
Contra todas as expectativas e convenções, elas partiram para descobrir o mundo. A bordo de navios, trens ou bicicletas, diversas mulheres cruzaram, sozinhas, fronteiras geográficas e simbólicas muito antes que o mundo as reconhecesse como escritoras e viajantes. Sim, elas sempre existiram, mas o problema é que raramente foram lembradas por isso.
Pergunte a qualquer mulher qual é um dos seus maiores sonhos e a resposta, em sua maioria, flertará com a ideia de viajar. A afirmação não é mera suposição, mas um dado concreto: a pesquisa “O Sonho Delas”, realizada pelo Think Olga em parceria com o projeto Sonhe como uma Garota, aponta o desejo de viajar como o principal entre mulheres de todas as idades. Ainda assim, ao tentarmos listar nomes de grandes viajantes da História, nos ocorre um vazio. Um branco. Talvez venha à mente Marco Polo ou Darwin, todos homens. E as mulheres? Isso nunca significou que elas não estivessem lá. Ao contrário.
A escritora e pesquisadora portuguesa Sónia Serrano percebeu essa lacuna. Em seu mais recente livro, “Mulheres Viajantes” (Tinta-da-China Brasil), recém-publicado no país, ela faz um resgate e uma reparação. Em suas páginas, dezenove protagonistas da Antiguidade ao século XXI, que desafiaram os limites do que se esperava delas, têm suas trajetórias contadas em detalhes. “Achei importante contribuir para que se conhecessem as histórias destas mulheres e as suas obras, resgatá-las de um certo esquecimento”, diz ela, em entrevista ao Mulheres e a Cidade.
Ao cruzar oceanos e desertos, essas mulheres cometeram duas transgressões imperdoáveis para suas épocas: deixaram o espaço doméstico, o que já era considerado ousado, e ainda escreveram sobre isso. Publicaram diários, cartas, relatos de expedição. Deixaram sua assinatura na história. Como Gertrude Bell, cartógrafa e arqueóloga britânica que ajudou a desenhar as fronteiras do Oriente Médio moderno; Dervla Murphy, que percorreu o mundo em cima de uma bicicleta com um olhar provocativo e encantado; Tamara Klink, a jovem navegadora brasileira que fez do Ártico sua casa temporária, e tantas outras. Elas, de alguma forma, colocaram o corpo no mapa e a alma na linguagem.
Por isso, viajar, para Sónia, vai além de passar férias em algum lugar. É diferente e instiga a sair da zona de conforto. “Viajar implica deixar para trás o conhecido e saber olhar para o que nos rodeia”. E esse é um dos maiores convites do livro e da conversa que você lê a seguir: escutar essas histórias, deixá-las impactar dentro de você e, quem sabe, ao final, sentir vontade de preparar a mala para a sua própria descoberta.

Graziela Salomão: Quando você percebeu o apagamento histórico das mulheres viajantes e entendeu a importância de se resgatar essas histórias?
Sónia Serrano: Foi por volta de 2010. Era comissária de uma exposição que mostrava o trabalho fotográfico de Annemarie Schwarzenbach, uma escritora e viajante suíça da primeira metade do século XX. Ela tinha feito uma viagem com a Ella Maillart, outra viajante e escritora suíça, em 1939, de Genebra até Cabul, num Ford Roadster, completamente sós e sem guias. Eu quis entender se isso era algo comum ou não, porque percebi que não conhecia nenhuma viajante, nem tinha lido literatura de viagem escrita por mulheres. Foi nessa altura que iniciei a minha investigação e percebi que, apesar de, sobretudo no universo anglo-saxónico já existirem algumas publicações, em português não havia muito publicado e achei importante contribuir para que se conhecesse as histórias destas mulheres e as suas obras, resgatá-las de um certo esquecimento.
GS: Teve alguma das mulheres viajantes que mais a surpreendeu e inspirou? Se sim, qual e por quê?
SS: A inspiração vem de Annemarie Schwarzenbach. Ela foi o motivo de começar a me interessar pela literatura de viagem, especificamente a escrita por mulheres. Foi uma grande viajante e a obra que produziu é muito sedutora. É uma narrativa intimista e muito penetrante, como se ela se fundisse com a paisagem. Ela possui essa rara capacidade, esse dom, de transformar o que vê, a paisagem, numa síntese entre o que está fora e o seu interior. Recomendo muito a sua leitura.

