Por que o clitóris não estava representado nas enciclopédias até 1998? Ou: por que a NASA apagou a linha que indicava a vulva ao enviar uma imagem de mulher para o espaço? Esses são algumas das perguntas levantadas em “A Origem do Mundo”. Sucesso em 2023 e de volta aos palcos paulistanos para três apresentações exclusivas no Sesc Santana de 19 a 21 de janeiro, a montagem questiona tudo que foi dito sobre o prazer e o órgão sexual feminino até hoje. A peça é uma adaptação para o teatro da HQ da autora sueca Liv Strömquist, feita pelas brasileiras Luisa Micheletti e Julia Tavares, atrizes e roteiristas.
Assim como nossos corpos não podem existir livremente nas cidades, o prazer feminino não pode ser exercido de forma livre por nossos corpos. “Acabamos de ver o episódio terrível da Julieta Hernández, artista venezuelana que viajava pelo Brasil se apresentando de palhaça e foi assassinada. Sem dúvida não dá para separar esse acontecimento do fato dela ser uma mulher e, principalmente, uma mulher livre”, comenta Luisa, em entrevista a Púrpura Mag.
Seja para falarmos sobre nossas vaginas, vulvas e clitóris – que, sorte a nossa termos um órgão exclusivamente voltado para o prazer -, seja para falarmos como o tabu da sexualidade impacta na presença de nossos corpos nas ruas das cidades, o caminho é longo, porém necessário. “Acho que, para as futuras gerações, será visto como algo que faz parte: o prazer feminino, a menstruação, a escolha da mulher, tudo isso fará parte de uma sociedade mais igualitária”, diz Luisa. Leia, com muito prazer, nosso papo com a atriz.
GRAZIELA SALOMÃO: Como foi o encontro de vocês com o livro da Liv Strömquist?
LUISA MICHELETTI: Encontrei o livro em 2019 numa livraria. Tinha acabado de terminar o meu projeto anterior de teatro chamado “Soror”, que também era sobre o universo da existência feminina no mundo. Esse é o meu grande tema de pesquisa no teatro e eu estava aberta a achar um outro assunto para idealizar. Vi a capa do livro, que é um desenho de uma menina com sangue menstrual na calcinha. Achei superinteressante. Comprei, dei uma folhada. Acabei lendo apenas durante a pandemia. E foi uma revelação. Precisava adaptá-lo para o teatro. Fui atrás da autora e consegui comprar os direitos. Comecei a montar a equipe. Convidei primeiro a Julia Tavares para adaptar o texto comigo. Queria uma atriz e dramaturga, assim como eu, que tivesse essa dupla função de sentar para escrever e estar em cena. Foi superlegal. Depois a gente convidou a Maria Helena Chira para dirigir e toda a equipe criativa envolvida no projeto.
GS: Por que é tão importante desmistificarmos a história da vulva e da sexualidade feminina?
LM: Além da questão mais óbvia, que é sobre uma parte do nosso corpo, que a gente mal conhece a própria anatomia porque a ciência muitas vezes a retratou de forma equivocada, apagando e deturpando alguns de seus significados, é por também ser um símbolo muito poderoso. Por exemplo, se você invisibiliza o clitóris, que é um órgão de 10 cm, pequeno, que tem como única função dar prazer para mulher, e você faz isso durante um século inteiro, como aconteceu no século 20, significa que você está invisibilizando a importância do prazer feminino e colocando a mulher numa situação de subalternidade em vários níveis. É como se a mulher não tivesse direito ao prazer, como se ela tivesse aí só para servir, como se o prazer do outro sempre fosse mais importante do que o dela próprio. E por aí vai. A gente pega o órgão sexual vulva e vagina para desdobrar outros assuntos relativos a comportamento, a estrutura social e de poder. Não é só anatômico, mas é existencial. A peça é construída sobre esse ponto.
“Para as futuras gerações, será visto como algo que faz parte: o prazer feminino, a menstruação, a escolha da mulher, tudo isso fará parte de uma sociedade mais igualitária”
GS: O impacto positivo que a peça teve sobre a discussão da sexualidade feminina foi uma surpresa para você?
LM: A gente acredita que esse tema está tomando cada vez mais importância em vários âmbitos – no artístico, no político, no comportamental. De certa forma, foi uma aposta e esperávamos uma boa repercussão, mas nem foi isso que nos moveu. A gente quis falar disso porque importa e nos impactou demais. Percebi o quanto nós, mulheres bem informadas, não sabemos muitas coisas sobre o nosso próprio corpo. Isso é revelador e nos moveu a levar esse espetáculo para frente. Contando com esse impacto e surpresa também de outras pessoas que ficam passadas com a quantidade de distorções e informações que a gente não tem acesso, mesmo estando no século 21.
GS: E como o fato de o espaço público ser um lugar de não aceitação para o corpo feminino impacta na construção da sexualidade feminina?
LM: Interessante isso de como o espaço público influi na nossa sexualidade. Por exemplo, a questão da menstruação. A gente cresceu numa época em que a menstruação era um tabu ainda maior do que é hoje. Na escola, sair da classe com um absorvente para trocar era uma função quase missão impossível. Escondia o absorvente no bolso e saia discretamente porque ninguém podia perceber. Era um ritual de esconder algo tão natural que metade da população passa por vergonha, pouco conhecimento. Para a minha geração dos 40 anos esse diálogo não era tão aberto, nem na escola, nem na família. Isso está mudando, podemos contar com mais rodas de conversa, né?
Falando sobre o espaço público temos também a questão das imagens. A gente cresceu vendo propaganda de absorvente com o sangue azul espalhada em outdoors e comerciais. Isso já coloca o sangue vermelho como algo muito proibido. A própria autora Liv Strömquist teve problemas assim. Colocaram um outdoor no metrô com um desenho da capa da HQ dela que mostra a menina de perna aberta com a calcinha manchada de sangue. E ele foi censurado na Escandinávia! Imagina no Brasil o que não ia acontecer? Temos uma série de pudores influenciados pela religião e pela moral. É como se esse assunto fosse crime, pecado, indecência, sendo que é natural.
GS: Há cidades em que a presença das mulheres nas ruas é ainda mais difícil, principalmente pela sexualização em massa dos corpos femininos. Estar nas ruas passa a ser sinônimo de perigo e violência. Como você vê isso e como acha que desmistificarmos a sexualidade ajudaria na construção de um espaço mais seguro?
LM: Acabamos de ver o episódio terrível da Julieta Hernández, artista venezuelana que viajava pelo Brasil se apresentando de palhaça e foi assassinada. Sem dúvida não dá para separar esse acontecimento do fato dela ser uma mulher e, principalmente, uma mulher livre. É muito triste que a gente viva num país que ainda não aceite essa independência, autonomia, força do feminino que não está subjulgada. Quanto mais falamos desses assuntos, mais a gente desmistifica e integra esses temas na sociedade e, talvez, o outro lado se sinta menos afrontado. Acho que, para as futuras gerações, será visto como algo que faz parte: o prazer feminino, a menstruação, a escolha da mulher, tudo isso fará parte de uma sociedade mais igualitária. Estamos tentando achar esse espaço. O espaço geográfico influi muito no quanto a mulher está livre ou não. Vivemos em um país que, por um lado, é superlivre, mas por um outro é super hipócrita porque não é livre coisa nenhuma. Olha o que aconteceu com a Julieta e com tantas outras mulheres que sofrem esse tipo de violência.