Lifestyle

entrevista com Luisa Manske

“É muito difícil que a nossa subjetividade não transborde no espaço público”

Para a autora da newsletter “Andanças”, que faz uma intersecção entre pensamento, cinema e cidade, a rua transpassa o íntimo para escancarar o que fomos, o que somos e o que podemos ser. Por Larissa Saram

Luisa Manske é autora da newsletter “Andanças”

Caminhar pela rua como se estivesse num filme: quem nunca? O cinema funciona como espelho do que é possível viver nos espaços públicos e inspira modos de estar e de se mover pela cidade. A gente nem sempre percebe, mas o que vemos na tela constrói um repertório simbólico que influencia como nos relacionamos com a rua.

Mas o que significa, afinal, esse relacionamento com o espaço urbano? E por que ele parece falar com tanta gente? Para Luisa Manske, autora da newsletter “Andanças”, o que nos encanta é a profundidade das reflexões que o estar fora de casa pode provocar. É sobre essas emoções construídas a cada passo — e com as quais muitas de nós se identificam — que ela escreve semanalmente. Os filmes são só o ponto de partida para um passeio feito de palavras. Nele, o caminhar vira pensamento, e o território ganha importância no processo criativo de sentir.

Nesta conversa para o Mulheres e a Cidade, a pesquisadora, artista e escritora catarinense compartilha suas percepções sobre imaginar a cidade sob a influência da ficção, explorar a troca constante entre o íntimo e o urbano e perceber os deslocamentos como motores de criação. Um convite para desacelerar e sentir o que pulsa ao redor.

Created with RNI Films app. Profile ‘Agfa Optima 200’

Larissa Saram: Qual foi o impulso inicial para criar a “Andanças”?
Luisa Manske: 
A Andanças começou oficialmente em julho de 2022. Na época, eu ainda estava na fase inicial do meu doutorado e imersa em muita leitura, principalmente sobre a cidade, a partir da história, filosofia, literatura, arte e também do cinema. Para mim, o que lia se conectava demais com o que eu assistia (e sempre assisti muita coisa!). Já vinha escrevendo aqui e ali na internet desde 2016 e queria criar um projeto em que tivesse liberdade para transitar por tudo isso. A partir de uma conversa, me dei conta de que os filmes que mais gostava eram os que as personagens caminhavam, conversavam sobre os sentimentos que tinham e se envolviam com a cidade ao redor. A newsletter vai fazer 3 anos agora, com textos (quase!) semanais e chegando nas 130 edições.

“Talvez o caminhar sempre tenha sido uma forma de sentir antes de qualquer outra coisa. Mais tarde, essa compreensão passou por um processo mais racional, de entender esse espaço de uma perspectiva técnica, crítica, política, social e de tudo aquilo que estava envolvido no ato de caminhar”

LS: Quando se deu conta de que o caminhar pela cidade era mais que deslocamento, era também uma forma de pensar?
LM: 
Sempre tive uma relação bastante afetiva com a cidade e isso fez com que andar tenha sido mais do que apenas se movimentar. Na infância, andei muito com a minha mãe e a minha avó. Era uma atividade não só de união entre nós, mas também um certo ritual de apresentação da cidade, como elas a viam e mostravam para mim. Compreendi a cidade como um lugar em que eu precisava estar atenta, mas também como um espaço de descoberta, de possibilidade, de liberdade, de encontrar lugares escondidos e pequenos prazeres no meio da rotina – e tudo isso só era possível de se fazer andando. Talvez o caminhar sempre tenha sido uma forma de sentir antes de qualquer outra coisa. Mais tarde, essa compreensão passou por um processo mais racional, de entender esse espaço de uma perspectiva técnica, crítica, política, social e de tudo aquilo que estava envolvido no ato de caminhar. Hoje, acho que busco integrar esse lado afetivo e emocional muito íntimo com tudo que aprendi e exercitei.

Anotações que Luisa faz durante seus passeios por Curitiba

LS: Como podemos pensar a cidade a partir da ficção? Digo: o que um filme pode trazer para que a gente reflita sobre o lugar onde moramos?
LM: Uma das coisas mais incríveis da ficção é a capacidade infinita de nos trazer novos olhares e de imaginar outras possibilidades. Cada pessoa que cria tem uma visão muito sua sobre o universo onde vive e acho que é de uma riqueza muito grande a gente poder acessar essa criação e ter contato com uma outra forma de ver o mundo. Sempre acho que alguma coisa, mesmo que mínima, muda na gente quando entramos em contato com a ficção e se a gente permite se abrir para ela, tem muita coisa para pensar e refletir tanto sobre a nossa vida individual quanto coletiva. Há uma variedade imensa de filmes excelentes de todos os cantos do mundo que se propõem a contar histórias que se passam em suas cidades como elas são, que mostram as coisas bonitas e complexas que existem naquele modo de viver sem esconder ou ignorar os problemas que existem ali. E a partir disso nós podemos nos conectar emocionalmente, ao mesmo tempo que compreendemos aquela realidade, nos permitindo pensar sobre a nossa também.

