
Mariana Duarte foi a um restaurante com seus dois filhos, sendo o mais novo uma criança de um ano e meio. Ele estava desconfortável, não queria ficar no carrinho. Enquanto tentava acolher o menino, percebeu uma conversa mais alta, que vinha de um grupo de homens, instalados na mesa em frente: “Eles falavam o quanto criança incomoda e o quanto era chato elas estarem em todos os lugares. Aquela situação estragou o almoço, fiquei nervosa, mas acabei nem tendo coragem de confrontar”, contou ela durante a nossa conversa para esta entrevista do Mulheres e a Cidade.
Não foi a primeira vez que Mariana passou por uma situação desse tipo. Foi por isso que ela criou há pouco mais de 1 ano o “Aqui cabe uma criança?”, coletivo que tem como proposta conscientizar sobre a importância da participação das crianças na sociedade a partir de encontros por diversos lugares pela cidade que valorizem e respeitem elas e suas famílias e as coloquem de volta em seu lugar de direito, que é o convívio social.
No papo a seguir, Mariana deu mais detalhes sobre o coletivo e falou sobre a importância de abrir mais espaços e acolher mães e crianças no espaço público:

Larissa Saram: O “Aqui cabe uma criança?” tem 1 ano. Por que criar um projeto como esse?
Mariana Duarte: O “Aqui cabe uma criança?” tem 1 ano, mas ele surgiu mesmo há 9, quando fui mãe aos 22 anos. Eu era muito nova, mas rapidamente percebi que as pessoas não queriam e não aceitavam que eu estivesse em certos lugares com o meu filho. Ou eu tinha que ficar em casa com ele ou deixá-lo com outra pessoa para poder frequentar teatros, museus, shows, roda de samba. Percebi que a presença dele incomodava muitas pessoas.
LS: E como funciona o coletivo hoje?
MD: Nossa comunidade tem hoje muitos braços. Promovemos encontros presenciais em espaços culturais da cidade como rodas de samba, shows, restaurantes. E só o ato da gente andar em grupo, de metrô, na rua, já é algo que chama muito atenção. As pessoas sempre param para olhar essa quantidade de bebês – e geralmente são 15, 20. Já a nossa comunidade online tem 900 pessoas e lá se formaram vários grupos: apoio para mães, apoio para pais, um para toda a família, um grupo exclusivo de compras coletivas e descontos, outro de desapegos, para promover um consumo mais consciente, e um em que a gente combina encontros fora da programação oficial. Tudo isso é gratuito. Os encontros presenciais também.
“A nossa comunidade
tá sempre em conflito
com a cidade porque
os lugares não estão
preparados e a gente
tem que sempre mostrar
o despreparo deles”
LS: Qual é o principal desafio quando rolam esses encontros presenciais?
MD: Brigar por espaço, pelo nosso direito de estar nos lugares. Sempre que a gente chega, temos que brigar para poder entrar com um carrinho, brigar para o bebê poder andar no chão, brigar para ter um trocador, brigar por acessibilidade. A nossa comunidade tá sempre em conflito com a cidade porque os lugares não estão preparados e a gente tem que sempre mostrar o despreparo deles.

LS: Já sofreram algum tipo de retaliação?
MD: Recentemente estávamos como coletivo em uma exposição e fomos praticamente perseguidas por seguranças. Tinha um atrás de cada mãe com criança, sempre falando que não podia chegar perto de tal obra. E a gente sabe, né? Temos todo um cuidado para visitar os espaços justamente para não causar nenhum dano. Foi como se estivéssemos fazendo alguma coisa errada por estar lá com as crianças, né? Foi meio constrangedor.

