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entrevista com Renata Falzoni

“A bicicleta me deu o direito à cidade e o tempo acabou com o assédio contra o meu corpo” 

A cicloativista e vereadora Renata Falzoni enfrenta, aos 71 anos, seu mais novo desafio: fazer da mobilidade urbana um tema essencial para a política pública São Paulo. Por Graziela Salomão

A cicloativista e vereadora de São Paulo Renata Falzoni | Foto: Marco Pinto

Alegre, com um sorriso escancarado, mesmo após a recém-cirurgia de hérnia de disco realizada no fim do ano passado e da qual ainda está se recuperando. E cheia de energia. É assim que Renata Falzoni nos recebe em sua sala na Câmara dos Vereadores na primeira semana de mandato. A cicloativista, arquiteta e jornalista experimenta, aos 71 anos, um novo desafio: ser vereadora da maior metrópole da América Latina que, a cada ano, está mais congestionada e lotada de automóveis. A lentidão no trânsito passou de 331,1 km para 343,3 km, como mostram dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) na comparação de janeiro a dezembro de 2023 e 2024. A cidade que tem orgulho de dizer que nunca para está perdendo, ano após ano, esse título para os infinitos congestionamentos. 

O desafio de Renata para os próximos 4 anos é grande: mostrar que a mobilidade urbana é uma pauta essencial para a cidade e sem lado político. “É uma pauta de todos e para todos”, diz, na entrevista desta semana do Mulheres e a Cidade que, durante o mês de janeiro, traz figuras femininas que têm impactado na construção de São Paulo, prestes a completar 471 anos. A nova vereadora garante que a transversalidade será a marca registrada de seus projetos. “Nossas propostas precisam trazer transparência na inclusão da mulher e na da pessoa que se move sem veículos com motor. Tudo isso deve estar combinado com o transporte coletivo”, reforça. 

Eleita com 30.206 votos pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), ela tem sentido na pele as dificuldades que as ruas paulistanas impõem a quem não está dentro de um carro. Ainda se recuperando, tem andado mais à pé e com uma bengala pelas calçadas. Os desníveis e o curto tempo para atravessar as ruas antes do semáforo fechar são grandes impedimentos no ir e vir. E metas a serem enfrentadas durante o mandato. “Também quero inserir uma política gradual de municipalização das calçadas para que elas sejam de boa qualidade e convergentes com o transporte coletivo, cada vez mais precarizado“, afirma.

Cicloativista há mais de 40 anos e criadora do projeto “Bike é Legal”, Renata descobriu na bicicleta uma forma de se locomover pelo espaço urbano com liberdade e segurança. “Quando adotei a bicicleta, ela me propiciou viver a cidade de uma forma que a pé, ou de carro, não poderia porque sempre precisava ter um homem do lado para poder existir como cidadã”, diz. Era um ato de resistência, principalmente em um período onde as normais sociais não viam com bons olhos a presença feminina no espaço público, e que seria importantíssimo para ela formar ainda mais a personalidade combativa e corajosa, sua marca registrada.

Cicloativista há mais de 40 anos, Renata quer transformar o tema da mobilidade urbana em políticas públicas essenciais para a cidade | Foto: Marco Pinto

Graziela Salomão: Você assume essa semana um novo desafio na sua carreira que é ser vereadora de São Paulo. Como surgiu essa vontade?
Renata Falzoni: Dediquei a vida inteira à militância de uma causa, tirando tempo da vida privada, da família, do descanso, e consigo trazer para o gabinete pessoas que pensam igual para militar sobre essa questão. Mesmo sabendo que não será fácil, estou feliz em ter um capital humano forte ao meu lado. Aos 71 anos, não tenho medo de me acomodar. Aliás, ser vereadora agora foi uma grande solução para não me acomodar. 

GS: Essa foi a quarta eleição da qual participou, mas a primeira a ser eleita. Como foi isso pra você?
RF:
Em 1996, fui candidata a vereadora pelo PSDB e tive 8.800 votos, mas não entrei. Naquela época, as campanhas eram menos regradas e dentro de um ambiente extremamente machista. Não gostei. Em 2020, fiquei como suplente, mesmo tendo 30 vereadores eleitos com menos votos do que eu tive por causa da composição do partido. Foi uma pena porque fizemos muita falta nessa gestão, já que tivemos um retrocesso na área de mobilidade ativa e no transporte coletivo. Não teve nenhum vereador cuidando do assunto e denunciando isso para que não se cristalizassem. Hoje temos um desafio grande de descolar da ideia da opinião pública de que essas pautas são de esquerda. Elas devem ser, como a educação e a saúde, uma pauta de todos, sem depender do viés político. Garantir a mobilidade é obrigação de Estado. 

