As histórias das guerras são quase sempre contadas sob o ponto de vista dos homens. No entanto, são as mulheres, direta ou indiretamente, as maiores vítimas no front ou fora dele. E essas histórias, por tanto tempo invisibilizadas, têm sido trazidas à luz com mais frequência em relatos de sobreviventes ou de jornalistas que eternizam seus olhares, suas escutas e seus registros.
A fotógrafa e jornalista francesa Emilienne Malfatto é uma delas. A vivência que teve em campo como repórter de guerra no Iraque entre 2015 e 2016 impactou profundamente sua vida e os rumos de seu trabalho. “Viver essa experiência teve tudo a ver com a minha escrita e se tornou necessário escrever, de uma forma não jornalística, algo que nunca tinha pensado antes”, disse em uma de nossas trocas de e-mail para essa conversa do “Mulheres e a Cidade”.
Sem relacionar diretamente com a guerra, mas trazendo os efeitos colaterais por ela imprimidos, Emilienne escreveu o romance “Que por você se lamente o Tigre” (Editora Nós!). Com o livro, a fotógrafa conquistou o Prêmio Goncourt, o mais prestigiado da França, na categoria Romance de estreia, em 2021. O enredo do livro mostra, no Iraque contemporâneo, em meio a bombas e à resistência de pessoas comuns, uma jovem se entrega ao amor e por ele será castigada. Assim como as imagens que captura quando fotógrafa, Emilienne faz de sua narrativa uma cadência de registros da condição feminina na sociedade iraquiana, que poderiam ser transpostos, com ajustes culturais, a outra de qualquer lugar do mundo.
A aridez de uma cidade destruída por bombardeios e com cicatrizes abertas por um conflito ainda à espreita é a mesma de uma mulher que tem o corpo destruído pelas regras sociais. A isso se soma um cenário de guerra como no Iraque dos anos 2010, ou em países que enfrentam conflitos armados atuais, como Gaza e suas mais de 9 mil mulheres que já morreram nesses últimos 5 meses. Emilienne consegue enxergar que as experiências que as cidades marcam nos corpos femininos também pode ser enriquecedora. “Várias cidades contribuíram para moldar a pessoa que sou hoje. O interessante é que são cidades muito diferentes”, diz.
Graziela Salomão: Como foi a experiência de cobrir a guerra do Iraque?
Emilienne Malfatto: É difícil resumir essa experiência porque é uma mistura de muitas, muitas coisas. A guerra é terrível e anormal, mas numa região em guerra também se tem vida, às vezes alegria. Nem tudo é preto ou branco. Portanto, foi, ao mesmo tempo, uma experiência traumática e boa, por mais estranho que possa parecer. Aprendi muito, conheci pessoas lindas, vivi coisas que pensei que nunca vivenciaria. E é claro que isso vem com feridas – às vezes invisíveis.
GS: A guerra raramente tem rosto de mulher, mas em seu livro você traz um corpo feminino como protagonista, deixando claro como os corpos das mulheres não lhes pertencem e sofrem violência de todas as formas. Como a cobertura da guerra influenciou na escolha do tema do seu livro?
EM: Sinto profundamente que o tema me escolheu, e não o contrário. Acho que houve muito trabalho subconsciente porque sinto que não decidi nada sobre esse livro. É como se ele já estivesse escrito “em algum lugar” e eu apenas tivesse que anotá-lo. Dito isto, tenho a certeza de que a cobertura da guerra – e, além disso, a minha experiência geral no Iraque – teve tudo a ver com este processo subconsciente de que estou a falar. É como uma catarse. Se não fosse essa experiência, o livro provavelmente não existiria.
“O que vemos são apenas nuances de uma praga mundial: o patriarcado e, como sua consequência, a opressão contra as mulheres. Ela pode assumir muitas formas: cobrir os corpos ou hipersexualizá-los, por exemplo. E é mais ou menos óbvio em alguns lugares, mas tudo vem da mesma semente”
GS: As ruas não são espaços construídos para os corpos das mulheres. Numa guerra, estes corpos são ainda mais vulneráveis. O que mais a chocou na cobertura da guerra nesse sentido?
EM: Em todas as guerras, os corpos femininos tornam-se frequentemente campos de batalha e saques. Lembro de conversar com mulheres que sofreram abusos – essas são, provavelmente, algumas das histórias mais difíceis que ouvi em toda a minha vida. E ouvi histórias semelhantes na Colômbia, por exemplo, ou quando pesquisava para o meu último livro sobre a ditadura na Argentina.
GS: Num momento em que temos em curso uma guerra entre Israel e Hamas, em que a maioria das mortes são de mulheres e crianças, como o seu livro lida com esta dura realidade?
EM: Não tenho certeza se meu livro lida com essa realidade. Ou talvez no sentido de que, para mim, todos os personagens são vítimas – até os homens, até o assassino. Nessa guerra terrível – naquele massacre que acontece todos os dias, e que continua – todos os civis são vítimas. As pessoas em Gaza – pessoas comuns, que não são do Hamas, mas sim civis, famílias, crianças – estão sendo bombardeadas todos os dias. E é terrível porque a violência alimenta a violência. Li hoje que pode haver uma trégua durante o Ramadã – e depois, o que? O massacre recomeça?
GS: A violência e a opressão contra as mulheres não se restringem ao mundo árabe. Como você vê esses pontos em que todas nós, mulheres, em qualquer lugar do mundo, vivenciamos?
EM: Concordo totalmente. Penso que o que vemos são apenas nuances de uma praga mundial: o patriarcado e, como sua consequência, a opressão contra as mulheres. Ela pode assumir muitas formas.: cobrir os corpos ou hipersexualizá-los, por exemplo. E é mais ou menos óbvio em alguns lugares, mas tudo vem da mesma semente. Sempre é um desastre – um desastre diário que está normalizado há muito tempo.
GS: Ser fotojornalista significa trabalhar essencialmente no espaço público. Sente algum tipo de medo?
EM: Na verdade, o que mais gosto de fotografar é a intimidade. Por exemplo, tenho um projeto de longo prazo no Iraque sobre a vida de duas irmãs, duas meninas. A maioria dessas fotos foi tirada na casa delas. Mas, quando se trabalha em ambiente público, eu diria que as primeiras fotos podem ser difíceis – o começo, quando você levanta a câmera e sabe que está visível, é uma espécie de perturbação no espaço público. Mas é mais como uma timidez.
GS: Você já viajou por muitas cidades. Como elas, sendo tão diferentes, constroem parte de quem você é?
EM: Sou principalmente uma pessoa da montanha e do mar e, se fico muito tempo na cidade, sinto que preciso de ar. No entanto, sim, várias cidades contribuíram para moldar a pessoa que sou hoje. O interessante é que são cidades muito diferentes: Bogotá e Marselha, Bagdá e Buenos Aires… cidades muito diferentes, onde as mulheres vivem de maneira muito diferente.
GS: Sempre dizemos que as cidades nos encontram, independentemente de termos nascido lá. Alguma cidade específica a encontrou?
EM: Não sou uma pessoa urbana completa, mas me senti assim em Bogotá, quando me mudei para lá por causa da universidade. Essa cidade é um monstro, é difícil e perigosa, e você passa horas no trânsito, mas, ao mesmo tempo, tem uma energia que raramente encontrei em outro lugar.