Cultura

entrevista com Blenda Santos

“A poesia é resistência dentro das limitações da minha existência na rua”

Por meio do slam, poeta sergipana leva para as ruas de Aracaju e outros espaços diversos as narrativas das mulheres negras, periféricas e nordestinas de ontem e de hoje. Por Larissa Saram

A poeta sergipana Blenda Santos

A poesia falada é a arma de contágio que Blenda Santos usa para desmontar catracas, derrubar portas e espalhar pelas ruas e espaços a ela antes negados a verdadeira história da população preta e à margem.

Nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe, Blenda se aproximou da literatura por incentivo de um coletivo de mulheres. O caminho entre produzir poesia e representar seu estado no Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam BR foi curto. O evento, aliás, promoveu mudanças profundas na vida e carreira da poeta e produtora cultural.

Hoje, Blenda faz parte da Nação Hip Hop Sergipe, atua no Slam das Minas e desenvolve um trabalho importante de arte, conscientização e política na Secretaria de Juventude do município de Nossa Senhora do Socorro. Nesta conversa para o Mulheres e a Cidade, ela contou sobre sua trajetória e como usa o corpo e a palavra para reconstruir narrativas historicamente invisibilizadas.

Blenda em ação, no Slam | Foto: @maviretrata Reprodução Instagram

Larissa Saram: De onde parte a sua produção literária?
Blenda Santos:
Parte completamente da minha vivência enquanto mulher negra, periférica, nordestina.  Costumo dizer que não tinha uma relação boa com a literatura, não. Na escola, via como algo distante do meu campo de visão, do meu campo de desejo, sabe? As referências eram distantes da minha experiência corporal, enquanto uma mulher negra; do meu cenário, de onde venho e por onde circulo, que são as periferias. Então, era pouco provável que me interessasse por aquelas obras que me eram apresentadas. O meu interesse com a produção literária e com toda essa movimentação que faço hoje vem do meu encontro com mulheres negras que produziam literatura já aqui em Sergipe. E que aconteceu no mesmo tempo em que entrei num coletivo de feminismo interseccional. Foi lá que tive a virada de chave para começar a pensar nas condições enquanto a pessoa que sou dentro dessa sociedade que a gente vive. 

LS: O que mudou nessa virada de chave?
BS:
Comecei a pensar e produzir política, comecei a pensar sobre coletividade. A arte e a literatura estavam sempre presentes dentro desse coletivo, que é o Coletivo de Mulheres de Aracaju. E aí, por essa influência, por esse contato tão próximo com essas mulheres que já escreviam, acabei vendo a literatura como algo possível. Comecei a escrever por uma provocação delas, de “vamos todo mundo escrever, contar sua história”. E fui pra poesia.

“Falo sobre a ocupação
da minha poesia em espaços
que me foram negados
quando estou ocupando
esses espaços, por uma
questão de resistência,
mas também de revide”

LS: E quando essa poesia saiu do papel, do espaço privado, pra ir pra rua?
BS: Lembro que naquele momento em que estava ali no Coletivo, era um momento em que aqui em Aracaju estavam acontecendo diversas ocupações urbanas. Tinha um sarau chamado Sarau Debaixo, que acontecia debaixo do Viaduto do Dia, na zona sul. Foi um espaço extremamente importante aqui na cidade nesse processo de retomada da literatura feita pelo povo e para o povo, de trazer essas narrativas para o centro da discussão, da visibilidade. Uniu-se ao fato de eu estar ali, ao lado daquelas mulheres, junto ao momento em que estávamos vivendo, das ágoras dos espaços públicos. Aí comecei a escrever poesia já pensando nesse processo junto com a oralidade. De externalizar essas poesias, não simplesmente escrever e guardar numa gaveta, para dar barata (risos).

LS: Do que falam as suas poesias?
BS:
Das minhas vivências. E falo sobre a ocupação da minha poesia em espaços que me foram negados quando estou ocupando esses espaços, por uma questão de resistência, mas também de revide. Falo sobre o meu contato com a ancestralidade, religiões de matrizes africanas, sobre esse processo de retomada, que é urgente, que nós pessoas negras estamos fazendo. Tenho buscado de forma constante conhecer cada vez mais a África, de entender a história do meu povo para além do que me foi contado. Tenho ido atrás dessas narrativas e elas têm me trazido muita potência dentro da minha criação literária, dentro da minha construção literária. Tenho feito da minha literatura porta-voz de histórias que não foram contadas e que precisam ser contadas. Histórias que foram fantasiadas e que precisam ser encontradas da forma verdadeira.

Foto: @ojordanvilas | Reprodução Instagram

LS: Você foi a primeira representante de Sergipe no Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Quando começou essa trajetória nos slams?
BS:
No final de 2017 participei do primeiro slam daqui de Sergipe, como poeta competidora, que era o Slam do Tabuleiro. Venci e fui para o estadual. Venci de novo e fui como representante de Sergipe para o Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam BR. Eu, que já tinha esse trabalho com a literatura acontecendo aqui em Aracaju, comecei a criar pontos, a ocupar outros lugares do Brasil, tanto como escrita quanto com a minha oralidade. E partiu dessa minha ida pro Slam BR.

