Cultura

entrevista com Patricia Maissa

“Estar com o Carnaval na rua é lembrar que a cidade é nossa e temos o direito de usá-la como a gente desejar”

A pernalta e engenheira ambiental desfila pelas ruas em cima da perna de pau durante os dias de festa. A visão privilegiada a emociona e a faz desejar ainda mais um espaço inclusivo para todas. Por Graziela Salomão

Foto: Arquivo Pessoal

Do alto, Patricia Maissa tem um Carnaval privilegiado, daqueles que poucos podem ver e sentir. É como se fosse um para-raios, como ela gosta de dizer, fazendo a troca de energia entre a banda e os foliões. E ali, em cima de suas pernas de pau, ela vive um Carnaval diferente: a cidade ganha contornos humanos coloridos, vivos e pertencentes a um mesmo espaço e um mesmo tempo.

Como pernalta, Patricia bate ponto em diversos cantos no pré e no Carnaval. Só esse ano serão, ao todo, 10 blocos dos quais participará: dois no chão, em que está do corpo de baile e toca, e oito em cima da perna de pau. “Ser pernalta é o meu momento de expressão na vida. Tem várias camadas, vários porquês, mas hoje em dia é um lugar em que posso me permitir ser eu”, conta, na entrevista desta semana do Mulheres e a Cidade.

Não faz tanto tempo que os carnavais paulistanos contam com as pernaltas em diversos blocos espalhados pela cidade. Elas misturam a leveza da arte e da alegria do Carnaval com um engajamento político e uma afirmação direta de que o lugar da mulher é de protagonismo. “Por ser um espaço majoritariamente feminino, mostramos que a nossa arte é muito necessária e tem que ser valorizada. A perna de pau também é um ente político, uma voz”, afirma. 

Voz que fez com que Patricia redescobrisse quem era. Engenheira ambiental e urbana, sempre foi uma apaixonada por Carnaval. Sonhava em ser artista, fez teatro, mas a vida a levou por outros caminhos. Quando estava iniciando um doutorado percebeu que sentia falta de algo que irradiasse paixão. Uma ida ao Rio de Janeiro e o encontro com um projeto de pernaltas cariocas a fez perceber um novo desejo. “Estava no Boitolo no domingo de manhã e vi várias delas chegando. Fiquei encantada e falei ‘é isso que eu quero fazer’“. Aqui, ela conta um pouco da rotina antes e durante o Carnaval, como é ver a festa invadir as ruas de uma visão privilegiada e o que falta ainda para que as mulheres possam ocupar e se sentir mais seguras no espaço público, seja nos dias de festa ou no restante do ano.

Foto: Arquivo Pessoal

Graziela Salomão: Você sempre foi apaixonada por Carnaval?
Patricia Maissa: Sim, desde pequena. Minha primeira lembrança é de um baile de carnaval que teve dentro da escola, pegava o confete do chão, jogava pra cima e me divertia muito com isso. Quando completei 16, 17 anos, comecei a frequentar carnavais em outras cidades com amigos. Meu sonho é ir para o de Salvador. 

GS: Como descobriu a vontade de ser uma pernalta? E o que isso significa pra você?
PM:
Sempre quis fazer algo que fosse artístico e meu caminho profissional foi num sentido contrário. Sou engenheira, cientista, e pesquisadora e senti, ao longo dos anos, que muito do meu eu artístico foi morrendo por conta da rotina, de prioridades. Eu estava iniciando meu doutorado e pensei “preciso muito fazer algo artístico”. Sentia que dentro de mim estava um pouco morta. Fui para o Rio de Janeiro em um Carnaval e conheci um projeto muito legal que criou várias pernas de pau para os blocos. Estava no Boitolo no domingo de manhã e vi várias delas chegando. Fiquei encantada e falei “é isso que eu quero fazer. Amo carnaval, amo coisas artísticas e vai movimentar meu corpo também”. Ser pernalta é o meu momento de expressão na vida. Tem várias camadas, vários porquês, mas hoje em dia é um lugar em que posso tanto me permitir ser eu, como também expressar muitas coisas, num lugar que é permissível ser o que quero ser. Ser pernalta é a expressão.

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Tem algum ritual antes de começar o Carnaval?
PM: Pra gente que trabalha pro Carnaval acontecer – pernas de pau, músicos -, ele começa muito antes, no ano anterior. Meu ritual é sempre me preparar o máximo que posso pra no dia poder curtir e ter o mínimo de imprevistos possíveis. Carnaval é algo orgânico, tudo pode acontecer, mas é importante se preparar pra que as coisas ocorram bem. Preparo as fantasias, faço inspeção da perna de pau, testando todos os seus elementos, os velcros, o tecido que a gente amarra na perna, os parafusos, a borracha que encosta no chão. 

GS: O que as pessoas não imaginam sobre ser uma pernalta? 
PM: Não imaginam o tamanho de carga mental durante o bloco e a vulnerabilidade que a gente passa. Além de estar em cima de dois pauzinhos e ter o risco, perante a altura, de cair, se machucar e machucar o outro, existe também uma questão da exposição. Estamos o tempo inteiro vulneráveis, mostrando nosso corpo, visível para julgamentos. Tem que estar muito bem internamente para poder subir na perna de pau. Estamos ali trazendo também a identidade do bloco, animando o público, amplificando o que passa no som que os músicos estão criando, abrindo caminhos, somo referência de alguma forma, né? No caso de uma briga ou uma situação adversa, a gente consegue avisar a banda para que pare de tocar ou tome alguma providência relacionada a isso.

