Foram os enjoos matinais que despertaram na geógrafa canadense Leslie Kern sensações inéditas ao experienciar a cidade. No trem, a caminho do trabalho, ela descobriu o poder da invisibilidade que só uma mulher grávida passando mal tem ao precisar sentar – e não conseguir. Antes, como mulher, branca, cis, saudável, ela vivia o medo do assédio, por exemplo, mas jamais havia enfrentado um coletivo de mãos desconhecidas alisando a sua barriga com a certeza de estarem tocando em um monumento público. “Percebi que à medida que meu corpo mudava, minha relação com a cidade ao meu redor também mudava”, escreveu Leslie em uma de nossas trocas de e-mail para a nossa entrevista para a newsletter “Mulheres e a Cidade”.
As desigualdades de acesso ao espaço urbano ficaram ainda mais claras e definidas depois que Maddy, a filha dela, nasceu. Mover-se pelas ruas e usar o transporte público com um carrinho de bebê virou uma aventura, e lugares que antes lhe eram acolhedores passaram a tratá-la com indelicadeza. Leslie ampliou as pesquisas e, em 2019, lançou “Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens” (Oficina Raquel). O livro entrelaça vivências pessoais, referências bibliográficas, história e alguns dados para guiar o olhar do leitor em direção às proibições, tanto as escancaradas como as subjetivas, impostas por um espaço urbano planejado e comandado por homens.
Nesta conversa, Leslie faz mais: ela aponta quais perguntas devemos nos fazer e que postura são legais de adotar para promover as transformações necessárias que nos levem à criação de uma cidade feminista.
Larissa Saram: Quando foi que os insights das teorias feministas se cruzaram com a sua experiência como geógrafa?
Leslie Kern: Um dos insights da teoria feminista é que o corpo é importante. O corpo pode ser pensado como um lugar e, por isso, é moldado pelas normas, valores, preconceitos e relações de poder da sociedade. Os geógrafos estão sempre pensando sobre lugares, mas às vezes esquecem como os corpos interagem com os espaços. Essa é uma forma pela qual a teoria feminista e a geografia se conectam para mim. A nível pessoal, experimentei exatamente isso quando estava grávida e vivendo em Londres. Percebi que, à medida que meu corpo mudava, minha relação com a cidade ao meu redor também mudava.
LS: O que significa ser uma geógrafa feminista atualmente?
LK: Acho que significa sempre questionar como o poder opera dentro e através dos espaços que nos rodeiam. Por exemplo, pensar em quem está incluído e quem está excluído. Significa também adotar uma abordagem interseccional, que se atente ao gênero, mas também à raça, classe, sexualidade, idade, capacidade e outros fatores. Significa olhar cuidadosamente para os contextos locais que moldam a vida das mulheres e ligá-los a outras escalas, como a nação e o globo. Significa ouvir as experiências e vozes das mulheres.
“Não creio que as mulheres devam ser responsáveis por “consertar” o mau comportamento dos homens, mas podemos ajudar a mudar o cenário, aprendendo como defender umas as outras quando presenciamos um assédio ou abuso“
LS: Quais perguntas essenciais as mulheres deveriam fazer para terem claras as opressões promovidas por uma cidade construída e operada por homens?
LK: Elas podem perguntar quem sempre esteve no comando do planejamento, concepção e elaboração de políticas na cidade. Também podem perguntar quais vivências e experiências foram incorporadas nesses projetos e tomada de decisões. Podem perguntar se foi dada prioridade às necessidades das mulheres em termos de questões como segurança, transporte e serviços. E podem perguntar como e porquê restringem os movimentos delas na cidade. Tudo isso pode ajudá-las a compreender por que sentem que a cidade não foi feita para elas.
LS: Arquitetas, urbanistas e geógrafas feministas têm feito intervenções significativas em suas áreas sobre as experiências de gênero nas cidades. Mesmo assim, as mulheres sentem medo ao andar na rua. No que precisamos avançar? Existe algo que nós possamos fazer para mudar esse cenário?
LK: Há um limite para o que o design pode fazer quando se trata de segurança. Se pudéssemos eliminar o medo, o assédio e o patriarcado, teríamos conseguido! Infelizmente, muitas vezes é o comportamento dos homens que gera medo entre nós. Para mudar isso, uma grande transformação cultural tem que ocorrer através da educação. Não creio que as mulheres devam ser responsáveis por “consertar” o mau comportamento dos homens, mas podemos ajudar a mudar o cenário, aprendendo como defender umas as outras quando presenciamos um assédio ou abuso. Podemos fazer com que os homens e meninos que fazem parte das nossas vidas saibam que tratar as mulheres dessa forma é inaceitável. E também insistir para que as nossas cidades ajudem a mudar as normas culturais através de campanhas de educação pública.
LS: O que significa exatamente ter uma postura feminista nas cidades? Qualquer pessoa pode ter essa postura?
