
Sair para uma breve caminhada pelas ruas da cidade é perceber que casas que já passaram de geração em geração, ou aquela vendinha que sempre era uma parada depois do trabalho, deram lugar a prédios a perder de vista. Viver em uma megalópole como São Paulo é ver o avanço de empreendimentos imobiliários gigantescos espalhando seus tentáculos para locais que antes abrigavam histórias.
A verticalização generalizada tornou-se uma discussão fundamental, especialmente depois da revisão do Plano Diretor no ano passado. O projeto, em vigor desde 2014, previa um novo modelo de organizacão do uso e da ocupação da cidade como, por exemplo, concentrar prédios mais altos perto dos meios de transporte coletivos, incentivando o uso deles. No entanto, o redesenho dos bairros depois do Plano Diretor, e sua consequente revisão em 2023, que estendeu ainda mais o espaço possível para as transformações radicais, consideradas por muitos especialistas como um “libera geral” para o mercado imobiliário, é ainda mais preocupante. “Não há a participação das pessoas locais ou o entendimento das necessidades delas. Não há um pensamento voltado ao meio ambiente porque, se realmente existisse, não teriam construções de edifícios com apartamentos com 4 vagas de garagem”, afirma a jornalista e cineasta paulistana Patricia Lobo.
Ao ver a região da Vila Romana, onde mora, e seu entorno virarem um dos focos centrais do mercado imobiliário, trazendo a verticalização como consequência direta, e levando embora as histórias ligadas ao bairro, a cineasta decidiu ir em busca das memórias direto na fonte: através dos relatos de seus moradores. Tudo isso está no documentário “Resistentes”, com roteiro e direção de Patricia, que teve pré-estreia no início de junho no Cine LT3, um cinema de rua em Perdizes, na zona Oeste. A escolha, segundo ela, é para mostrar que esses espaços também são exemplos de resistência a todo esse processo de transformação. “É difícil um dono de de cinema de rua conseguir manter a sala com obras independentes. Isso se deve à falta de políticas culturais públicas abrangentes para formação de público e um sistema econômico mais humanizado”, diz.
O documentário ainda deve ter outras exibições pela cidade e também será distribuído em Portugal, já que muitos dos personagens são de descendência portuguesa. Essa é a forma de a cineasta mostrar que o assunto não se restringe apenas a cidades como São Paulo, mas também se tornou um problema com impacto em diversas partes do mundo. Na entrevista ao “Mulheres e a Cidade” desta semana, Patricia fala sobre a importância de tornar o tema o mais popular possível e do quanto resgatar as memórias de uma cidade é uma forma, também, de salvá-la.

Graziela Salomão: O ponto central do documentário é a questão da verticalização na região que envolve os bairros de Pompeia, Perdizes, Vila Anglo e Vila Romana. Como isso afeta, na sua opinião, a vivência dos moradores no bairro de forma saudável e sustentável?
Patrícia Lobo: Que o processo de verticalização não é um fenômeno que ocorre apenas nos bairros delimitados no documentário é um fato. Ele ocorre na cidade de São Paulo como um todo, do mesmo modo que ocorre nas grandes cidades Brasil afora. O que me intriga é como as coisas são feitas. Não há a participação das pessoas locais ou o entendimento das necessidades delas. Não há um pensamento voltado ao meio ambiente porque, se realmente existisse, não teriam construções de edifícios com apartamentos com 4 vagas de garagem. Apartamentos com 18 – 28 m2 é insalubre pra uma pessoa, imagine a tentativa de um casal, quiçá uma família? Os valores dos apartamentos são abusivos, tudo eleva o preço ao redor desses empreendimentos, o comércio em si, os moradores que sempre estiveram nesses locais acabam tendo que morar em outros bairros por conta dos valores altíssimos. Sem falar das questão do zoneamento e do miolo do bairro que estamos percebendo que não têm sido respeitadas.
“Essas pessoas retratadas no filme resistem há décadas, sobretudo, a esse momento de verticalização. Elas resistem sobrevivendo de seus trabalhos que proporcionam o encontro, a convivência e a relação entre as pessoas.”
GS: Por que o documentário se chama “Resistentes”?
PL: A narrativa que traz as memórias é contada através de pessoas comuns, em sua maioria donos de botecos, ou moradores nascidos nos bairros delimitados no documentário. Essas pessoas retratadas no filme resistem há décadas, sobretudo, a esse momento de verticalização. Elas resistem sobrevivendo de seus trabalhos que proporcionam o encontro, a convivência e a relação entre as pessoas.
GS: Você também escolheu fazer a pré-estreia em um cinema de rua porque eles também são resistentes a essa falta de políticas públicas, né?
PL: Sim, como é do perfil do capitalismo abusivo, as grandes empresas acabam dominando o mercado e é difícil um dono de de cinema de rua conseguir manter a sala com obras independentes. Isso se deve à falta de políticas culturais públicas abrangentes para formação de público e um sistema econômico mais humanizado.
“Coexistir teria que ser uma coisa completamente nova, não esse processo goela abaixo sem a participação das pessoas que ali moram.”
GS: Ao entrevistar as pessoas que fizeram parte do documentário, alguma coisa te surpreendeu?
PL: Todos têm histórias muito boas, como a da Carmen e de seu avô, que foi a primeira ou a segunda pessoa preta a morar no bairro. Também o assunto sobre nós mulheres e todo o caos que vem junto dele em relação ao machismo que surgiu em vários momentos, já que muitos dos bares são liderados por mulheres.

GS: Você nasceu no bairro e, por isso, o amor por essa região? Ou foi um bairro que te acolheu já na fase adulta e essa relação se estabeleceu a partir dai?
PL: Tenho 41 anos e tinha 14 anos quando meus pais se divorciaram. Meu pai veio morar na rua Girassol, na Vila Madalena. Foi a partir disso que se iniciou meu contato na região. Após o término da universidade, morei por 2 anos em Londres. Quando voltei, morei em vários bairros – Perdizes, Pinheiros, Vila Anglo – e, atualmente, estou na rua Aurélia, na Vila Romana. Gosto da região, mas desde a pandemia tenho severas críticas, sobretudo, em relação ao aumento de igrejas evangélicas na redondeza e à mudança drástica do perfil de moradores que, com a verticalização, trouxe mais esse aspecto. Isto me incomoda muito. Não sei se tenho interesse em continuar pela região, é algo a se pensar com calma ainda.
GS: Como você enxerga uma co-existência saudável entre bairro, moradores e a construção de novos prédios para abrigar o crescimento das cidades?
PL: Sou pessimista, não vejo como isso possa ser saudável, mas acredito na luta das pessoas para que o processo de verticalização seja feito de outro modo. Isso é resistir. Coexistir teria que ser uma coisa completamente nova, não esse processo goela abaixo sem a participação das pessoas que ali moram. O que vejo é apenas o interesse do mercado da construção civil e imobiliário visando o lucro dia a dia, doa a quem doer. Para isso é importante existir as pessoas que resistem e buscam seus direitos.
GS: Qual a importância de se resgatar a memória dos bairros para a cidade e para os cidadãos que queremos formar?
PL: Preservar a memória, o patrimônio é respeitar a história, mesmo que ela seja um arquivo, neste caso, um documentário.
GS: Qual mensagem ou alerta você gostaria que ficasse para quem assistir ao doc?
PL: Para que elas compreendam melhor o que está em jogo, sobretudo do ponto de vista do que é o processo de verticalização. As pessoas, de um modo geral, sabem muito pouco sobre isso, e o documentário traz uma discussão que enriquece o debate com um corpo crítico qualificado.