“O poder que Slam BR
traz para quem participa
é o poder do encontro,
é a possibilidade de se
encontrar com a pluralidade,
com a diversidade de vivências,
de experiências corporais,
de narrativas. Para mim foi
um divisor, mesmo. Foi a
primeira vez que fui tratada
como profissional, fazendo
o que faço com a literatura”


LS: Qual foi a sensação de representar Sergipe num evento tão importante como o Slam BR?
BS:
Quando voltei, lembro que as pessoas me perguntavam isso, “e aí, como foi lá no Slam BR?”ou “como foi sair pela primeira vez aqui de Sergipe?”, “Como foi estar num evento tão grande?”. E eu repetia que estava me sentindo mais poeta. Porque, de fato, o poder que Slam BR traz para quem participa é o poder do encontro, é a possibilidade de se encontrar com a pluralidade, com a diversidade de vivências, de experiências corporais, de narrativas. Para mim foi um divisor, mesmo. Foi a primeira vez que fui tratada como profissional, fazendo o que faço com a literatura. E aí me trouxe esse sentimento latente de que, sim, essa possibilidade existe, ela é real, posso me ver e ser tratada enquanto profissional produzindo literatura, sendo quem sou e vindo de onde venho. O Slam BR foi grande responsável por essas e tantas outras reflexões e mudanças nas minhas perspectivas, na minha forma de produzir e de me colocar no mundo.

LS: Como você atua hoje?
BS: Tenho orgulho de dizer que faço parte hoje, que é Auxiliar de Juventude, dentro da Secretaria de Juventude do município de Nossa Senhora do Socorro, aqui em Sergipe. Esse lugar para mim é uma vitória imensa, resultado de todo esse trabalho que já faço desde 2016 com arte, poesia, oralidade, performance corporal, militância política. Também faço parte da Nação Hip Hop Sergipe, que é uma organização política atuante desde 2005 nos âmbitos artísticos, culturais e educacionais aqui do nosso estado. Atuamos dentro do ambiente público e do ambiente institucional, entendendo a importância da cultura hip hop para além dessa ideia de cena.

LS: Como assim?
BS:
A gente entende de fato que ela é uma ferramenta de forte reconstrução da nossa sociedade. Então a gente se interessa por dialogar com toda a sociedade e por isso a gente circula por ambiente escolar, por entre CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), presídios, unidades socioeducativas espaços públicos, como centros culturais, praças, estacionamentos, debaixo de viadutos, enfim, por entre espaços diversos, entendendo a importância da presença do diálogo com a diversidade.

LS: E como é a sua atuação com os slams?
BS: Pós-Slam BR, comecei a criar e organizar comunidades slams aqui no meu estado. Hoje organizo o Slam das Minas Sergipe, que é uma batalha de poesia falada com protagonismo de mulheres e de pessoas LGBTQIAP+, entendendo a importância de trazer essas narrativas que historicamente são invisibilizadas e colocadas às margens. A gente traz essas narrativas para o centro da visibilidade e da discussão, fomenta o surgimento de novas leitoras, de pensamento crítico antes de tudo, né, e traz principalmente a juventude negra e periférica pra esses espaços que têm características tão democráticas, sem catracas ou uma porta que impeça o acesso. E é exatamente por ser protagonizado majoritariamente por mulheres, pela população negra e pela população periférica que essas pessoas se sentem tão partes e pertencentes. E aí é dentro desse meu trabalho com Slam das Minas, a gente tem feito uma movimentação interessante e até um pouco diferente de como acontecem em outras comunidades slams aqui no estado. O Slam das Minas tem uma característica muito própria, que vem já desse meu trabalho na Nação Hip Hop, que é de circular por espaços públicos, mas institucionais também.

“A força do encontro entre
a poesia e a rua está na
possibilidade de fazer com
que a minha existência na
rua não seja limitada apenas
a violência e ao trabalho”

LS: Quais espaços?
BS:
A primeira edição a gente fez no ambiente escolar, no Centro de Excelência Rosa Elze, que fica no município chamado São Cristóvão, aqui ao lado de Aracaju.  A segunda edição a gente fez no antigo Quilombo da Maloca, no centro de Aracaju, com os moradores da comunidade. E a terceira e última, que a gente fez agora, fizemos no PREFEM, que é feminino localizado aqui no município ao lado, também chamado de Nossa Senhora do Socorro. Fizemos com as internas do sistema prisional.

Foto: @Bagaceira_P | Reprodução Instagram

LS: Como você define o encontro entre a poesia e a rua?
BS: Para mim, sem sombra de dúvidas, a força do encontro entre a poesia e a rua está na possibilidade de fazer com que a minha existência na rua não seja limitada apenas a violência e ao trabalho porque, normalmente, mulheres como eu, vindas de lugares de onde venho, só estão ocupando o espaço da rua para atravessarem a cidade para o trabalho para servir ou  estão sendo violentadas, impedidas de acessar determinadas espaços. Ou estão sendo impedidas de existirem de forma plural e diversa. Então, a poesia para mim é resistência e revide dentro das limitações da minha existência na rua. Enquanto a sociedade quer me limitar, me estereotipar ditar até onde posso ir, até onde posso ser, trago a poesia das minhas narrativas, das minhas vivências, das coisas que julgo que são importantes de serem ditas e de serem vivenciadas por mim, pelas minhas, pelos meus pares, como algo mais importante do que qualquer outra imposição, forma de existir dentro desse ambiente.

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