Comportamento

entrevista com Jucinara Lima

“Registrar a quebrada é um ato de valorização, resistência e amor pelo lugar de onde eu vim”

Conhecida por clicar jogos de várzea em toda a cidade, a fotógrafa ultrapassa as demarcações do campo de futebol para captar subjetividades de pessoas e as belezas de lugares quase sempre esquecidos. Por Larissa Saram

A fotógrafa Jucinara Lima, a Juh na Várzea | Foto: Arquivo pessoal

As noites de sexta-feira são de planejamento para Jucinara Lima. Assim que sua mãe chega do trabalho, ela leva as duas filhas, de 14 e 7 anos, para a casa da avó. Aí faz o caminho de volta e já deixa câmera, equipamentos, mochila, tudo no esquema para o dia seguinte. O destino pode ser em Taipas mesmo, bairro da zona norte de São Paulo onde Jucinara mora há mais de 30 anos, ou em qualquer outro ponto da cidade em que esteja marcado uma partida de futebol de várzea. 

Depois de trabalhar como atendente de telemarketing, vendedora e até de ter uma loja de produtos de limpeza, foi na fotografia que Jucinara, a Juh da Várzea, como é mais conhecida, encontrou realização. Mais especificamente clicando torcidas e jogos amadores – apesar de que as imagens que faz vão bem além de resultados de partidas e público empolgado. Ela é figura feminina rara entre uma (ainda) maioria de homens que atua na organização e realização dos campeonatos. “É um ambiente 90% masculino, então persisto todos os dias em furar essa bolha pra mostrar que esse machismo precisa ser derrubado”, disse a Ju durante a conversa que tivemos via WhatsApp para esta primeira edição de 2025 da newsletter “Mulheres e a Cidade”

No papo, a fotógrafa também contou mais da sua história, a relação com o bairro onde mora e o exercício diário para encontrar beleza em lugares pouco vistos por uma parte da população de São Paulo.

Clique da Jucinara | Foto: Divulgação

Larissa Saram: Como a fotografia chegou na sua vida?
Jucinara Lima:
Eu era pequena e minha mãe tinha uma máquina de filme, eu gostava de fazer uns registros, de levar o rolo pra revelar, de saber como ficaram as imagens. Era legal esse mistério de como sairia as fotos. Mas eu não imaginava que poderia ser minha profissão. Mas pós uma oficina cultural de vídeo que fiz, se não me engano, em 2014, tive contato com uma câmera no qual o professor fez uma foto da turma. Quando vi as imagens, meus olhos brilharam diferente, falei: quero fazer isso. E fui atrás desse sonho.

Foto de Jucinara Lima

LS: Hoje você é conhecida por fotografar jogos de futebol amador, no Instagram é a Juh na Várzea. Como essa história começou?
JL: Tinha uns dois colegas que faziam fotos de futebol e eu admirava demais. Despertou em mim essa vontade de registrar jogos, de saber como sairiam minhas imagens. Aqui na quebrada tem um time que é dos amigos, então eu colava e em 2016 pra 2017 comecei a arriscar alguns registros. Curti  e não parei mais. Já conheci diversos campos de São Paulo, já fotografei tantos times que perdi até a conta. As redes sociais são uma ferramenta bem interessante porque, logo no começo, lancei meu Instagram pra divulgar essas imagens. Intitulei como Juh na Várzea. Ao longo do tempo geral começou a me seguir e quando me encontravam em algum campo, já vinham me cumprimentar: “E aí, Juh na Várzea?”. Isso é uma das coisas bacanas que meu trabalho pode me proporcionar, toda essa conexão e vivência.

“Tantas vezes tentei
trabalhar em empresas,
mas chegava nas entrevistas,
quando falava que tinha filhas,
nunca recebi um retorno.
Encontrei no futebol de
várzea minha profissão
e renda, isso foi uma
grande transformação”

LS: Como uma pessoa que acompanha bem de perto o futebol de várzea, como acha que o esporte pode transformar uma comunidade?
JL: Acredito no esporte como ferramenta de transformação. Nós, que somos da comunidade, sabemos bem a realidade, vivemos e vemos como o futebol abrange e muda muita coisa. Às vezes, um campo no meio da favela é o único lazer que a criançada tem. Tem projeto de futebol que eles fornecem lanches e, muitas vezes, essa é a única comida que a criança tem no dia. Muitos times e projetos se juntam pra doar cesta básica pra galera da comunidade e isso é o que faz chegar uma comida na mesa. Um dia de campeonato que movimenta toda uma galera em um campo pode ser uma fonte de renda extra pra aquela tia que vende gelinho, o tio que precisa completar a renda e vende uns refris, uns salgadinhos. Não posso esquecer que eu própria sou exemplo disso: sou mulher e mãe. Tantas vezes tentei trabalhar em empresas, mas chegava nas entrevistas, quando falava que tinha filhas, nunca recebi um retorno. Encontrei no futebol de várzea minha profissão e renda, isso foi uma grande transformação.