GS: Você escreve que é necessário “coragem e força de vontade para afrontar a sociedade e insistir na aventura geográfica”. Isso é tanto para as mulheres viajantes do passado como as de hoje?
SS: Historicamente uma mulher viajante e escritora significava uma dupla transgressão, ela saia do reduto doméstico e familiar que era o papel que a sociedade lhe atribuía, primeira transgressão, e depois, ainda tinha a ousadia de escrever sobre essa experiência, e aí temos a segunda transgressão. Naturalmente que a partir, sobretudo da segunda metade do século XX, há uma maior abertura nas sociedades ocidentais e, hoje em dia, já é comum haver mulheres que viajam sozinhas e que escrevem as suas narrativas de viagem. Mas, ainda assim, o olhar reprovador que por vezes essas mulheres recebem ainda existe. Aliás, há um livro muito interessante escrito pela brasileira Gaia Passarelli cujo título justamente é Mas você vai sozinha?, porque ainda existe alguma perplexidade de ver uma mulher a viajar sozinha.
GS: Como você se descobriu uma mulher viajante?
SS: Quando me comparo com estas mulheres de que falo no meu livro não me sinto uma grande viajante (risos), mas a verdade é que adoro viajar e isso foi, para mim, algo natural. Nasci em Lisboa de pais espanhóis, por isso desde muito criança que para mim era comum apanhar comboios ou aviões para circular entre Portugal e Espanha. Por outro lado, os meus pais adoravam viajar e acho que de alguma forma aprendi deles essa coisa maravilhosa de irmos a um lugar completamente diferente do nosso, aprender com o outro, saber apreciar as diferenças. Isso é tão importante no mundo de hoje em que parece que há pessoas que querem condenar aquele que é diferente de nós. Viajar nos ajuda a entender o mundo, saber que existem outras realidades tão importantes e válidas como a nossa. Deixo uma citação, com a qual me identifico, de outra viajante, a Gertrude Bell e do que sentiu quando deixou a Inglaterra e começou a conhecer o mundo: “Pergunto-me se continuamos a ser a mesma pessoa quando o ambiente que nos rodeia, as associações, os conhecimentos que temos mudam? Aqui, esta que sou eu, que é uma jarra vazia que o que passa enche à sua vontade, encontra-se cheia de um vinho de que nunca tinha ouvido falar na Inglaterra…Que grande é o mundo, que grande e que magnífico.”

GS: Qual viagem mais a transformou?
SS: É difícil escolher uma porque tem muito a ver com as etapas da nossa vida, mas creio que talvez uma das que mais me marcou foi a primeira vez que fui sozinha aos Estados Unidos. Passei por Nova York, Washington, Boston, por aquela área. A maior parte do tempo fiquei trabalhando em Nova York, tomando conta de crianças, tinha uns 17 anos, fui por quinze dias acabei por ficar uns quatro ou cinco meses. Fez-me crescer muito como pessoa, como mulher, lembro-me quando voltei e me encontrava com os meus amigos, parecia que eles tinham ficado parados no tempo e eu tinha avançado muito em termos de amadurecimento. É por isso que acho tão importante, se fosse possível, que todos os jovens no período entre a escola e a vida profissional fizessem uma viagem sozinhos explorando outras realidades, acho que se aprende muito e nos tornamos seres humanos melhores, mais empáticos. Outra viagem marcante foi a que fiz ao Irã há uns anos. Adorei conhecer o país que é lindo e as suas gentes que são encantadoras e, sobretudo, adorei desmontar todos os mitos negativos que existem sobre ele. É por isso que é importante viajar, se eu vou ao lugar, se eu conheço as pessoas posso perceber que elas não são uma ameaça, pelo contrário, e que podemos apreciar a respeitar nas nossas diferenças. Pode ser utópico da minha parte, mas é assim que vejo o mundo.
GS: Como você lida com os riscos de viajar sozinha? E quais são as melhores coisas?
SS: Confesso que não vejo muito o viajar sozinha como um risco, não quero entrar nesse tipo de pensamento porque acho que nos limita. Viajar é tão arriscado como a vida em geral, diria eu. Claro que há cuidados que se devem ter para evitar que nos roubem, ou evitar ameaças à nossa integridade física. Acho que sempre tive muita sorte porque nunca vivi situações em viagem que pudessem ser consideradas de risco, excepto uma vez numa fronteira, mas isso foi por parte das autoridades. Não sobrevalorizo o viajar sozinha sobre o viajar com companhia, ambas são situações interessantes. Talvez a vantagem de se viajar sozinha é que temos de nos abrir mais, contar mais com os outros, isso claro que aumenta a interação com as populações locais ou com outros viajantes. Mas claro que acho fundamental, pelo menos uma vez na vida, as pessoas fazerem uma viagem sozinhas. Acho que isso deveria fazer parte do desenvolvimento humano.

