Cultura

entrevista com Ana Cláudia Streva

“A cidade não é apenas um espaço físico, mas um mosaico de histórias, culturas e realidades que precisam ser respeitadas”

Produtora do doc “Ocupa SP”, Ana Cláudia acredita que mostrar iniciativas positivas de comunidades é um convite a se encontrar formas de construir um espaço urbano mais humano. Por Graziela Salomão

Ana Cláudia Streva é produtora do documentário Ocupa SP | Foto: Divulgação

Entrar em uma sala de cinema pode ser um passo para mergulhar em um universo lúdico, cômico ou trágico. E quando essa imersão é no mundo real da sua cidade? Aquele que, muitas vezes, os seus olhos não conseguem, ou até não querem, enxergar. O encontro pode ser um choque, mas é, certamente, enriquecedor. Você sai da sala de exibição com outras ferramentas para compreender o espaço em que vive e de que forma as pessoas que estão a sua volta existem e resistem.

É dessa forma que, provavelmente, será o encontro da maioria do público com “Ocupa SP”. O documentário, que estreou durante a 48a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mostra histórias de luta e resistência e é um convite a repensar nossa relação com a cidade de São Paulo, gigante em seus números e proporções, o que inclui, também, o grau de desigualdades e segregação. Dirigido por Gustavo Ribeiro, o longa nasceu de uma ideia de Ana Cláudia Streva em 2016, também produtora do filme e criadora da NÓS FILMES

Pensado inicialmente em trazer o foco de lazer e diversão, o projeto se transformou depois da pandemia e ganhou contornos de reflexão social sobre a ocupação da cidade e o direito de todos usufruirem o espaço urbano, em especial os menos favorecidos. “Ocupa SP nasceu justamente dessa necessidade de entender o que é São Paulo, considerando suas nuances, e de usar o documentário como ferramenta para acessar esse entendimento”, conta Ana, na conversa desta semana do “Mulheres e a Cidade“.

Os exemplos positivos trazidos no longa provocam novas formas de pensar na construção de uma cidade mais humana e gentil, mesmo com todos seus paradoxos. Sejam as ruas pensadas e construídas pelos moradores do Jardim da União, na região do Grajaú, a horta comunitária das Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana), em São Miguel Paulista, o teatro de contêineres da Cia Mungunzá, que integra arte e uma das populações mais invisibilizadas da cidade, perto da Cracolândia, ou a luta do povo guarani pela preservação de sua ancestralidade e do direito natural às terras no Pico do Jaraguá, todas essas realidades formam o mosaico da megalópole. “Ao aproximar o público dessas realidades de forma empática, o documentário convida à reflexão e estimula ações concretas de inclusão, seja por meio de políticas públicas, seja através de atitudes individuais no cotidiano”, afirma a produtora.

Trazer luz a essas histórias de comunidades que lutam e resistem aprofunda o conhecimento da sociedade como um todo e reforça o papel de cada cidadão também na construção do espaço urbano. “É fundamental que cada um de nós faça a sua parte, seja através de ações comunitárias, do apoio a iniciativas locais ou da defesa de políticas públicas que promovam a inclusão e a justiça social”, diz Ana. 

Bastidores do documentário Ocupa SP | Foto: Gabi Di Bella

Graziela Salomão: Qual foi o gatilho que te fez pensar na ideia do Ocupa SP?
Ana Cláudia Streva: Acho que, antes de mais nada, é importante contextualizar que não nasci em São Paulo, mas me sinto muito bem aqui. Existe algo muito único em São Paulo, especialmente essa sensação de que é a única cidade no Brasil onde você se sente conectado ao mundo. Essa pluralidade e o ritmo frenético, combinados com a diversidade cultural e todas as suas possibilidades, me atraem profundamente. E foi essa conexão especial com a cidade, essa percepção de que São Paulo é um microcosmo global dentro do Brasil, que acendeu em mim o desejo de explorar mais profundamente as dinâmicas sociais e culturais daqui. Porque se a gente não se aproxima dos problemas complexos da cidade, acabamos deixando de compreendê-los. “Ocupa Sp” nasceu justamente dessa necessidade de entender o que é São Paulo, considerando suas nuances, e de usar o documentário como ferramenta para acessar esse entendimento. 

“São Paulo é um microcosmo global dentro do Brasil. Se a gente não se aproxima dos problemas complexos da cidade, acabamos deixando de compreendê-los”


GS: Como a cidade te atravessa como mulher e como produtora de arte?
ACS: A resposta a essa pergunta carrega uma grande dualidade. São Paulo é intensa, cheia de oportunidades e desafios, e isso impacta diretamente a minha trajetória. Como mulher, sinto o peso e a complexidade de viver em um espaço que pode ser tanto libertador quanto opressor, dependendo do contexto. A cidade exige resiliência, mas também oferece uma rede de apoio e conexão que pode ser transformadora. Como produtora de arte, São Paulo se destaca pela sua diversidade cultural vibrante, com inúmeras vozes e histórias que coexistem e criam um terreno fértil para a criação artística. Esse mosaico de realidades inspira, mas também desafia, exigindo que eu me adapte e responda à pulsante energia criativa que emana daqui.

