
O quanto um nome define a vida de uma pessoa? Para um dos fundadores da psicologia da personalidade, o psicólogo estadunidense Gordon Allport, isso pode ser determinante já que “o ponto de ancoragem mais importante para nossa identidade pessoal ao longo da vida continua sendo nosso próprio nome”.
Seja como for, quando Guilherme Augusto e Maria Vilma do Amaral decidiram dar à filha o nome de Tarsila lá nos anos 1960, a menina seria a única a ter a mesma alcunha da célebre tia-avó. Tarsilinha, como era carinhosamente chamada pela tia e é conhecida até hoje, não estava herdando apenas o gosto pela arte, mas também uma missão: a de ser guardiã da obra e da história de uma das principais pintoras brasileiras. E nos últimos 25 anos fez isso com maestria. Se você tem aí na sua casa um pôster de “Abaporu” ou de alguma outra obra de Tarsila do Amaral é porque sua sobrinha-neta batalhou bastante para ver o legado da tia se manter vivo na cultura e no imaginário brasileiro.
“Tive o privilégio de conhecer o apartamento dela com quase todas suas obras lá dentro”, diz Tarsilinha, na conversa com o Mulheres e a Cidade em seu apartamento em São Paulo, que transborda a influência da tia famosa pelas paredes, quadros e móveis que adornam sua sala. Sentada na cadeira que foi de Tarsila, ela mescla, entre uma resposta e outra, a experiência da pintora com a sua própria. “Tinha oito anos quando ela morreu, mas é uma memória muito viva porque ia quase toda semana lá. Aprendi a gostar de arte com as obras dela”, conta.
Apaixonada por cavalos desde a infância, Tarsilinha se divide entre São Paulo e a fazenda da família no interior paulista, onde tem um haras e dá aulas de equitação. Depois que começou a trabalhar no legado da pintora, a estudar mais sobre o passado e os documentos que herdou depois da morte da tia, ela se formou museóloga e escreveu dois livros “Tarsila por Tarsila” e “Abaporu: uma obra de amor”. “A minha personalidade foi moldada pelas histórias de família que ouvi, depois pelas minhas pesquisas. Acho que a minha figura representa muito a minha tia”, afirma. A paixão por Tarsila faz os olhos de Tarsilinha brilharem ao relembrar o caminho que percorreu e para trazer a presença da artista para o imaginário popular. “Ela foi uma mulher muito à frente do seu tempo”.

A São Paulo de Tarsila dos anos 1920 e de Tarsilinha um século depois já não é mais a mesma. Muitos cenários que inspiraram a pintora já não existem mais, outros poucos resistem bravamente a uma cidade que não sabe cuidar muito bem de seus espaços históricos. O que persiste, no entanto, passando de geração em geração é o amor pelo centro paulistano. “Desde pequena adorava o centro de São Paulo. É uma coisa que não tinha explicação, até que fui começando a ver que ali estava a história da minha família também”.
Depois de levar o nome de Tarsila pelo mundo, com exposições nos principais museus como MoMa, em Nova York, e, atualmente, em cartaz com uma retrospectiva abrangente dedicada à artista modernista no Musée du Luxembourg, em Paris, Tarsilinha olha o trabalho realizado por anos com muito orgulho. “Dediquei minha vida ao legado de minha tia”.

