Cultura

entrevista com Monize Moura

“Deixar para trás um território implica muitas vezes um luto de si”

Atriz e professora sergipana ganha prêmio nacional de dramaturgia com peça que traz a relação entre memória e identidade e seus impactos na construção das pessoas e das cidades. Por Graziela Salomão

Foto: Júlio Deunier

Memórias fazem parte da história de todos nós. E também das cidades onde vivemos. Quando se entende que a construção da identidade pessoal envolve tanto as lembranças familiares quanto, muitas vezes, as histórias dos lugares onde vivemos e, inclusive os silenciamentos impostos por eles, principalmente a grupos específicos de nossa sociedade, um novo olhar sobre a construção das cidades se abre.

Foi isso o que aconteceu com a atriz e professora sergipana Monize Moura, do Departamento de Artes (Deart) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela colocou todos esses sentimentos em uma peça de teatro que, ano passado, foi uma das vencedoras do Prêmio Solano Trindade, voltado a dramaturgos negros. “Depois da Fronteira” é a estreia de Monize na dramaturgia e traz como temas principais a memória, a diáspora, a migração e o luto sob o olhar de duas mulheres do Sul Global. 

No texto, a Mulher 1, como é chamada, vai morar em Paris e percebe que só é possível entrar na França se retirar todos os seus órgãos. Para conseguir isso, ela os incinera. Já a Mulher 2 se depara com a morte da mãe que, pouco antes de morrer, decide queimar todos os pertences. As duas se veem carregando cinzas e tentando encontrar um lugar para deixá-las. “Essa é uma situação que nos sensibiliza para a dimensão coletiva das memórias. A quem pertencem, afinal? Quem tem direito a ter sua memória preservada?”, questiona Monize na entrevista desta semana ao Mulheres e a Cidade. “Essa é uma discussão que tem tudo a ver com território, com a construção de cidades, por exemplo, que é fundada também em uma série de representações, de monumentos que contam e reforçam de modo silencioso uma narrativa de país, de cidade, repleta de silenciamento, de apagamentos”. 

Monize começou sua trajetória no teatro amador de Aracaju, no Sergipe, e se formou como atriz na Escola de Teatro da UFBA. Em Salvador, fez parte de dois grupos cênicos. Em 2011, se dedicou à pesquisa em História do Teatro, com mestrado pela Universidade de Estrasburgo e doutorado pela Universidade de Paris-Saclay e UNIRIO. Seis anos depois, foi dar aulas na UFRN, onde coordena o projeto Memória do TAM, voltado à preservação do acervo documental do Teatro Alberto Maranhão, em Natal.

“Depois da Fronteira” será publicada no livro “Eternizar em Escrita Preta – Volume 5” junto com as outras duas peças vencedoras do prêmio e distribuida gratuitamente para as escolas. “Me anima imaginar que o texto poderá ser lido e, quem sabe, montado por outros artistas, estudantes, jovens que vão, a partir dele, elaborar suas urgências”, diz.

Foto: Clara Silva / Divulgação SP Escola de Teatro

Graziela Salomão: Você ganhou o prêmio Solano Trindade com o texto “Depois da Fronteira”. Como surgiu a ideia de escrever essa peça?
MM: A escrita partiu de um desejo de escrever sobre memória e de montar um espetáculo teatral. Inicialmente, queria articular, a partir de um processo de criação teatral, temáticas e problematizações recorrentes no meu trabalho como professora e pesquisadora. Desde 2017, sou professora do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, pesquiso e leciono sobretudo sobre História do Teatro Brasileiro e História do Teatro Potiguar. Em 2020, passei a coordenar, através da universidade, um projeto de preservação do acervo documental do Teatro Alberto Maranhão, construído em 1904. Na experiência da pesquisa com os acervos, as questões relativas a memórias silenciadas eram muito recorrentes. Entendo o trabalho com a criação teatral em seu um potencial catalisador: a gente consegue tratar de um assunto sob diversas camadas. Resolvi me lançar na escrita de cenas e, em 2024, o desejo assumiu a forma de “Depois da Fronteira”. A criação tomou um caminho que eu não esperava a partir de experiências pessoais, o que trouxe o recorte a partir do feminino e a relação entre memória e a dimensão étnico-racial.