Juh durante uma das coberturas de campeonato | Foto: Arquivo pessoal

LS: E qual é a importância de dar visibilidade para esses eventos através da fotografia ?JL: O futebol de várzea é parte essencial da identidade de muitas comunidades. Fotografar  esses momentos ajuda a preservar e destacar uma cultura popular rica, que muitas vezes não recebe atenção da grande mídia. A fotografia não mostra só um jogo em si, ali contém muitas pessoas, cada um com sua história. Mostra emoções, vibrações e interações. Mostra como são importantes esses eventos como espaços de socialização, pertencimento e troca de experiências. Mostra o quanto a várzea é importante dentro da comunidade.

LS: Quais são os principais desafios de ser uma mulher trabalhando na rua? 
JL: Na rua, acredito que é minha segurança pessoal. Aquele medo que rola de pegar um Uber à noite, de alguém seguir, de ser roubada. Enfim, esses medos que assombram todas nós. 

“É chocante saber que
tem muitas mulheres
competentes e melhores
que muitos caras, mas
eles seguem lá por ser os
“parças” de quem tá na
liderança. É um ambiente
90% masculino, então
persisto todos os dias
em furar essa bolha pra
mostrar que esse machismo
precisa ser derrubado”

LS: E uma mulher fotografando futebol?
JL: No futebol, acredito que o principal desafio é a falta de valorização da fotografia e também a luta pelo mesmo respeito e reconhecimento que os homens têm no mercado da fotografia. É chocante saber que tem muitas mulheres competentes e melhores que muitos caras, mas eles seguem lá por ser os “parças” de quem tá na liderança. É um ambiente 90% masculino, então persisto todos os dias em furar essa bolha pra mostrar que esse machismo precisa ser derrubado.

Foto: Jucinara Lima

LS: Vi no seu instagram uma foto em que a legenda diz: “Gosto de registrar a quebrada”. Como é essa relação de fotografar pessoas e lugares que estão mais nas bordas?
JL: Gosto de fotografar a quebrada porque é de onde sou, de onde vim. A quebrada é feita de gente com muita história pra contar, é feita de gente que tem afeto, humildade. Ver as pessoas e mostrar além delas, o afeto é grandioso, não faz distinção. Chego pra fotografar alguém, já vão me acolhendo, contando suas histórias, me oferecendo cafezinho, água, perguntam se você não quer comer, me oferecem até cerveja [risos]. Em qual lugar você tem uma recepção massa assim? É uma vivência que só quem tá nela sabe como é e vai se identificar. Registrar a quebrada, pra mim, é um ato de valorização, resistência e amor pelo lugar de onde eu vim.

“Olho pras pessoas com
respeito e curiosidade,
em saber o que torna
elas únicas. É um espaço
que resiste e se reinventa
diariamente, uma beleza
crua, sincera e
profundamente humana”

LS: Muita gente acredita que não existe beleza nas periferias. Pra você, onde ela está? Qual exercício faz com o olhar para encontrá-las quando fotografa?
JL: Gosto muito de usar uma frase em meus trabalhos: “a beleza está nas coisas simples”. Então, pra mim, a beleza está numa tarde ensolarada, onde duas crianças estão de sorrisos largos, brincando, se molhando com um balde de água e uma panela. A beleza está num jogo de futebol das crianças, que quando acaba, uma das crianças vai até seu técnico que é deficiente visual e põe a medalha no pescoço dele. Aquela criança que corre descalça no campo de terrão toda feliz com tênis na mão e chutando a bola. O vendedor do bar que conhece todo mundo pelo nome. Os amigos que se reúnem pra juntar brinquedos no fim de ano e fazer doação no meio da comunidade. Eu sou ligada a emoções e procuro registrar elas, não gosto de fotos posadas. Já reparou em como ficamos desconfortáveis quando temos que fazer alguma pose pra foto? E quando alguém te registra sem você perceber, ali foi capturado você na sua autenticidade. Olho pras pessoas com respeito e curiosidade, em saber o que torna elas únicas. É um espaço que resiste e se reinventa diariamente, uma beleza crua, sincera e profundamente humana.

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