LS: Esses desconfortos são constantes?
MD: O que fez o projeto começar e continuar é exatamente isso: o despreparo dos lugares para receber crianças e o tratamento hostil que elas recebem por andar pela cidade fora das escolas, parques e “espaços kids”. Cresce o número de pessoas que não querem ter filhos e isso é facilmente confundido com o “não precisar” conviver com as crianças. Enquanto uma coisa é uma decisão legítima e completamente individual, a outra é coletiva e não é opcional. Crianças fazem parte da sociedade e você escolher ou não ser responsável direto por uma, não muda isso. E quando a gente diz que não quer conviver com crianças, não quer frequentar lugares que crianças frequentam e não se importa com o bem estar dessas crianças, automaticamente estamos excluindo outra mulher. Seja a mãe, a avó, a babá. É sempre uma mulher que cuida dessa criança e deixa de frequentar esses espaços. Acho fundamental que a gente olhe pra esse lado “menos romântico” da infância também.
LS: Imagino que nos encontros presenciais há uma troca importante entre quem participa. Quais foram os aprendizados pra você?
MD: A comunidade me ensinou muito sobre a importância do encontro, sobre como é importante a gente encontrar pessoalmente outras mães e famílias que estão passando pelo que a gente está passando. Mesmo que não seja em um encontro da comunidade, só de esbarrar com outra mãe na rua, que tá ali com um bebê, quando a gente se olha, já nos identificamos, sabemos o que a outra tá passando. É uma experiência que me ensina muito o tempo todo.
LS: Por que acha que ainda há tanta gente que acredita que há espaços que não devem receber crianças?
MD: Eu não sei em que momento foi normalizado ou quando começou essa cultura de que criança incomoda, faz barulho, quebra coisas e é por isso que elas precisam estar num espaço separado. Que elas só podem frequentar a escola e os espaços kids e atividades para crianças. Que se você quer um momento sossegado, quer sair para jantar com alguém, se quer silêncio, paz, não pode ter crianças nesse local. Acho que ainda tem tanta gente que apoia esses lugares que excluem crianças justamente porque a gente vem de uma cultura que relaciona a criança a algo ruim. E a gente só vai conseguir mudar isso quando a nossa sociedade olhar para a primeira infância com a importância que ela têm. As crianças realmente são o futuro do nosso país e a gente precisa cuidar delas, tratar isso com muito cuidado. Então enquanto todo mundo não se envolver no cuidado das crianças, enquanto todo mundo não se sentir responsável pelas crianças da nossa cidade, a mudança não vai acontecer. Enquanto a criança for responsabilidade só da mãe, só do cuidador principal, isso dificilmente vai mudar porque a criança precisa ser um cuidado coletivo. E a partir do momento que ela for um cuidado coletivo, as pessoas vão começar a entender que elas merecem estar em todos os lugares, que é um direito delas.
“A gente só vai
conseguir construir
políticas públicas
e espaços seguros
e acolhedores para
as mães e crianças
quando a gente colocar
mães na política,
quando a gente
apoiar projetos
de mães que cuidam
de outras mães e
de outras crianças”
LS: Como promover uma mudança?
MD: Eu sempre falo que se a gente tivesse uma cidade boa para as crianças, a gente teria uma cidade boa para todo mundo. Então, é muito difícil você andar com um bebê no carrinho ou com uma criança que está aprendendo a andar nas ruas extremamente esburacadas de São Paulo, com falta de acessibilidade nas calçadas e no transporte público. Também faltam árvores, praças, faltam espaços mais seguros e acolhedores para as crianças andarem. E eu acredito muito que a gente só vai conseguir construir políticas públicas e espaços seguros e acolhedores para as mães e crianças quando a gente colocar mães na política, quando a gente apoiar projetos de mães que cuidam de outras mães e de outras crianças. Porque, sem isso, enquanto tudo estiver sendo feito por homens que não cuidam, que não pensam na infância, a gente não vai conseguir mudar esse cenário efetivamente.

LS: Como é uma cidade feita para crianças?
MD: Uma cidade feita para as crianças é uma cidade que não tem pessoas morando na rua, que não tem crianças passando fome, fora da escola. É uma cidade que acolha as mães, que tem árvores, iluminação, segurança para ir e vir, espaços pensados para infância e para as mães, que são as principais cuidadoras dessas crianças. É uma sociedade que olha para a infância e cuida da infância.