GS:  Como se sentiu ao ganhar o prêmio?
MM: Estar entre os três textos selecionados pelo Prêmio Solano Trindade 2024 com minha dramaturgia de estreia foi uma enorme felicidade, não só pelo reconhecimento que a premiação envolve, mas também pela publicação da peça pelo Selo Lucias. Solano Trindade foi um artista e ativista negro muito importante no século XX. Por isso, um prêmio com seu nome é uma ação que nos incentiva a celebrar essa memória, compreendendo-a também enquanto produtora de novos caminhos. Foi muito significativo para mim que o texto tenha sido lido e compreendido em sua dimensão étnico-racial e me incentiva a continuar escrevendo, principalmente levando em consideração que os espaços e funções de autoria são normalmente ocupados e exercidos por homens, geralmente brancos. Receber um prêmio voltado para dramaturgia negra também fortalece a minha própria identidade e valida a ideia de um teatro negro plural, no qual é possível tratar de subjetividades de diversas formas. 

GS: Como a questão da identidade e do território influenciam na sua arte?
MM: O processo de escrita envolveu a reelaboração e ficcionalização de experiências pessoais e trouxe para o texto a relação entre memória e território, assim como aspectos da dimensão étnico-raciais. Na peça, uma das personagens, uma mulher negra, descobre que, para entrar na França, precisará retirar todos os seus órgãos. Ela, então, queima suas próprias vísceras, mas é barrada no aeroporto porque a legislação não permite que entre no país com cinzas. Essa situação, que é da linguagem do absurdo, evoca uma série de questões sobre a construção de nossa identidade e o território, sobretudo os contextos de migração e diáspora, que precisam ser pensados na dimensão étnico-racial também. Deixar para trás um território implica muitas vezes um luto de si. A migração pode trazer uma sensação de fragmentação de identidade e memória. O texto evoca um desejo de juntar esses fragmentos como uma questão vital. Na peça, uma das personagens está o tempo inteiro buscando dar um lugar às suas próprias cinzas e esbarra nos processos burocráticos do Estado, que definem o que somos por meio de categorias como nacionalidade, gênero, raça. Penso que a trajetória dessa personagem também pode ser lida de diversas formas. Como continuamos vivas, ocas de nossas memórias? Que espaço damos às nossas memórias? A escrita da peça me possibilitou elaborar os processos através dos quais vamos nos definindo e em que medida eles envolvem processos violentos de silenciamento de memórias e de traços vitais de cada um.

“Quem tem direito a ter sua memória preservada? Essa é uma discussão que tem tudo a ver com território, com a construção de cidades, por exemplo, que é fundada também em uma série de representações que contam e reforçam de modo silencioso uma narrativa de país repleta de silenciamento e de apagamentos.”

GS: Na sua opinião, por que é tão importante reforçarmos a memória na construção da nossa identidade e das nossas cidades?
MM: A segunda personagem da peça lida com a morte da mãe, que antes de partir queima todos os seus pertences, não deixando à filha nenhum vestígio de si, a não ser cinzas. Essa situação-limite evoca também o debate sobre memória e identidade. Na peça, a mulher se revolta com a atitude da mãe, que considera egoísta. E tem várias camadas nisso. Primeiro, a constatação de que geralmente cabe à mulher o papel de guardiã das memórias familiares. Isso precisa ser problematizado, é um trabalho invisível, afinal. Segundo, é uma situação que nos sensibiliza para a dimensão coletiva das memórias. A quem pertencem, afinal? Quem tem direito a ter sua memória preservada? São perguntas que ecoam das situações trazidas pelas duas personagens da peça. Essa é uma discussão que tem tudo a ver com território, com a construção de cidades, por exemplo, que é fundada também em uma série de representações, de monumentos que contam e reforçam de modo silencioso uma narrativa de país, de cidade repleta de silenciamento e de apagamentos. Grada Kilomba problematiza bastante isso em suas falas, e foi uma referência importante na escrita do texto. Por que é crucial para a existência dessas personagens encontrar um lugar para essas cinzas? É em torno desse debate que a peça se articula e penso que tem toda relação com uma reflexão sobre memória, espaço urbano e a construção de nossas próprias identidades.

Foto: Clara Silva / Divulgação SP Escola de Teatro

GS: Como as artes trazem essa força do direito à memória a todos?
MM: Hoje muitos artistas tem formulado perguntas sobre ancestralidade e direito à memória. Além de Grada Kilomba, posso mencionar também Gabriela Wiener, Saidiya Hartmann, Rosana Paulino, Annie Ernaux como artistas igualmente importantes para a minha escrita. Já no teatro, as dramaturgias de Henrique Fontes, Victor Nóvoa e Mônica Santana. A partir de ângulos diferentes, todas trazem essa discussão. O interessante é que a arte permite fazer esse debate em diversas camadas a um só tempo, são múltiplas as elaborações que podemos fazer a partir do que a arte nos dá, como cena, como imagem, como texto, como matéria. Meu desejo é que essa escrita possa virar espetáculo, pois um texto de teatro se completa na cena.