“Os filmes que nos convidam a caminhar junto são aqueles em que a história é localizada, como não podia deixar de ser, mas também fazem a gente pensar que aqueles sentimentos todos podiam muito bem estar acontecendo com a gente aqui nas nossas próprias vidas”

LS: Acha que o desejo e fantasia dos filmes podem transformar a nossa relação com o espaço público?
LM: Com certeza. Principalmente quando a gente se reconhece ali. Se ver na tela é muito importante para que a gente possa imaginar histórias possíveis dentro da nossa própria realidade e a reconhecer que as nossas ruas também são palco de grandes histórias que merecem ser contadas. E isso muda a maneira como a gente interage com o nosso espaço público. Quando o nosso olhar está sempre direcionado para um ideal em outro lugar, fica mais difícil visualizar o que existe ao redor e todas as possibilidades e necessidades que esse lugar tem. Os filmes que nos convidam a caminhar junto são aqueles em que a história é localizada, como não podia deixar de ser, mas também fazem a gente pensar que aqueles sentimentos todos podiam muito bem estar acontecendo com a gente aqui nas nossas próprias vidas.

Luisa é artista visual / Crédito: Drika Bukowski

LS: Escrever a newsletter mudou a maneira como você se relaciona com a rua? Como a escrita dela transforma o jeito que você se move?
LM: Muitos dos textos publicados nesses anos nasceram ou foram elaborados na minha cabeça durante alguma andança cotidiana. Eles estavam sendo criados no meio da rua, com a interferência de tudo que estava ali ao meu redor imediato, às vezes comprovando/refutando algum pensamento ou abrindo uma outra perspectiva. Acho que isso também fez com que eu me abrisse mais a observar, a perceber as coisas, a guardá-las comigo e me permitisse sentir também. Eu fui descobrindo que a minha escrita é bastante emocional e emocionada, e isso fez com que eu também passasse a andar prestando atenção nas emoções variadas que vem estando na rua, tanto as boas quanto as ruins. Como os textos são semanais, nunca passo tanto tempo em cima de uma emoção só, o que é bom haha. Mas hoje tenho uma relação muito mais carinhosa e de proximidade com a rua do que eu tinha antes.

“A gente está sempre nessa troca, impactando e sendo impactada e mudando junto com os lugares, como em uma relação em que a cidade vai nos conhecendo melhor com o tempo e nós a ela.
Essa proximidade entre o íntimo e o público é o que faz a gente pensar que “esse é o meu lugar!” ou então que precisamos
seguir adiante”

LS: Em suas newsletters, há uma escrita muito sensível, que combina o íntimo com o urbano. Como você enxerga essa relação entre subjetividade e espaço público?
LM: É muito difícil que o exterior não adentre o nosso íntimo e que a nossa subjetividade não transborde no espaço público, principalmente em grandes cidades. Moro no segundo andar em um prédio que fica colado na calçada e a rua está o tempo todo adentrando esse espaço mais reservado. Ao mesmo tempo, penso que o simples fato de passarmos pela rua faz com que essa presença também impacte, de alguma maneira, esse entorno. Diria então que a gente está sempre nessa troca, impactando e sendo impactada e mudando junto com os lugares, como em uma relação em que a cidade vai nos conhecendo melhor com o tempo e nós a ela. Essa proximidade entre o íntimo e o público é o que faz a gente pensar que “esse é o meu lugar!” ou então que precisamos seguir adiante.

LS: Você é uma artista, escreve e também pinta e desenha. A rua é a sua principal matéria-prima de criação?
LM: A rua é uma delas. Tenho uma coisa muito grande também com as memórias, o passado, as sensações que vem com as experiências. O que eu mais gosto nos filmes que trago na newsletter (que eu chamo de andantes) é que eles, muitas vezes, misturam tudo isso. Do lado de cá, tento pensar em como é essa mistura para mim também. Sempre carrego comigo um caderninho pequeno e barato e uma caneta e sempre que alguma coisa vem, escrevo ali. Às vezes é o começo de alguma edição da newsletter ou reflexões sobre algum filme que eu vi; outras são sensações que quis registrar estando em algum lugar ou então ideias de desenhos e pinturas. Prefiro anotar fisicamente porque é muito mais fácil de me encontrar com as anotações depois e acho que a própria caligrafia também dá o tom das sensações que existiam quando as notas foram feitas.