GS: E como é a rotina de uma pernalta no Carnaval?
PM: Fazemos uma negociação com os blocos, articulação entre os pernaltas, criação de fantasias. Quando começa a festa, tentamos dormir e nos alimentar bem porque é um exercício físico muito exaustivo. A gente acorda bem cedo, chega antes do bloco para nos montarmos. Durante o cortejo, todo mundo bebe muita água. Na véspera de cada bloco dou uma repassada no repertório, escuto uma playlist pra lembrar a ordem das músicas e as letras.

GS: Como é ver a cidade e o Carnaval de cima, acompanhando todo o cortejo?
PM: É um mix de muita magia e preocupação. Quando a gente está lá em cima, uma das nossas funções é acompanhar tudo que está acontecendo no bloco. Nossos olhos estão o tempo inteiro atentos. Se eu ver alguém em cima de uma lixeira de um prédio ou em cima de um carro, por exemplo, vou pedir por gentileza para a pessoa descer, porque a gente tem que zelar pelos bens de todo mundo e pela cidade para que o Carnaval seja uma festa bem bacana e bonita. Aconteceu uma situação recente em que vi o RAPA chegando no bloco para pegar quem estava vendendo drink de forma ilegal. Avisei os pesados e fomos tomar alguma providência em relação a isso. Tem também um lado da magia. Falo que a gente é um para-raios, sente o que está vindo da banda e joga para fora, da mesma forma que traz o que está acontecendo no entorno para dentro do bloco. Me arrepio principalmente naqueles momentos em que tem a banda tocando e tá todo mundo cantando junto. A gente vê cada rostinho vibrando, pulando, sorrindo, não tem nada igual. A multidão nas ruas, todas juntas numa causa, transbordando alegria, e estamos ali em um minicamarote. É emocionante.

GS: Na sua opinião, como o Carnaval faz as pessoas ocuparem e se apropriarem de verdade das cidades?
PM: Além de ser carnavalesca, sou engenheira ambiental e urbana e atuo dentro da pesquisa na área de planejamento urbano. Uma das minhas maiores ideologias, quando faço Carnaval, é promover o direito à cidade. E quando a gente fala sobre isso é basicamente trazer ao mundo, à urbe, usos que normalmente não são condicionados a existirem em determinados espaços. Com o Carnaval, mostramos, de uma maneira musical, artística, festiva, alegre, política e coletiva que o espaço público pode e deve ser usado de diversas maneiras, não só aquelas que o Estado e as empresas privadas estão o tempo inteiro forçando com que a gente use. Somos condicionados, em resumo, a viver dentro de caixinhas, da nossa casa, do supermercado, do restaurante, do shopping center, de um parque controlado pela iniciativa privada, com parceria público-privada. A partir do momento que saímos dessa lógica e ocupamos esses espaços, uma praça, um parque, uma via pública, de uma maneira como não foi feita para ocupar, que foge um pouco do controle daqueles que tentam controlar o funcionamento da cidade, mostramos diversas formas de se viver. Estar com o Carnaval na rua é lembrar que a cidade é nossa e temos o direito de usá-la como a gente desejar.

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Como você vê as mulheres ocupando as cidades com os seus corpos de uma forma livre nesses dias de festa? 
PM: Esse é um assunto com muitas camadas e discussões. Na música, as mulheres estão sempre buscando o seu espaço para produzir som e serem escutada de alguma maneira. Na perna de pau também existe essa luta. Mesmo tendo um número maior de mulheres, muitos foliões e ambulantes respeitam mais o direcionamento de pernaltas homens do que de mulheres e temos que ser muito mais incisivas para as coisas acontecerem. Quando a gente fala de corpos, trazemos outra luta da mulher no Carnaval, que diz respeito ao direito de ser. Quando vamos para a rua com os corpos mais livres, estamos dizendo para o mundo que podemos ser e que isso não dá direito a nada por estarmos assim. Tem uma outra coisa também que é mostrar para outras mulheres que todo mundo ali é normal, com suas gordurinhas, celulites, ruguinhas e falar “vamos nos liberar”. Já passei por vários grupos e é no Carnaval o único momento em que pude ter essa sensação de liberdade e de permissão pra ser o que sou com o meu corpo.

GS: O que falta, na sua opinião, pra que a gente se sinta mais segura?
PM: O problema está na sociedade e o Carnaval só é uma amostra. Tudo o que acontece nesta época é um reflexo do resto do ano. O que falta para a gente ser mais segura é a sociedade mudar de forma geral. A nossa segurança está numa liberdade que ainda não existe porque vivemos em uma estrutura do machismo e de muitas outras coisas no macro.

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Continuar levando a arte de ser um pernalta para outros lugares depois do Carnaval é uma manifestação política e do protagonismo feminino também, não?
PM:
A perna de pau em si tem uma presença feminina muito grande e isso reflete muito a questão do machismo na sociedade. Nos espaços da performance, da dança, há um reflexo da estrutura patriarcal que mostra que o homem não poderia estar ali se expressando de maneira artística que não sejam aquelas convencionais. E por ser um espaço majoritariamente feminino, mostramos que a nossa arte é muito necessária e tem que ser valorizada. A perna de pau também é um ente político, uma voz. Uma colega muito querida, descendente de indígenas, sempre usa frases nas fantasias sobre essas questões, como “marco temporal não”. Ainda falta representatividade entre as pernas de pau, mais mulheres negras, por exemplo, mas mesmo assim, enquanto grupo, a gente tem construído um espaço muito bonito de protagonismo das mulheres no Carnaval.

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