GS: Você falou sobre como a elaboração da sua própria identidade por ser uma mulher negra no Brasil é um processo conflituoso. Como se deu isso para você? 
MM: A elaboração da minha própria identidade de mulher negra de pele clara não foi um processo fácil. Primeiro porque fomos historicamente impelidos no Brasil a silenciar questões de cor, como se o racismo não existisse. Foi um processo histórico de construção do mito da democracia racial, que, entre outras coisas, envolvia um projeto de embranquecimento do país, mas que também encontrou forte resistência de diferentes atores, sobretudo do movimento negro no século XX. Em geral, no caso das pessoas negras de pele clara, a afirmação da identidade negra requer muitas vezes confrontar a maneira como você se viu e aprendeu que era com aquelas diversas autodenominações que ficaram famosas em recenseamentos da população brasileira. Se reconhecer como negra é também fruto de um processo em que vai se percebendo racializada. Uma curiosidade, no meu caso, se deu durante o período de sete anos em que morei na França. Lá, eu não era lida como negra, mas como “mestiça”. Me chamava atenção uma pergunta que comumente me era feita por pessoas que não conheciam: “você tem origens?”. Era uma maneira de me perguntarem se eu era fruto de uma relação interracial. Só que essas indagações também me mostravam que, mesmo não sendo lida enquanto negra, eu era percebida como “o outro”, algo da ordem do exótico. Naquela pergunta, a “origem” continha nas entrelinhas “origem em outro lugar”, um lugar não branco. A partir dessa indagação, fui percebendo minha existência racializada dentro de um espaço de branquitude e fortemente marcada pela migração. No Brasil, durante muito tempo, também me entendi como sendo uma mulher “mestiça” ou parda, mas esse parda era quase que uma negação da minha negritude. E isso é parte do processo de embraquecimento. Como pessoa negra de pele clara, experimento um lugar de “passabilidade”. Acreditar que você está quase lá, é quase branca, dificulta perceber-se como negra. Se em algum momento essa “passabilidade” permite se sentir pertencente “ao ideal” branco, isso também ganha nuances e se mostra irreal. Então, você vai se dando conta de vários processos de negação de si ao longo da vida. As diversas químicas no cabelo, na tentativa de alisá-los, a foto que você tira encolhendo o nariz para que ele pareça mais fino, a própria não identificação como negra e por aí vai. Seria isso, de certa forma, como retirar as próprias vísceras, uma parte de si, para pertencer a um espaço dominado pela branquitude? Escrever essa peça me permitiu pensar sobre isso.

“Andar sozinha e sentir prazer em ocupar o espaço da cidade foram experiências mais tardias e que vieram, inclusive, com uma carga de culpabilização e medo.”

GS: Que cidade e que país você sonha em construir a partir desse resgate da memória?
MM: Com essa peça, sonho com uma cidade onde a memória seja discutida e não sirva apenas para produzir narrativas heróicas de grupos dominantes. Onde há memória, há lacuna e esquecimento. Nosso papel como professoras e artistas é olhar para essas lacunas, jogar uma lente de aumento nisso, seja dando a ver histórias não contadas ou problematizando o modo como e o que lembramos. Acho que “Depois da Fronteira” caminha nessa segunda direção. Na peça, as duas personagens se encontram em um Cemitério Vertical onde cada uma tenta “enterrar” sua caixa de cinzas. Porém, se deparam com a falta de vagas e comercialização exacerbada dos ritos fúnebres. Penso que há muita relação entre a falta de vagas em cemitérios nas grandes cidades, que é uma crise que vivemos hoje, e a maneira como lidamos com a morte, o lugar que damos a ela e aos nossos ancestrais. Fingimos que eles não estão lá, mas o passado parece sempre querer voltar. No caso das cidades, onde prédios são construídos em cima de escombros, em cima da devastação da natureza, há uma série de camadas de apagamentos. A arte nos permite tratar disso.

GS: Como a cidade te atravessa como mulher? E como você atravessa o espaço onde vive?
MM: Como mulher, a minha experiência de cidade foi, na infância, marcada pelo cerceamento. Eu morava num bairro de classe média baixa em Aracaju. Quando criança, a rua para mim era um interdito, ao passo que meu irmão era encorajado a brincar nela. Acho que, de alguma forma, na época se acreditava na ideia de que a lei das ruas faz o menino virar “homem”. Porém, para uma menina, a rua podia significar perigo. Então, a experiência de gênero na cidade é, desde a infância, muito cerceada. Eu via homens na rua, nas mesas de bar, jogando dominó no meu bairro. Mulheres, não. Às mulheres, o espaço doméstico. Andar sozinha e sentir prazer em ocupar o espaço da cidade foram experiências mais tardias e que vieram, inclusive, com uma carga de culpabilização e medo.

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