LK: Acho que significa insistir que todas as mulheres têm direito à cidade, tanto quanto qualquer homem. Perceber e apontar todas as formas como as mulheres têm sido ignoradas, excluídas ou deixadas de lado no planejamento urbano. Significa defender um conjunto diferente de prioridades urbanas, além de simplesmente “a economia”. Qualquer um pode assumir essa posição e, na verdade, deveria, porque os tipos de mudanças pelas quais as mulheres lutaram são boas para quase todos: mais segurança, mais acessibilidade, melhores transportes, mais espaços verdes, etc.
“Uma abordagem interseccional significa pensar em todos os grupos de pessoas cujas necessidades raramente são consideradas no desenho urbano. Isso pode incluir crianças, idosos, pessoas com deficiência, imigrantes e outras pessoas que tenham sido deixadas de fora. Gosto de pensar nisso como trazer a margem para o centro”
LS: Como adotar uma abordagem interseccional ao pensar em novas possibilidades para a cidade?
LK: Em vez de imaginar o cidadão urbano típico como um homem de classe média que trabalha das 9h às 17h e sustenta a esposa e os filhos, precisamos imaginar um sujeito urbano diferente. Não é suficiente, contudo, simplesmente imaginar uma mulher de classe média que trabalha das 9h às 17h. Isso não levará a muitas mudanças. Uma abordagem interseccional significa pensar em todos os grupos de pessoas cujas necessidades raramente são consideradas no desenho urbano. Isso pode incluir crianças, idosos, pessoas com deficiência, imigrantes e outras pessoas que tenham sido deixadas de fora. Gosto de pensar nisso como trazer a margem para o centro.
LS: Existe uma relação direta entre pensar sobre a cidade e as marcações que carregamos no corpo. Onde corpo e cidade se encontram? E como essas questões podem nos ajudar a imaginar e criar diferentes futuros urbanos?
LK: O corpo e a cidade se encontram na forma como caminhamos e nos movemos, como a cidade faz a gente se sentir, no ar que respiramos e na água que bebemos. Gravidez, deficiência e envelhecimento podem nos lembrar que a cidade não foi projetada para ser amigável a todos os corpos. Fazer perguntas sobre quem tem acesso a alimentos saudáveis e espaços verdes pode nos ajudar a lembrar a necessidade de pensar sobre como distribuímos os danos e benefícios da vida na cidade de forma mais equitativa. Reconhecer que todos os corpos partilham necessidades de descanso, diversão, abrigo, água e cuidados pode ser uma forma de mudar as nossas prioridades. Em vez de construir mais espaços para carros, por exemplo, poderíamos construir mais espaços onde as pessoas possam partilhar refeições comunitárias ou descansar à sombra.
LS: Você diz no seu livro “Cidade feminista: A luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens” que ter amigas faz parte do kit de sobrevivência da cidade. Como as amizades com outras mulheres se relacionam com a cidade?
LK: As amizades entre mulheres são redes de apoio cruciais em cidades onde o trabalho de cuidar, majoritariamente realizado por elas, não é considerado prioridade no planejamento. As mulheres se ajudam a conciliar todas as responsabilidades de cuidados com o trabalho remunerado. Por exemplo, levar as crianças à escola para que outra mãe possa chegar ao trabalho a tempo para o seu turno da manhã. Este tipo de cuidado comunitário, fora da família nuclear, também nos lembra que o cuidado não é algo que acontece apenas no lar privado. Pode ser algo coletivo e público. Podemos imaginar cidades que apoiem uma série de relações e redes de cuidados diferentes, além da família patriarcal tradicional?
LS: Como é possível que não só as mulheres, mas toda a comunidade, tenha consciência de que pensar sobre a cidade tem um impacto em todas as outras áreas da vida?
LK: Quer viva ou não numa cidade, ou seja qual for a sua identidade, as cidades são locais muito importantes para o desenvolvimento da cultura, do exercício dos direitos democráticos, como os protestos, e a tomada de decisões políticas. Elas são as potências econômicas da economia global.
É onde vive mais de metade da população mundial. Por essas razões é importante prestar atenção às prioridades que as cidades abraçam: defendem os direitos das mulheres? Eles apoiam os imigrantes? Eles se preocupam com as mudanças climáticas? Todas estas questões e muito mais têm impacto nas decisões políticas e econômicas que são tomadas e que afetam a todos nós.
LS: Você diz no livro que todos nós somos capazes de criar novos mundos urbanos – e novos mundos feministas. Qual seria um bom começo?
LK: Você sempre pode começar localmente e perguntar: quais são uma ou duas coisas que melhorariam a vida das pessoas marginalizadas na minha comunidade? Talvez fosse reduzir o tráfego de automóveis para que fosse mais seguro para as pessoas caminharem e as crianças pudessem chegar à escola com facilidade. Talvez fosse criar uma horta comunitária para que os vizinhos de baixa renda tivessem acesso a alimentos frescos. Talvez fosse adicionar melhor iluminação a uma passarela para que as pessoas se sentissem mais seguras. Não é difícil encontrar algumas coisas nas quais se concentrar, e aos poucos é uma maneira de começar a fazer mudanças.