
Foi pelas ruas de São Paulo, recolhendo materiais recicláveis, que Laura da Cruz encontrou um novo caminho. Ela havia chegado à capital paulista há nove anos, vinda de Belém em busca de oportunidades, mas logo se viu sem teto, sem emprego e sem rede de apoio. Sem dinheiro, a auxiliar de enfermagem de 63 anos passou noites no aeroporto de Guarulhos até conseguir vaga em um abrigo municipal. Foi lá que conheceu uma mulher que trabalhava com reciclagem e a apresentou a uma cooperativa. Naquele espaço, Laura não apenas descobriu uma nova forma de sustento, como encontrou também um propósito. Entendeu que a reciclagem era mais do que trabalho: era uma contribuição vital para a cidade. O que nunca conseguiu entender, no entanto, foi o desprezo que enfrentou. “As pessoas que têm um poder aquisitivo maior acham que o catador de reciclagem é um lixo. Para eles, não é o que produzem que é lixo, mas sim o catador”, desabafa, inconformada, na nossa conversa para o Mulheres e a Cidade desta semana.
Hoje, Laura não trabalha mais como catadora. Ela atua na associação Pimp My Carroça, que desenvolve projetos para dar visibilidade e dignidade aos catadores em todo o Brasil. “Ser educadora ambiental é gratificante. É levar, falar, ensinar o que aprendi com toda dificuldade, preconceito, humilhação que passei e ensinar o certo.”
Laura também é uma das protagonistas da série documental A Melhor Mãe do Mundo (Real), produzida durante as filmagens do longa de mesmo nome. O projeto lança um olhar delicado e potente sobre as mulheres brasileiras que atuam na coleta e triagem de materiais recicláveis e que, ao mesmo tempo, batalham por cidades mais sustentáveis. No Brasil, de acordo com levantamento do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia, cerca de 800 mil catadores estão em atividade. Destes, 70% são mulheres, ainda hoje invisíveis e discriminadas, esquecidas por uma cidade que tanto precisa delas para funcionar e para construir um futuro ecologicamente possível.

Graziela Salomão: Você veio de Belém para viver em São Paulo. Como foi chegar aqui?
Laura da Cruz: A minha chegada em São Paulo foi uma chegada triste. Quando cheguei na casa de uma pessoa que disse que me ajudaria, ela fechou a porta para mim. Estava sem trabalho e a chegada aqui não foi boa.
GS: Quanto tempo você levou para ver São Paulo como seu novo lar?
LC: Não vejo São Paulo como meu novo lar, sabia? Vejo São Paulo como um lugar que me deu oportunidade para viver, para morar. Mas como meu novo lar, ainda não. No meu ver, ainda falta muita coisa para ver São Paulo como meu lar.
GS: Durante um tempo, sua vida aconteceu nas ruas da cidade, caminhando enquanto catava o lixo. Como é ver a cidade dessa forma, andando por ela?
LC: Hoje eu não cato mais lixo na rua, mas tem muito preconceito, muita desigualdade, desumanidade, sabe? Vejo isso andando em São Paulo com as pessoas que catam reciclagem. Vejo isso porque senti na pele e passei por isso.

GS: Já se sentiu invisível na cidade? Como foi isso?
LC: Já. Foi triste, muito triste, porque as pessoas têm preconceito, têm racismo. E a gente é um nada. As pessoas que têm um poder aquisitivo maior acham que o catador de reciclagem é um lixo. Para eles, não é o que produzem que é lixo, mas sim o catador de reciclagem é um lixo, é um nada. Eles não enxergam o catador de reciclagem como ser humano, sabe? E isso é muito triste. Vivi na pele, senti essa dor.
GS: O que é ser uma catadora para você?
LC: Ser catadora, mãe, negra, vó, bisavó, tudo é uma coisa maravilhosa. Somos guerreiras e fazemos a diferença pro meio ambiente. Tudo de bom nessa vida é ser catadora. É não deixar ninguém pisar na nossa dignidade. Isso é ser catadora.
GS: Você tem vontade de trazer sua família para cá?
LC: Vejo minha família todo ano. Quando entro de férias vou para Belém, mas não tenho vontade de trazer minha família para cá. Eles não vão se acostumar com a cultura daqui, com o clima. É muito frio e eles têm uma cultura totalmente diferente, não vão se acostumar. Agora para passear tenho vontade de trazê-los.

GS: Qual é a cidade do seu coração: São Paulo ou Belém?
LC: As duas moram no meu coração. São Paulo, por eu morar nela e por ter sido reconhecida nessa cidade maravilhosa. Tinha o sonho de conhecer São Paulo. Conheci do modo triste, mas aqui continua sendo a cidade do meu sonho. E Belém por ser minha terra natal, minha cidade do coração.
GS: Você é educadora ambiental do projeto Pimp My Carroça. O que ele significa pra você? Como você chegou até lá?
LC: Ser educadora ambiental do Pimp My Carroça é gratificante. É levar, falar, ensinar o que aprendi com toda dificuldade, preconceito, humilhação que passei, e ensinar o certo. Cheguei no Pimp My Carroça através de uma cooperativa que eu trabalhava comprando materiais recicláveis. Fui em um evento e conheci todo o pessoal que trabalha lá. A parceria entre a cooperativa e a ONG acabou, mas fui convidada pela área de comunicação a fazer um vídeo. Ele bombou. Comecei a fazer um vídeo atrás do outro até que me contrataram para trabalhar com eles, onde estou hoje.
GS: E qual é o seu maior sonho de vida?
LC: Sou mãe, sou avó, sou bisavó, filha do dono do mundo e o meu maior sonho é continuar trabalhando e poder ajudar as minhas filhas, minhas netas, meus netos e meus bisnetos. Isso é gratificante e ter uma casa minha digna para morar. Eu consegui ter uma casinha em Francisco Morato, mas, com as chuvas, o telhado caiu, deu enchente, alagou tudo e tive que sair para morar de aluguel de novo. Por isso, meu sonho é ter uma casa minha aqui em São Paulo.