
A cidade não é apenas um cenário nas histórias de Dahlia de la Cerda. Ela é também um personagem que, junto com as mulheres, nasce em um cotidiano de violência e desigualdade. Luzes e sombras aparecem pelas ruas e pelo dia a dia onde as mulheres caminham, vivem e decidem agir. “Nesse sentido, a vingança não é apenas uma reação pessoal, mas uma resposta a um sistema que não oferece justiça”, diz a escritora e filósofa mexicana, considerada uma das vozes jovens mais emocionantes do país, na entrevista desta semana do Mulheres e a Cidade.
Dahlia nasceu e ainda vive em Aguascalientes, cidade mexicana de 1,5 milhão de habitantes “profundamente católica e conservadora”, como descreve. Cresceu em bairros populares e em comunidades com relação com o crime organizado e essas vivências marcaram seu olhar e sua escrita. “Crescer em um ambiente urbano, periférico e atravessado pela desigualdade te forma de maneiras que às vezes você nem percebe, até sair dali e ver como outras pessoas habitam o mundo com menos medo”, conta.
Vinda de uma família modesta – os pais trabalhavam na administração de bares e cantinas -, Dahlia encontrou na arte e no terror sua forma de expressão. Estudou Filosofia, mas não se formou por falta de dinheiro. Trabalhou em diversos lugares, de call center a vendedora de roupas de segunda mão em um mercado de rua, “onde aprendi tudo o que sei sobre economia”.
Foi com a literatura que Dahlia expôs a sua realidade e a de tantas mulheres mexicanas para o mundo. Seu primeiro livro “Perras de reserva” a levou a ser uma das 13 finalistas do Booker International Prize 2025, que premia autores e tradutores por obra de ficção traduzida para o inglês e publicada no Reino Unido ou Irlanda. O livro acaba de ser lançado no Brasil com o título “Cadelas de aluguel” (DBA Editora), uma alusão direta ao filme de “Cães de Aluguel”, de Quentin Tarantino. São treze histórias que trazem diversas personagens, de herdeira do narcotráfico, a bruxas, estudantes e prostitutas, em busca de vingança. “Minha intenção era escrever uma história em que essas mulheres não fossem apenas vítimas, mas que assumissem o controle da narrativa com a mesma brutalidade que a vida lhes impôs”.
Para ajudar a tantas mulheres em situação de vulnerabilidade, Dahlia criou o coletivo feministas Morras Help Morras, uma das primeiras organizações a falar sobre aborto* seguro no México. Nesta conversa, a escritora fala sobre o impacto das cidades na vida das mulheres, seu livro recém-lançado no Brasil e a primeira mulher a ser presidenta do seu país, a engenheira ambiental Claudia Sheinbaum. “Tenho minhas divergências com ela. Mas, definitivamente, prefiro uma presidenta de esquerda a um presidente de direita. Além disso, ela tem sido bastante icônica ao responder a Trump”.

Graziela Salomão: Como surgiu a ideia de “Cadelas de Aluguel” e qual é a referência ao filme de Tarantino e à cultura pop?
Dahlia de la Cerda: A ideia de “Cadelas de Aluguel” surge de uma mistura entre raiva e fascínio pelas narrativas de vingança. Cresci assistindo a filmes de ação e crime em que a violência era estética, estilizada e quase sempre protagonizada por homens. “Cães de Aluguel”, de Tarantino, é uma referência porque apresenta uma história de criminosos com códigos de lealdade, traições e diálogos afiados, mas sem espaço para as mulheres. Então me perguntei: e se essa história fosse protagonizada por mulheres que não apenas são criminosas, mas que também têm um motivo forte para isso? Mulheres atravessadas pela violência estrutural e que não buscam redenção nem compaixão, mas justiça em seus próprios termos. Além disso, a cultura pop está repleta de ícones da vingança feminina, desde Kill Bill até Jenni Rivera. No imaginário dos bairros populares do México, essas histórias se misturam com a realidade de mulheres que tiveram que sobreviver em ambientes hostis. Minha intenção era escrever uma história em que essas mulheres não fossem apenas vítimas, mas que assumissem o controle da narrativa com a mesma brutalidade que a vida lhes impôs.
GS: Como a realidade da cidade onde vivem suas personagens determina a personalidade e o rumo de suas vidas, gerando essa sede de vingança?
DC: A cidade não é apenas um cenário em minhas histórias, é um personagem por si só. Minhas personagens nascem em um contexto onde a violência não é exceção, mas parte do cotidiano. As ruas por onde caminham, os bairros onde crescem e as oportunidades (ou a falta delas) moldam sua forma de enxergar o mundo e agir nele. Nesse sentido, a vingança não é apenas uma reação pessoal, mas uma resposta a um sistema que não oferece justiça. Se você cresce em um lugar onde mulheres desaparecem, onde a polícia não investiga e onde o medo é constante, percebe que a raiva não é um capricho, mas uma consequência lógica. A cidade e suas estruturas desiguais criam monstros, mas não porque elas queiram ser assim, e sim porque o mundo lhes ensinou que não há outra forma de sobreviver.
“Não conheço nenhuma mulher que nunca tenha sentido medo na rua, que nunca tenha olhado para trás ao caminhar sozinha,
que não carregue no corpo o peso dessa estatística.
Nesse sentido, mais do que um grito de alerta,
meu livro é uma resposta a essa realidade”
GS: O México tem um dos mais altos índices de feminicídio na América Latina. Incluir esse tema no seu livro é um grito de alerta diante dessa realidade?
DC: É impossível escrever sobre mulheres no México sem tocar no feminicídio porque não é ficção, é nossa realidade. Não é apenas um “tema” que acrescentei ao livro para causar impacto, é o contexto em que todas vivemos. Não conheço nenhuma mulher que nunca tenha sentido medo na rua, que nunca tenha olhado para trás ao caminhar sozinha, que não carregue no corpo o peso dessa estatística. Nesse sentido, mais do que um grito de alerta, meu livro é uma resposta a essa realidade. Não foi pensado como uma denúncia, mas sim como uma expressão de fúria. Não é um livro que pede justiça nos termos convencionais, é um livro que imagina o que aconteceria se as mulheres, que foram despojadas de tudo, pudessem cobrar o que lhes é devido. Porque a impunidade é uma forma de violência institucional, e a ficção pode ser um espaço onde a balança penda para o lado que, na vida real, quase nunca pende.
GS: Como a cidade foi determinante na sua construção como mulher e na sua escrita?
DC: A cidade me ensinou tudo: a andar rápido, a desconfiar, a encontrar atalhos, a identificar quem é um perigo e quem apenas está tentando sobreviver, assim como eu. Crescer em um ambiente urbano, periférico e atravessado pela desigualdade te forma de maneiras que às vezes você nem percebe, até sair dali e ver como outras pessoas habitam o mundo com menos medo. Essa sensação de estar sempre alerta, de saber que o espaço público não é neutro para as mulheres, se reflete na minha escrita. Escrevo sobre mulheres que aprenderam a se mover nesses ambientes, que desenvolveram estratégias para sobreviver e que, em muitos casos, decidiram que não basta apenas sobreviver, mas lutar para existir em seus próprios termos.

