A cidade está em tudo e Laura Artigas teve noção disso desde muito cedo. Apesar da pouca convivência com o avô, o arquiteto, engenheiro e urbanista Vilanova Artigas, ela carrega as marcas desse legado ao se mostrar uma observadora cuidadosa do espaço urbano por onde circula. A pé. Foi assim que esbarrou com um hidrante e o transformou em marcador informal dos percursos que faz – além de arte e livro.
Antes de ser documentarista, roteirista e jornalista, Laura é pedestre. E por isso acaba depositando, às vezes sem querer, porções de suas experiências como caminhante em tudo que faz. Como repórter de moda, se destacou ao indicar lugares que pouca gente conhecia. Como diretora de filmes, investigou personagens que tinham um relação intensa com a cidade. Em “O Ponto Firme”, doc que conta a história da primeira coleção de roupas do projeto social criado pelo estilista e professor Gustavo Silvestre, desenvolvido dentro de uma penitenciária paulista, mostra o significado que a rua tem para os alunos – e o impacto causado por não poder frequentá-las. O filme pode ser visto até 25 de abril, durante a semana Fashion Revolution.
Na nossa conversa para o “Mulheres e a Cidade”, Laura falou sobre sua relação com a arquitetura, os caminhos que a levaram para o mundo a moda e os atravessamentos que só uma cidade como São Paulo pode causar em quem está sempre atenta ao que está acontecendo ao redor.

Larissa Saram: Laura, queria começar falando sobre a sua relação com o seu avô, o arquiteto Vilanova Artigas. Qual foi a influência que ele teve na sua forma de enxergar a cidade?
Laura Artigas: Meu avô nasceu em Curitiba, veio para São Paulo quando tinha 17 anos para estudar engenharia porque, na época, não tinha faculdade de arquitetura. Foi ele, aliás, quem fundou a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo]. Ele era uma pessoa com viés político bastante claro, comunista, então tentava trazer nas obras sempre algum estímulo para a convivência. Em todo o projeto dele, e isso aparece principalmente nas casas, que é o primeiro laboratório social de uma família, de uma pessoa, a sala é o melhor lugar para ficar. Os quartos não são agradáveis. O prédio da FAU, que acho que é a obra prima dele, é um projeto em que as pessoas têm muita noção do próprio corpo porque não tem porta, quando tá frio, tá frio; quando tá calor, tá calor. Então ele tá ensinando sobre convivência. Tem também o Edifício Louveira, que fica em Higienópolis, aqui em São Paulo, e que mistura a casa com a cidade, a pracinha do prédio é a continuação da Praça Vilaboim. É uma construção que, na época, ninguém queria comprar porque desafiava os padrões de quem morava nos casarões ao redor. Essa interação entre a casa é a cidade era uma tônica. Da minha parte, nunca convivi com meu avô, quando ele morreu, eu tinha 4 anos. Acho que esse legado dele veio por osmose, os lugares muito fechados, sem ventilação cruzada, me incomodam. Não sou extamente uma expert em arquitetura, acabei me envolvendo mais com o mundo da moda
LS: Que tem um diálogo com a arquitetura também, né!?
LA: Sim, estão completamente conectados, os fazeres das duas áreas são parecidos. E a moda e a arquitetura são as coisas mais cotidianas, né? Você vive numa casa, está convivendo com uma arquitetura; você põe uma roupa para sair de casa, você está experienciando moda. Mas o que é cotidiano vai ficando invisível, às vezes é preciso se policiar pra lembrar delas. Esse é um dos desafios quando se mora numa cidade como São Paulo, não entrar completamente no modo automático. O que você viu hoje na cidade? O que que chamou sua atenção? Sempre tive esse hábito de anotar as coisas legais, as coisas estranhas que tinha visto pela rua.