GS: É urgente pensarmos em medidas sustentáveis para salvar o futuro da cidade. Como você lida com essa ideia de futuro e da responsabilidade tanto dos políticos quanto da sociedade?
RF:
Finalmente as pessoas estão parando para ouvir sobre mudanças climáticas. Estamos tentando mostrar que essas catástrofes estão diretamente ligadas às mudanças climáticas há tanto tempo e somos sistematicamente ignorados. Quando se fala em saúde, em mobilidade, tudo isso está diretamente relacionado a uma questão ambiental que, por sua vez, está diretamente relacionada ao assunto das alterações climáticas. Esses temas não se separam. Precisamos promover a transversalidade das pautas e a inclusão da mulher. É preciso sempre, antes de finalizar um projeto, pensar “tá bom pra mulher?” porque, se estiver, estará bom pra todos. E falo de todas as secretarias. 

“Tenho que reconhecer que andar a pé é melhor que de bicicleta porque você se a cidade de outra forma”

GS: Você é uma flâneuse? O que caminhar pela cidade traz para você?
RF:
Sou e estou triste porque tenho andando de Uber e de carro esses dias. Gosto de andar na rua, de bicicleta, mas tenho que reconhecer que andar a pé é melhor que de bicicleta porque você vê a cidade de outra forma. O ciclista está sempre tentando sobreviver, então o foco dele está só nos automóveis. Quando tenho um problema e não encontro a solução, paro de trabalhar, vou para o parque do Ibirapuera, começo a andar e daqui a pouco a resposta chega. O foco está todo em você, e não pensando na sobrevivência. 

GS: Você começou a usar a bike como meio de transporte em 1976. Como foi entender a bicicleta como forma viável de se mover pela cidade?
RF: A história da evolução da bicicleta está ligada ao empoderamento feminino, às sufragistas, à mudança das roupas femininas, ao direito de andar, ao acesso à cidade. Em 1976, uma mulher sozinha na rua era xingada, apalpada, desrespeitada, um comportamento já esperado dos homens. Imagine eu, naquela época, pegando uma bicicleta e os homens percebendo que tinham perdido a chance de serem violentos comigo? Experimentei um acesso à cidade, uma Independência e um prazer incríveis. O que aconteceu comigo foi nada mais do que um efeito bicicleta: uma pessoa que se libera de uma pressão geográfica, pessoal e emocional da sociedade dos homens. Em 1977, fiz uma viagem de carona por todo o Brasil e fui até Belém. No ano seguinte, fui para Amazônia e conheci Chico Mendes. Foi um aprendizado incrível sobre o Brasil. Depois fiz a América Latina. Tudo isso moldou o final da minha personalidade e, cada vez mais, fui recusando o motor para me locomover pela cidade. Não consigo entender a vida dentro do carro. A cidade que eu vivo não tem nada a ver com aquela na qual as pessoas são escravas do automóvel. A minha São Paulo não é a mesma da de todos esses parlamentares que estão aqui. Por isso é importante trazer essa visão para dentro da Câmara. 

GS: Durante a campanha, você falou que seus grandes objetivos eram diminuir a violência do trânsito, aumentar a malha de ciclovias. Como acha que conseguirá?
RF: Também quero inserir uma política gradual de municipalização das calçadas para que elas sejam de boa qualidade e convergentes com o transporte coletivo, cada vez mais precarizado. Essas mudanças acontecerão com dados para que, quem se opõe, entenda a importância disso. A Nossa São Paulo sempre fez boas pesquisas em relação à mobilidade e mostrava que, desde 2005, mais de 50% das pessoas deixariam seus carros se tivessem condições de andar a pé, em transportes coletivos e ciclovias. Esse é um anseio da população. Se você faz acontecer, e a gente viu isso na gestão de [Fernando] Haddad acontecendo, as pessoas aceitam. A gente precisa fornecer projetos bons e interessantes e economicamente viáveis.

Renata Falzoni em um dos passeios do Night Bikers nos anos 1990 em foto publicada na revista Trekking | Foto: Reprodução/Facebook

GS: Você acha que a violência da cidade afasta as pessoas das ruas?
RF:  De fato há violência, mas não é só isso. Se tiver mais condições e infraestrutura, a gente ocupa mais a rua. É ruim andar na calçada toda esburacada, não ter faixa de pedestre no lugar que se quer, um semáforo que nunca fica aberto, um ônibus que é ruim. Mas as pessoas estão na rua. Hoje, 33% das viagens são feitas a pé e, fazendo um recorte, 42% das mulheres andam exclusivamente a pé. A violência é uma retórica que a classe média defende atrás dos automóveis. Quando olhamos pra massa, ela está na rua.