GS: Você é cofundadora do coletivo feminista Morras Help Morras, que apoia mulheres periféricas em situações de vulnerabilidade. De que maneira o espaço público contribui para aumentar ainda mais essa vulnerabilidade social das mulheres? E o que precisa ser melhorado nesse sentido?
DC: No Morras Help Morras, trabalhamos com o aborto autogestionado em casa com misoprostol, e uma das coisas que aprendemos é que o acesso ao espaço público pode ser a diferença entre conseguir abortar com segurança ou não. Muitas mulheres que querem abortar em casa precisam lidar com o medo da criminalização, a falta de transporte seguro para conseguir o medicamento, hospitais onde podem ser denunciadas e a precariedade de suas próprias casas que, às vezes, não são um ambiente seguro para passar por esse processo. O espaço público é hostil para as mulheres, mas ainda mais para aquelas que decidem exercer seu direito ao aborto em um contexto onde há obstáculos legais, estigma e desinformação. Nosso objetivo é garantir que a informação sobre esse tipo de aborto chegue a todas, especialmente às que não têm acesso a uma clínica. Para melhorar essa situação, precisamos de uma descriminalização real, acesso gratuito aos medicamentos no sistema de saúde e campanhas que desmontem os mitos sobre o aborto autogestionado. Também precisamos de cidades onde as mulheres possam se movimentar sem medo, sem precisar se arriscar para conseguir um medicamento ou enfrentar violência médica quando buscam ajuda.
GS: Hoje, o México é governado pela presidenta Claudia Sheinbaum, um fato histórico importante para a América Latina. Como você vê isso hoje?
DC: Sem dúvida, é um fato histórico, mas também um lembrete de que o poder não muda automaticamente as estruturas. O fato de uma mulher chegar à presidência é uma conquista em termos de representatividade, mas o verdadeiro desafio é o que ela fará com esse poder. As políticas realmente transformarão a vida das mulheres mais vulneráveis? Haverá uma mudança estrutural em termos de direitos? O fato de termos uma mulher no poder não significa que a violência contra as mulheres diminuirá automaticamente ou que o feminismo venceu. A história nos mostra que mulheres no poder podem reproduzir as mesmas práticas patriarcais se não houver um compromisso real com a justiça social. Tenho minhas divergências com ela em temas como militarização, segurança pública e a presença de pessoas transfóbicas em sua equipe. Mas, definitivamente, prefiro uma presidenta de esquerda a um presidente de direita. Além disso, ela tem sido bastante icônica ao responder a [Donald] Trump.

“Cidades governadas por mulheres têm o potencial de mudar a forma como ocupamos os espaços, mas isso só acontece se entenderem que segurança e bem-estar não são apenas questões de vigilância e policiamento”
GS: Como você acha que as cidades governadas por mulheres podem construir um futuro melhor na nossa relação com o espaço público?
DC: Cidades governadas por mulheres têm o potencial de mudar a forma como ocupamos os espaços, mas isso só acontece se entenderem que segurança e bem-estar não são apenas questões de vigilância e policiamento. O governo precisa ser pautado pelo cuidado, entendendo que segurança não é só “não ser morta”, mas poder viver com dignidade. Isso significa transporte público acessível e seguro, iluminação nas ruas, espaços de lazer pensados também para mulheres e meninas, acesso à moradia e oportunidades de trabalho. Uma cidade mais justa não se constrói apenas com mulheres no governo, mas com políticas que realmente mudem as condições de vida das pessoas que foram historicamente excluídas do desenvolvimento urbano.
*No Brasil, o aborto legal é permitido em apenas três situações específicas. Segundo a lei, o procedimento só pode ocorrer quando a gravidez é resultado de estupro; quando a gestante corre risco de morte; ou em casos de anencefalia fetal. A decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012 determina ainda que, nesses 3 casos determinados, o procedimento pode ser realizado de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em qualquer outra situação, o ato é considerado crime pelo Código Penal Brasileiro, sujeito a penalidades. O debate sobre a descriminalização do aborto continua em todo o país.