“O mundo da moda é o primeiro lugar a
acolher as novidades. Quando você anda
na rua, a moda vai te dando informação
do que tá acontecendo na sociedade”
LS: Como a sua experiência de ser uma observadora da cidade te levou para esse caminho da moda?
LA: O mundo da moda é o primeiro lugar a acolher as novidades. Quando você anda na rua, a moda vai te dando informação do que tá acontecendo na sociedade. É interessante ver os movimentos, foi legal ver a ascensão da pochete. Hoje, no metrô, todo mundo tá usando. E antes era “nossa, imagina, é cafona”. O comprimento das peças, por exemplo, mudou. No ônibus, vejo as mulheres usando uma saia mais curta, cropped, sem se preocupar tanto em como vai ser olhada. Nos anos 90, a gente não usava. Para nossas avós, mães, era impensável. A moda na rua é um bom diagnóstico da sociedade. Eu tinha um blog, o “Moda pra Ler”, e ele fez um relativo sucesso porque eu tinha essa coisa de repórter, de ir mesmo nos lugares, explorar, registrar tudo. Até hoje uma das matérias mais lidas é um guia do Bom Retiro. Lá era um bairro que eu frequentava porque minha mãe estava sempre comprando coisinhas de costura.
LS: E como você acha que a cidade atravessa a moda?
LA: Tem um exemplo bom, que é uma amiga que morava num bairro onde fazia tudo de carro e agora mudou para outro onde faz tudo a pé e me disse que vai precisar comprar um tênis e parar de usar roupa de poliéster. A interação com a cidade influencia o tecido da roupa que você vai escolher usar. Em São Paulo, por exemplo, as pessoas não são muito ousadas com cor. Óbvio que existem as bolhas da galera mais fashionista, mas no inverno, se você entra no ônibus, é muita gente de preto porque essa é uma cidade mais do pragmatismo, não há tempo para ficar elaborando que cor de roupa você vai usar. A cidade molda completamente a nossa personalidade.

LS: Você tem um projeto interessante de fotografar hidrantes – e isso virou exposição e agora, livro. Como ele foi criado?
LA: O hidrante é uma coisa bem comum em desenho animado, um ícone nos Estados Unidos, mas aqui em São Paulo eu os descobri por acaso, durante um curso de fotografia. Estava andando pela região da avenida Paulista quando avistei um, ele ainda existe, aliás. De repente, os hidrantes começaram a saltar na minha frente. Fiz o trabalho de fotografia sobre eles, era 2013, mas o professor não deu muita bola, Anos depois, quando comecei a usar o Instagram, fui postando as fotos e vendo que o hidrante tem uma relação profunda com as cidades. Essas fotos viraram uma exposição.
LS: E o livro?
LA: Quando fiz a exposição, como era arte contemporânea, escrevi uma crônica para ser o texto de parede, queria que as pessoas entendessem. A partir dela, escrevi um livro para o meu TCC na pós-graduação de Formação de Escritores, que terminei agora. É basicamente a investigação da história dos hidrantes, por que estão em São Paulo, da onde vieram. E nós quase não temos dados sobre isso, sabia? Conversei com bombeiros, engenheiros hidráulicos, gente da Secretaria de Segurança Urbana. A partir dessas pesquisas, fui descobrindo outros jeitos de olhar a cidade. Os hidrantes me sinalizam que estou prestando atenção ao redor, que não estou focada no celular ou em outras coisas. Espero lançar o livro em breve.
LS: Quando os hidrantes passaram de objetos que você fotografa para um geomarcador da cidade?
