que cheguem em territórios que ainda negam a voz feminina, que ainda silenciam nossa existência. Que ocupem espaços de poder, de história, de luta. Que sejam marca, cicatriz, renascimento. Quero que eles viajem sem passaporte, que atravessem fronteiras sem pedir licença. Que toquem quem nunca se viu refletido na arte, quem nunca soube que poderia ser personagem de um mural. Mas, acima de tudo, quero que meus murais cheguem ao tempo. Que sobrevivam além da tinta, além do concreto. Que sigam vivos no olhar de quem passou, no pensamento de quem leu, no peito de quem sentiu. Porque a arte verdadeira não se apaga – ela se transforma em memória, em faísca, em caminho.