LS: Você mora em Curitiba, certo? Quais lugares mais gosta e que te inspiram?
LM: Nasci e morei a maior parte da vida em Joinville, no norte de Santa Catarina. Mudei para Curitiba em 2019 e sou uma grande fã do centro da cidade. Ele tem uma característica de concentrar uma grande quantidade de atividades variadas em uma região em que é muito fácil circular a pé por todos os lugares – e isso é uma das coisas que mais me conquistam aqui. Pessoalmente, gosto muito de andar pelo Passeio Público, um parque bem antigo. Por ali também estão o Cine Passeio e a Cinemateca, uma grande quantidade de espaços culturais públicos, cafés pequenininhos incríveis e um monte de sebos e lugares variados que tem uma importância histórica.

“Se estiver na rua por qualquer razão, não vai ser despreocupada, desatenta e nem de uma apreciação tranquila da paisagem noturna. Nesse ponto, os filmes têm um papel importantíssimo na denúncia, no registro da história, no levantamento de questionamentos e reflexões críticas”

LS: O medo já te impediu de ir pra rua buscar ideias?
LM: Com toda e absoluta certeza. Do jeito que falei até agora, talvez pareça que toda essa andança flui fácil, mas não é bem assim. Enquanto mulher, fui criada para ter consciência dos perigos que a rua oferece. Não necessariamente no sentido de não ir até ela, mas de ir com bastante atenção e cautela, o que molda a maneira como interagimos com a cidade, assim como também acontece de diferentes maneiras com vários outros grupos. A minha relação de inspiração com a cidade não vai passar por sair à noite e caminhar sozinha para esclarecer as ideias. Se estiver na rua por qualquer razão, não vai ser despreocupada, desatenta e nem de uma apreciação tranquila da paisagem noturna. Nesse ponto, os filmes têm um papel importantíssimo na denúncia, no registro da história, no levantamento de questionamentos e reflexões críticas para que a gente entenda a nossa experiência individual, e o que existe além dela, na sociedade.

LS: Qual dica dá para quem deseja fazer esse exercício de tirar a cidade de um espaço mecânico, um ir e vir sem atenção, para fazer dela um espaço de criação?
LM: Diria para se jogar na experimentação dentro do que for possível. Podem ser coisas bem simples como mudar o caminho de volta, pegar outro ônibus, ir em uma padaria diferente. A correria de todo dia faz com que a gente mecanize esses caminhos de atividades básicas da manutenção da nossa vida, para que gastemos o menor tempo possível neles, mas acho que é justamente aí que a gente vai descobrindo novas formas de perceber os mesmos lugares.

Algumas das zines de textos da newsletter que estão à venda na Toca Arte-Atelier

LS: Atualmente suas obras estão em exposição num ateliê em Curitiba. Elas também dialogam com a cidade?
LM: São pinturas e desenhos que refletem um pouco de todo esse processo de pesquisa e reflexão, trazendo muito os retratos e também um pouco dessa experimentação da cidade como cenário e protagonista. A exposição ficará disponível até a metade de junho na Toca Arte-Atelier, no centro de Curitiba, em conjunto com uma lojinha com impressos, incluindo as zines de textos da newsletter. Dá pra saber todas as infos e horários de visitação aqui.

LS: Quais são os seus 3 filmes favoritos que propõe a cidade como protagonista?
LM: Meus três grandes favoritos no momento são Amor à flor da pele (2000, dirigido por Wong Kar-wai), Desencanto (1945, dirigido por David Lean) e Columbus (2014, dirigido por Kogonada). Mas eu sou suspeita, a minha lista de favoritos é imensa e aumenta sempre!

Mais notícias

Cultura

Blenda Santos

Por meio do slam, poeta sergipana leva para as ruas de Aracaju e outros espaços diversos as narrativas das mulheres negras, periféricas e nordestinas de ontem e de hoje. Por Larissa Saram

Direitos

Rose Almeida

Socióloga detalha o que está em jogo na mobilização em defesa da preservação do sítio arqueológico do Quilombo Saracura, encontrado nas obras da Linha 6 do Metrô, em São Paulo. Por Larissa Saram

Direitos

Colombe Brossel

Senadora francesa e uma das engenheiras responsáveis pela obra de limpeza do rio Sena fala sobre a importância dessa ação para Paris e para a vida da população na cidade. Por Graziela Salomão

Lifestyle

Chula Barmaid

Bartender argentina une a paixão pela artes cênicas e pela coquetelaria às inspirações que o dia-a-dia na cidade despertam na hora de criar seus coquetéis. Por Graziela Salomão