LA: Em 2015 rolou um incêndio numa comunidade na zona sul e todos os hidrantes não funcionaram. Foi quando deu um boom de notícias nos jornais sobre eles. Hoje em dia, já apurei, tem um comitê que tá regulando de quem é a responsabilidade – se da Sabesp, da Defesa Civil, dos Bombeiros. Pesquisei e desde os anos 20 os incêndios importantes que aconteceram no país não foram combatidos como deveriam porque o hidrante não funcionou ou tava longe. Acompanho a saúde deles e rolou uma zeladoria recentemente, pelo menos na região do centro, mas eles dão um diagnóstico interessante da cidade. Fazendo um recorte pessoal, para além de me revelar esse perigo iminente de incêndios que a gente vive em São Paulo, tem uma coisa de entender por onde ando porque no mapa, os hidrantes são marcadores informais dos percursos que faço. No fim, não me locomovo muito por São Paulo. É uma doidera, a gente mora numa cidade gigante, mas o nosso raio de ação é restrito. Ainda mais quando se é pedestre, como eu.
“Fazendo um recorte pessoal, para além
de me revelar esse perigo iminente de incêndios
que a gente vive em São Paulo, tem uma coisa
de entender por onde ando no mapa,
os hidrantes são marcadores informais
dos percursos que faço”
LS: Atualmente você trabalha no mercado audiovisual, como roteirista e diretora. O quanto desses trabalhos carregam a cidade dentro deles?
LA: Eu fiz dois documentários, o “Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz” e “O Ponto Firme”, que conta a história da primeira coleção de roupas do projeto social criado pelo estilista Gustavo Silvestre dentro da penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos. Todos são sobre as minhas duas bases, arquitetura e moda. Nunca tinha pensado sobre isso, mas em um estou mostrando a cidade e no outro eu estou mostrando quem não vive a cidade. “O Ponto Firme” mudou tudo na minha vida. Fiquei 9 meses filmando dentro da penitenciária. Você pode ler toda a sociologia, entender tudo sobre divisão de classe, mas vindo de um lugar de privilégio, que é da onde venho, nunca estamos preparados. A gente sabe o que significa o sistema prisional no Brasil, então é muito forte estar lá dentro. Quando acabava a filmagem, saia de lá e pensava: estou livre, posso andar para onde quiser. Tem duas mil pessoas lá que não podem. E eles usam muito essa expressão “quando for para a rua”, “quem vem da rua”. A rua é sinônimo de liberdade para eles. Pensando agora, os filmes quase provocam um ao outro.

LS: Este ano você deve lançar ainda o “Palavra Expressa”, da Letícia Costa. Já dá para contar um pouco sobre a série?
LA: Sim, esse é um projeto da Letícia, criado por ela, faço parte como diretora e roteirista. A série tem seis escritores indicando os lugares que eles mais gostam na cidade, como se fosse um programa de turismo literário. E é interessante porque eles indicaram lugares pouco óbvios. Tem, por exemplo, um autor do Rio de Janeiro que nos levou em Bangu, que é um bairro que ninguém pensa sobre. Em São Paulo, uma escritora falou da Feira do Leste Europeu, na zona leste. E é isso, a Leticia uniu a literatura e a cidade para oferecer a visão do escritor como um guia turístico.
LS: O que mais te fascina em morar numa cidade como São Paulo?
LA: Tento me programar para conhecer mais São Paulo. Esses dias, peguei o monotrilho para ir até Sapopemba e ver uma avenida que tem o nome do meu avô. Dei uma volta pelo bairro, visitei a Casa de Parto que tem lá, um porjeto muito legal do SUS. Quando você anda pela cidade, você quebra preconceitos, paradigmas, mas é preciso estar disposta. Dá trabalho. É acordar cedo, pegar metrô as vezes cheio, andar por lugares que talvez você não se sinta tão segura. Tem que ter uma disposição para isso mesmo, mas vale a pena. O que mais me dá alegria é ir para os lugares que não conheço.
LS: E quais são seus maiores desejos para a cidade?
LA: Ter habitação para todo mundo. E passa por temas complexos como especulação imobiliária, extinção de áreas verdes e falta de moradia. É bem clichê o que estou falando, mas são um pouco até as ideias do meu avô. Foi o que ele tentou fazer a vida inteira, talvez nisso a gente seja parecido.