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entrevista com Christine Leconte

“O espaço público não é o espaço do carro”

A arquiteta e urbanista francesa explica como o conceito da “cidade de 15 minutos” funcionou em Paris e é um modelo a ser discutido diante dos efeitos da crise climática nas cidades. Por Graziela Salomão

Já imaginou você morar a uma distância de, no máximo, 15 minutos de tudo o que precisa fazer na sua vida diária? Trabalhar ou ter um tempo de lazer, ir ao mercado ou a uma consulta médica: a maior parte de suas necessidades está a uma distância curta de casa. Quanto tempo você ganharia para fazer o que realmente deseja? Em grandes metrópoles brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, que sofrem diariamente com horas perdidas no trânsito, parece uma realidade distópica. Mas não é.

A “cidade de 15 minutos” é um conceito urbanístico desenvolvido pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno que tem como modelo transformar a cidade em lugares onde os moradores possam ter acesso a tudo de que precisam em um raio de 15 minutos a pé ou de de bicicleta. E diferente das diversas teorias da conspiração sobre o tema, isso não impede que você faça coisas fora dessa distância nem cerceia sua liberdade de ir e vir, como muitos pensam. A ideia é ser um facilitador da vida diária e da conexão entre espaço urbano e cidadãos. E, também, uma forma de se incentivar uma organização mais sustentável, reduzindo o uso de carros e proporcionando uma convivência mais ecológica e interativa. Em meio às discussões na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP29), que acontece até dia 22 de novembro em Baku, capital do Azerbaijão, na qual líderes globais trazem experiências climáticas catastróficas causadas pelas alterações do clima em seus países, entender como as cidades precisam se adaptar à mudança do clima é fundamental e urgente. 

Paris, Nova York, Buenos Aires e Seul, membros da rede C40 de megacidades comprometidas com o clima, já adotaram o conceito. Em Paris, por exemplo, a prefeita Anne Hidalgo apoiou a iniciativa desde sua reeleição, em 2020. Espaços antes dominados por carros, como as margens do Sena, foram transformados em parques e ciclovias, melhorando a qualidade do ar e reduzindo a poluição. Também foram criados micro-hubs em bairros, que atuam como centros de trabalho, lazer e aprendizado. “No nosso caso, a proximidade é possível de ser colocada em prática para que cada cidadão esteja perto do que faz parte dos elementos necessários para a vida diária. Representa, de forma bastante factual, uma forma de combinar um equilíbrio entre natureza/densidade e serviço”, diz Christine Leconte, que foi presidente do Conselho Nacional de Arquitetos da França até junho deste ano, em entrevista ao “Mulheres e a Cidade” desta semana. Entenda um pouco mais sobre essa ideia e como ela poderia ser um modelo adotado, em partes, por muitas cidades brasileiras.


Graziela Salomão: O que é a cidade de 15 minutos? E como Paris se adaptou a esse modelo?
Christine Leconte:
A cidade de 15 mimutos é um conceito que forma a própria essência da cidade em um momento de economia de terras e recursos. Ele define a noção de proximidade dos habitantes a todos os elementos que constituem as necessidades diárias: serviços, lazer, trabalho, etc. A locomoção é facilitada, o que torna possível limitar o uso do carro em particular e de transportes com alta intensidade de carbono. Paris não é uma cidade muito grande. No nosso caso, a proximidade é, portanto, possível de ser colocada em prática para que cada cidadão esteja perto do que faz parte dos elementos necessários para a vida diária. Representa, de forma bastante factual, uma forma de combinar um equilíbrio entre natureza/densidade e serviço.

GS: Na sua opinião, quais são os pontos positivos e negativos?
CL:
A proximidade é um objetivo de todas as cidades para reduzir todos os aspectos negativos ligados à mobilidade baseada em carbono: poluição, espaço perdido para carros, segurança, custo, gasto de recursos, etc. No entanto, para conseguir isso não há uma receita milagrosa, mas sim uma abordagem por território. Nunca partimos de um território virgem, mas sim de cidades já consolidadas, que serão a base para melhorar as condições de vida dos habitantes.

“Pensar sobre nossos espaços urbanos pode ser semelhante a “espacializar nossa democracia”, ou seja, colocar o encontro, o pedestre, a troca no centro do que são nossas cidades.”


GS: Você já disse anteriormente que esse conceito permitiu que os prefeitos questionassem seu papel político no futuro das cidades. Por que acredita nisso?
CL:
Além do conceito de Carlos Moreno, é essencial que os governantes locais tenham uma visão estratégica do futuro de suas cidades, principalmente em questões urbanas: devemos ser capazes de reduzir nossas emissões de gases de efeito estufa e adaptar a vida de nossos cidadãos. Para isso, não são mais válidos modelos pré-estabelecidos, nem propostas prontas de empresas privadas. Só o interesse geral tem importância. As autoridades públicas, auxiliadas por arquitetos e urbanistas, devem construir o projeto com os moradores em torno das qualidades de cada território e retomar a posse deste futuro com o interesse coletivo em mente.

GS: Paris simboliza a cidade onde as pessoas andam e ocupam as ruas da cidade. O quanto isso é importante para formar a consciência das pessoas sobre o espaço urbano?
CL:
Acho que há uma verdadeira cultura europeia do que queremos dizer com “espaço público”. Costumo dizer que pensar sobre nossas cidades pode ser semelhante a “espacializar nossa democracia”, ou seja, colocar o encontro, o pedestre, a troca no centro do que são nossas cidades. Perdemos essa relação com o espaço tão necessária para garantir interações positivas entre os moradores. O espaço público não é o espaço do carro. O carro não deve condicionar o design dos locais em que habitamos.


GS: Você também é uma flâneuse? Andar pela cidade faz parte da sua rotina?
CL:
Claro! É uma maneira de redescobrir a relação com o tempo, de trazer uma forma de contemplação. Caminhar permite que você conheça outras pessoas. É essencial e por isso amo viver na cidade.

“Precisamos usar a cidade como um veículo para nos conectarmos. As mulheres têm um papel importante a desempenhar nisso”

GS: Como você acha que mulheres em outras cidades, como São Paulo, podem se inspirar no exemplo das mulheres francesas?
CL:
O que posso dizer é que precisamos usar a cidade como um veículo para nos conectarmos. As mulheres têm um papel importante a desempenhar nisso e, diante da transição ecológica, é necessário muita coragem para mudar a forma como construímos cidades: parar de demolir, não usar tanto concreto, mas misturar materiais de construção, construir em circuito curto [uso de materiais locais e métodos sustentáveis, reduzindo a pegada de carbono associada ao transporte]. Muitos jovens arquitetos franceses estão se envolvendo nisso e uma rede global poderia existir para mudar nossas práticas.

GS: Como a arquitetura da cidade poderia ser mais acolhedora para as mulheres?
CL:
As cidades são, muitas vezes, construídas e projetadas para e por homens. Poucas mulheres administram estruturas ligadas à construção do espaço urbano. Quanto mais diversidade tivermos na liderança, mais nossas cidades refletirão a população. É necessário que as mulheres ocupem profissões ligadas ao ato de construir e que sejamos agentes de mudança. As cidades em que vivemos não podem ser pensadas apenas por homens.

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