Graziela Salomão: A sua família tem uma história intrínseca a de São Paulo, né?
Tarsilinha do Amaral: Minha família descende de Brás Cubas [explorador português fundador da Vila de Santos, atual cidade de Santos]. Meu tataravô José Estanislau do Amaral, conhecido como o Milionário e de onde vem a origem desse patrimônio, chegou a montar fazendas de Capivari a Piracicaba. Claro que tem uma parte triste da história relacionada à escravidão, tão comum naquela época do nosso país, mas o que acho bonito é que, como uma pequena soma de dinheiro, ele fez um império. A história do meu tataravô também aconteceu aqui na cidade. Quando ia se fazer o Viaduto do Chá, no centro, ele comprou ruas e tudo ao redor que estava à venda. Tem prédios icônicos e endereços que hoje não existem mais e que eram da família.
GS: E como é a sua relação e era a da sua tia com a cidade?
TA: Desde pequena adorava o centro de São Paulo. É uma coisa que não tinha explicação, até que fui começando a ver que ali estava a história da minha família também. Minha tia morou nas fazendas, foi estudar em Barcelona com 15 anos porque era comum, na época, mandar as filhas para fora, para colégio de freiras. Foi lá que ela fez o primeiro quadro. Quando volta, em um casamento arranjado com um primo, tem a Lúcia, única filha. A diferença cultural dela com o marido era muito grande e, ao descobrir que ele a estava traindo com a cunhada, se separa e vem para São Paulo em 1913. Começa a se interessar pelo estudo da arte, primeiro com a escultura, depois com o desenho e pintura, quando conhece Pedro Alexandrino e Anita Malfatti. Em 1920, vai estudar em Paris e, de lá, troca correspondências com Anita, por onde fica sabendo do movimento modernista e da Semana de Arte Moderna, que foi em fevereiro. Volta ao Brasil em junho de 1922 e é apresentada aos amigos modernistas na tradicional Confeitaria Fasoli, que ficava no centro. Lá conheceu Oswald e foi paixão à primeira vista. Aquilo mudaria a vida dela completamente. No fim daquele ano, volta pra Paris e conhece toda a intelectualidade parisiense, mas falava que foi aqui no Brasil que seu pensamento e sua obra mudaram.
GS: E isso fica muito presente nas obras dela.
TA: A história de Tarsila acontece no centro de São Paulo. O ateliê dela era na rua Vitória, perto do Largo do Arouche. Tem um quadro que ela e Anita estavam pintando no ateliê de Tarsila e, de repente, começam a chegar margaridas sem parar. Quando pergunta quem estava mandando, o entregador diz que era um senhor alto e de óculos: Mário de Andrade. Ele comprou todas as margaridas das barraquinhas ao redor do ateliê e isso resultou no quadro “As margaridas de Mário”, de Anita, e “Margaridas de Mário de Andrade”, de Tarsila. Quando Fernand Léger veio ao Brasil em 1924 ficou hospedado na casa de Tarsila e na do Paulo Prado, que ficavam naquela região também. É uma história em que o centro de São Paulo passa por tudo. O “Abaporu” foi pintado na casa do meu bisavô na Alameda Barão de Piracicaba, onde ela morou com Oswald depois que se casaram.

GS: São Paulo guarda a memória da sua família, né?
TA: Super. A memória da minha família e da Tarsila passa, principalmente, pelo centro de São Paulo. Onde ela ia encontrar com os amigos, ia para festas. Depois as pessoas foram saindo do centro, mas sempre ficando ao redor como Pacaembu e Angélica, onde minha tia chegou a morar. Cada vez que vou conhecendo mais a história, vou gostando mais do centro.
GS: Como essa trajetória da Tarsila por diversas cidades a moldou como mulher?
TA: Tarsila viajou muito pela Europa. Ela era corajosa. A viagem de lua de mel com o primeiro marido, aos 19 anos, foi andar de burro pela Cordilheira dos Andes. Fez uma viagem em 1936 pelo Oriente Médio. E realmente a cidade forma essa personalidade. O começo da obra dela tem muito do campo, das fazendas, depois também vai tendo a influência da cidade. No quadro “São Paulo” a gente vê o Vale do Anhangabaú. Foi aqui que ela viveu essa mudança no olhar em relação à arte ao entrar em contato com os modernistas. Ao formarem o grupo dos 5, em 1922, eles saiam andando pela cidade, marcavam reuniões, saraus. Pegavam o carro do Oswald, um Cadilac verde, e iam até a Serra da Cantareira ler poemas e varavam a noite. A cidade foi o que mudou o pensamento artístico da minha tia e esses encontros a moldaram como pessoa e personalidade. O encontro com Oswald mudou até a forma dela se expressar. Antes tinha aquele visual mais tradicional. Depois, ela joga o cabelo para trás, passa um batom vermelho, vira uma mulher moderna.
“Só temos essa grande artista porque o pai dela a apoiou. Não deve ter sido fácil se a gente pensar na sociedade e em como o meio artístico era visto na época.”
GS: Qual o maior legado que sua tia deixou para São Paulo?
TA: A obra dela traz São Paulo e Paris, mas também traz as cidades do interior porque é inevitável com todo esse contato que ela teve. Ela falava que queria ser a pintora do Brasil e realmente virou. Nessa busca por mostrar o país, se vê muito forte São Paulo nos quadros e desenhos. A cidade era importante na obra dela. Ela tinha um bloquinho e andava com ele pelo centro, desenhando cenas que via. Hoje quero que as pessoas conheçam mais Tarsila, a mulher empoderada há 100 anos, entendam como foi uma precursora, que teve coragem em pintar o que pintou, mesmo sendo de uma família rica. Ela conseguiu fazer isso porque meu bisavô deu suporte, não só financeiro, emocional também. Só temos essa grande artista porque o pai dela a apoiou. Não deve ter sido fácil se a gente pensar na sociedade e em como o meio artístico era visto na época.