GS: A economia do cuidado, na qual estamos inseridas, tem em um de seus pilares a marcha das sacolinha. Por isso a questão da mobilidade afeta tanto às mulheres. Como trazê-las para essa discussão?
RF: Tenho uma palestra que começa assim “Quanto tempo você gasta no seu deslocamento?”. A mulherada começa a rir porque ela faz muito mais viagens do que o homem. Quando se traz esses números, as mulheres estão muito mais na rua por essa responsabilidade colocada sobre elas. Trazer esse debate começa pela transversalidade. E como incluir? Colocando o homem pra cuidar da família. O jeito como a divisão do trabalho está na nossa sociedade exige muita abdicação da mulher. É preciso mudar isso para que ela possa se apropriar do direito e do dever de se incluir na política. 

“São Paulo é deliciosa, cheia de gente na rua. Em qualquer lugar sempre há alguma coisa acontecendo. Se todo mundo tivesse um pouquinho de carinho por essa cidade, ela seria cada vez mais vibrante e melhor.”

GS: De onde vem sua paixão por São Paulo?
RF: Moro na casa vizinha de onde nasci no Itaim. Adoro muitas cidades, mas São Paulo é deliciosa, cheia de gente na rua. Em qualquer lugar sempre há alguma coisa acontecendo. Se todo mundo tivesse um pouquinho de carinho por essa cidade, ela seria cada vez mais vibrante e melhor. Ao contrário de muito paulistano, não sinto o temor da insegurança. Me recuso a deixar isso me abalar. 

GS: E que presente que você gostaria de dar para São Paulo?
RF: A cidade vai ganhar um presente esse ano que o prefeito vai dizer que foi ele quem deu, mas não foi. Será inaugurada a Ciclopassarela Erika Sallum, que atravessa o Rio Pinheiros e vai ligar as regiões de Pinheiros e Butantã. Esse projeto está atrasado há uns 25 anos. Será um divisor de águas pra cidade porque vai conectar a mobilidade ativa de dois lugares muito vivos de comércio e terá pedestres passando por ali. Agora, o que gostaria realmente pra cidade é um resgate do prazer de estar do lado de fora do automóvel. Quero ver São Paulo cheia de gente ocupando o espaço público, calçadas melhores, mais ciclovias, mais árvores e menos motor. Resgatar essa vocação da cidade em ter pessoas na rua. A gente tem solução sim, é só dar um espaço para as pessoas. 

“Quero ver São Paulo cheia de gente ocupando o espaço público, calçadas melhores, mais ciclovias, mais árvores e menos motor. Resgatar essa vocação da cidade em ter pessoas na rua. A gente tem solução sim, é só dar um espaço para as pessoas.”

GS: Qual a principal lembrança de um impacto da cidade na sua vida?
RF: A inauguração da ciclovia da Paulista foi muito emblemática e toca a mim e a toda a militância. Chorei. Em 2015, quando Haddad estava fazendo as ciclovias, a oposicão tentou parar os projetos. Em janeiro, quando começam as obras da ciclovia da Paulsita, uma promotora chamada Camila Mansur mandou parar tudo. Foi organizada uma bicicletada como protesto com 7 mil pessoas na Paulista. Ali tínhamos todos os tipos de manifestantes. Foi a maior que o Brasil já teve. Lembro do Haddad me ligar naquela manhã do protesto pra saber que horas começaria. Quando estávamos saindo, avisei que começaria e ele anunciou que tinha derrubado a decisão da promotora. Depois disso, as obras retornaram e, em setembro, o Haddad inaugurou a ciclovia junto com o projeto da Paulista Aberta. Esse tipo de política de ocupar o espaço e fazer as pessoas estarem lá precisa ser retomado. 

Foto: Marco Pinto

GS: Como a cidade te formou como mulher? E como você acha que impacta na vida e na construção da cidade?
RF: O drama do assédio é um problema que o tempo cura. Não vivo mais a pressão de uma jovem, que é um horror e que me moldou a ser uma pessoa masculinizada, agressiva e tudo mais para me defender desse assédio desmedido e permitido quando eu era jovem. Quando adotei a bicicleta, ela me propiciou viver a cidade de uma forma que a pé, ou de carro, eu não poderia porque sempre precisava ter um homem do lado para poder existir como cidadã. A bicicleta me deu o direito à cidade e o tempo acabou com o assédio explícito à violência contra o meu corpo. 

GS: Como quer ser lembrada daqui há quatro anos quando seu mandato estiver chegando ao fim?RF: Como aquela que pautou temas que a oposição abraçou. Se a gente conseguir descolar as pautas de mobilidade, de acessibilidade, de Meio Ambiente da esquerda ou da direita, mostrando que é uma pauta de todos, ficarei feliz.

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