GS: Como conhecer tantas cidades diferentes impactou na sua vida e na sua construção como mulher?
SS: Eu adoro conhecer cidades novas, é um verdadeiro prazer para mim. É muito comum nos viajantes exaltar-se a natureza e os lugares naturais, que são fantásticos, claro, mas às vezes com um certo desprezo pelas cidades. É verdade que as cidades podem ser barulhentas e sujas e muito mais caóticas que uma estadia no campo, mas elas também representam muito uma espécie de micro ou, nalguns casos, macrocosmos de um lugar. Numa cidade há de tudo, edifícios, parques, museus, teatros, óperas, lugares para fazer esporte, hospitais, enfim, é um sem fim de atividades e pessoas muito diferentes. Por isso é que, para mim, é muito triste este processo de gentrificação a que temos assistido em algumas cidades, em que tudo fica muito igualado, perdendo-se a essência e a alma dos bairros.
GS: Viajar também é um ato de resistência?
SS: Para as mulheres claramente representou um ato de resistência, embora por vezes inconsciente. Nem todas viajavam para afirmar algo, embora muitas soubessem que o que faziam era transgressor e que desafiava as normas. Mas não podemos pensar que havia um gesto político por trás disso. Acho que as coisas começam a mudar sobretudo a partir de meados do século XX em que a viagem começa a se tornar um assunto mais pessoal e, simultaneamente, mais político e de afirmação de uma independência explícita. Atualmente, e apesar de todas as conquistas alcançadas pelos movimentos feministas, parece que voltamos a ter necessidade de afirmar o nosso direito enquanto mulheres a fazer o que queremos e a viagem surge então como um ato de resistência.
GS: O que é viajar para você?
SS: Tento uma breve definição no meu livro: “Viajar é essencialmente descobrir, descobrirmo-nos a nós e o reflexo das nossas vidas nas etapas da viagem, assim como descobrir o outro sem o conforto das referências que nos são imediatas. Mas é preciso saber ver.” Para mim viajar tem muito a ver com sair da minha zona de conforto e explorar o mundo e tudo o que ele tem para oferecer. Por isso não é exatamente a mesma coisa ir de férias para um lugar, que até pode ser distante e diferente da nossa realidade, para ficarmos num resort isolado de tudo e que reproduz exatamente o que deixamos em casa em termos de conforto, alimentação. Isso para mim não é uma viagem, são férias, mas não é o mesmo. Viajar implica deixar para trás o conhecido e saber olhar para o que nos rodeia.

GS: Você também é uma mulher com olhos de viajante em sua própria cidade? Como manter esse olhar curioso e sagaz no dia a dia?
SS: Sim, tento ser. Nem é muito difícil, recebo sempre muita família e amigos que vêm de fora, então para mim é sempre com renovada surpresa que vou olhando para a minha cidade que é Lisboa. Às vezes, basta mudar um percurso ou olhar de um outro ângulo e de repente descobrem-se coisas novas, é fascinante. É como ver a cidade através dos olhos de outras pessoas. E depois gosto muito de caminhar, então tento muito ir a pé para os lugares, isso dá-nos uma visão renovada das ruas, há sempre coisas novas para ir descobrindo, a cidade contém muitas coisas, faz-me lembrar o poema da Adília Lopes:
“Mesmo
uma linha
recta
é o labirinto
porque
entre
cada dois pontos
está o infinito”
É como se cada cidade contivesse o infinito e eu adoro perder-me nesse infinito. Quando vou a uma cidade que não conheço, claro que gosto de ver os seus pontos de atração, mas adoro igualmente perder-me a andar por entre as pessoas sem destino fixo. Com frequência pego um carro sem destino e saio num bairro qualquer que desconheço para tentar perceber um pouco mais dessa cidade.