GS: Qual história trazida no “Ocupa SP” mais te estimulou ou a fez pensar de uma forma diferente?
ACS: Sem dúvida, a história da Cia Mungunzá, com o Teatro de Container, foi a que mais me estimulou. É uma ocupação de espaço liderada pela arte em um local socialmente muito sensível, próximo à Cracolândia. O fato de as portas do teatro estarem sempre abertas em uma rua que abriga centenas de pessoas em situação de rua é profundamente significativo. A forma como eles acolhem a Cracolândia e demonstram uma sensibilidade rara em entender o que aquele espaço pede é algo que apenas quem está profundamente conectado com a arte consegue captar. Os atores da Cia Mungunzá nos proporcionam uma perspectiva única ao se engajarem com uma realidade tão complexa, oferecendo um olhar que vai além do teatro tradicional.

Trailer do documentário Ocupa SP

GS: Vocês trazem no documentário a ideia de uma cidade que deveria ser para todos, sabendo que as populações menos favorecidas precisam lutar muito mais para conquistar qualquer espaço. Como acha que o longa pode trazer questionamentos para esse assunto?
ACS: A ideia central do documentário é justamente expor o quanto a cidade não é, de fato, para todos. Historicamente, São Paulo segrega grupos e exclui populações menos favorecidas, criando barreiras invisíveis, mas profundamente enraizadas. O maior questionamento que o filme pode trazer é promover uma mudança de consciência. Ao aproximar o público dessas realidades de forma empática, o documentário convida à reflexão e estimula ações concretas de inclusão, seja por meio de políticas públicas – que só se tornam possíveis com o apoio da sociedade – seja através de atitudes individuais no cotidiano. O que costuma acontecer, no entanto, é que as pessoas se fecham em suas bolhas, protegendo-se dos “perigos” que acreditam existir na cidade. O filme quer romper essa barreira, lembrando que estamos falando de pessoas, de comunidades inteiras que precisam ter seus espaços reconhecidos e respeitados. Só assim poderemos construir uma cidade verdadeiramente inclusiva. A mensagem é clara: diante de problemas complexos, não há soluções fáceis. Precisamos nos debruçar sobre essas questões com profundidade e comprometimento.

GS: Os exemplos de ocupação trazidos no documentário mostram a enorme diversidade que compõe São Paulo. Como esses exemplos foram escolhidos e como você acha que eles impactam ou inspiram a quem está assistindo ao doc?
ACS: Os exemplos de ocupação foram escolhidos pela diversidade que refletem a complexidade de São Paulo, mostrando diferentes formas de resistência e expressão cultural. Acredito que esses exemplos impactam os espectadores ao promover identificação e ampliar a compreensão sobre a cidade, inspirando ações de inclusão e reflexão sobre o espaço urbano como um todo.

Ana Cláudia Streva, produtora do documentário Ocupa SP, quer propor um novo olhar sobre a cidade de São Paulo | Foto: Divulgação

GS: Como você acredita que podemos pensar a cidade de uma forma mais gentil e humana?
ACS: Acredito que pensar a cidade de forma mais gentil e humana começa com um olhar profundamente humanizado sobre os problemas que afetam São Paulo. É necessário reconhecer as realidades e necessidades das pessoas, especialmente as mais vulneráveis, e buscar soluções que priorizem inclusão, empatia e respeito às diferenças. Só assim poderemos construir uma cidade mais justa e acolhedora para todos.

“Os verdadeiros caminhos a seguir envolvem acolher as diferenças, resolver desigualdades e promover políticas públicas eficazes, especialmente em áreas vulneráveis como a Cracolândia. Também devemos nos debruçar sobre questões urgentes, como a moradia.”


GS: O documentário traz uma relação com as fotos da fotógrafa Stefania Bril, que retratou São Paulo mostrando outros tipos de sociedade que podemos criar, como as comunitárias. É nesses novos traços de sociedade que você acha que podemos encontrar lampejos de caminhos para o futuro?
ACS: Eu acredito que precisamos valorizar e respeitar essa diversidade, mas é importante notar que isso, por si só, não define os caminhos do futuro. Os verdadeiros caminhos a seguir envolvem acolher as diferenças, resolver desigualdades e promover políticas públicas eficazes, especialmente em áreas vulneráveis como a Cracolândia. Também devemos nos debruçar sobre questões urgentes, como a moradia. Para isso, é fundamental conhecer nossa história e entender suas consequências. Não chegamos a este ponto de forma repentina; somos o resultado de uma trajetória de 400 anos de escravidão, cujas marcas ainda impactam nossa sociedade hoje. Compreender esse passado é essencial para que possamos construir um futuro mais justo e inclusivo, onde todos tenham voz e espaço.

A horta comunitária das Mulheres do GAU é uma das comunidades retratadas no documenteario | Foto: Gabi Di Bella

GS: Depois do Ocupa SP, de que forma você repensou a sua própria relação com a cidade?
ACS: Minha relação com a cidade se aprofundou. Continuo adorando São Paulo, mas agora vejo com mais clareza os desafios que enfrentamos. A experiência me fez perceber que a cidade não é apenas um espaço físico, mas um mosaico de histórias, culturas e realidades que precisam ser compreendidas e respeitadas. Sinto uma responsabilidade ainda maior de me mobilizar e contribuir para a solução dos problemas que afetam nossos cidadãos, especialmente aqueles em situação de vulnerabilidade. É fundamental que cada um de nós faça a sua parte, seja através de ações comunitárias, do apoio a iniciativas locais ou da defesa de políticas públicas que promovam a inclusão e a justiça social. Essa nova perspectiva me motiva a agir, buscando não apenas entender, mas também transformar a cidade em um lugar melhor para todos.

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