GS: Durante muito tempo, você teve a missão de preservar a obra da sua tia-avó. Como foi isso pra você?
TA: Ainda sou guardiã da obra dela. Está tendo uma briga de família, mas sou e sempre vou ser. iz inteira a exposição de Paris que está acontecendo. Por isso digo que nunca vou deixar esse lado de cuidar do legado dela em primeiro lugar. Herdei isso do meu pai que era o guardião dela, e não apenas dos negócios. Ela estava numa cadeira de rodas e meu pai comprou uma perua Kombi para poder levá-la ao médico, em algum evento ou jantar. Era quem cuidava dela. E herdei esse amor por ela. Tive a honra de receber esse nome pelo amor que meus pais tinham por ela. Isso nunca vai sair de mim. Vou fazer por ela. Dei minha vida pela minha tia e pelo legado dela. Sua obra precisa ser mais conhecida e a vida linda que teve precisa ser contada pro mundo inteiro. Tenho consciência do trabalho de resgate que fiz. Comecei a trabalhar com isso há 25 anos e não se tinha essa força. Sei disso a começar pelo nome. Quando eu falava “Tarsila do Amaral” a pessoa não fazia a relação, tinha alguma noção de que existia alguma coisa, mas não lembrava. Hoje, falo meu nome e é automática a relação. Fui a pessoa que mais viveu a construção desse nome. Abri portas para popularizá-la. É o maior orgulho da minha vida ver minha tia nesse lugar. Naturalmente fui seguindo o caminho que meu pai trilhou desde que ela era viva.
GS: Você é museóloga e dá aulas de equitação. Como foi essa trajetória?
TA: Isso. Os cavalos vieram primeiro. Aos 16 anos, comecei a dar aula na Hípica. Minha primeira faculdade foi de Matemática, mas não terminei. Depois fiz Direito. Comecei a estudar para escrever um livro sobre minha tia, “Tarsila por Tarsila”, e foi mudando a minha vida. Pensei que precisava estudar mais, fui fazendo cursos no Masp, depois fiz um como ouvinte na USP e, lá, uma professora me falou sobre essa formação que ia abrir e me formei em museóloga.
GS: Acredita que seja importante resgatar o passado e deixar a memória viva para o presente?
TA: Tem que ter esse resgate. O mundo está totalmente globalizado e a gente precisa manter as nossas origens. Acho que daí vem muito a importância da minha tia. As discussões voltam. Conhecer essas histórias para entender melhor o presente e até mudar o futuro.
“Adoraria ver o centro de São Paulo, os lugares históricos, preservados. Isso faz parte de um grande sonho que também tem a ver com o cuidado do legado de Tarsila.”
GS: Como você acha que as obras dessas artistas mulheres conseguem moldar e impactar o futuro da cidades?
TA: Muda a sociedade. São mudanças de pensamento. Os modernistas trouxeram ideias novas, mesmo todos vindo de um lugar de privilégio. Minha tia mesmo era uma das mulheres mais ricas do país, mas não teve medo de trazer outro pensamento. Ideias novas mudam a sociedade e a vida, e claro, isso impacta nas cidades e em tudo.

GS: E qual é seu maior sonho?
TA: Cuidar do legado da minha tia que abrange muitas outras coisas. Por exemplo, eu adoraria ver o centro de São Paulo, os lugares históricos, preservados. Isso faz parte de um grande sonho que também tem a ver com o cuidado do legado de Tarsila. Sei que vou passar minha vida fazendo isso e só me traz orgulho.