
Quando tia Paizinha, uma mulher negra de mãos firmes e coração grande, ajudou a colocar no mundo Maria Luiza Lima, traçou um destino: a Rocinha, ponto de partida daquela vida que acabava de chegar, seria também o lugar de retorno. A menina cresceu rodeada de tintas, lápis de cor e pelos cuidados das mulheres moradoras da maior favela do Brasil. Mais velha, começou na pixação, virou artista visual, arte educadora. Se tornou Malu Vibe e nunca mais deixou a rua.
Espalhou cores e desenhos por todo o Rio de Janeiro, de passarelas da Avenida Brasil a murais de empresas e ativações para marcas no meio da praia. Mas foi na Rocinha que o trabalho da Malu ganhou visibilidade e respeito da comunidade. Os grafites transformam não só os muros dos becos em galeria de arte a céu aberto, mas principalmente o dia e a vida de quem passa por eles e é impactado com imagens que inspiram pertencimento. São mulheres negras, mães, crianças, rostos que falam da força e da beleza de existir na favela, apesar de tudo.
Hoje, Malu lidera mutirões, pinta com outras mulheres e transforma a paisagem urbana com arte. Nesta entrevista para o Mulheres e a Cidade, ela fala sobre o que significa ocupar o território com arte . E como o espaço público pode e deve ser lugar de afirmação para as mulheres.

Larissa Saram: Você sempre esteve envolvida com arte?
Malu Vibe: Desde a infância, me voltava naturalmente para o desenho. Em casa, os recursos eram poucos, mas na escola eu tinha mais acesso a materiais. Isso me fazia me destacar nas atividades artísticas, a ponto de ser chamada para ajudar colegas e participar de atividades criativas com frequência.
LS: Como começou a sua história com a arte urbana?
MV: Começou aos 18 anos, com a pixação. Eu andava de skate por hobby e gostava de pintar o shape com as tintas que tinha. Um dia, me chamaram, um amigo skatista me chamou, para usar o resto da tinta que costumava sobrar para pixar meu nome e frases pela cidade. Foi aí que comecei a me expor na rua.
“Enfrentei desafios, principalmente por conta do racismo estrutural. Foram momentos de revolta, mas com o tempo ganhei maturidade e novas ferramentas para lidar com essas situações.
E a arte foi uma delas”
LS: Como foi ocupar a rua como uma artista pela primeira vez?
MB: Eu já estava acostumada com a rua, principalmente por causa do skate. Muitos rolês, andava sozinha pela orla da Zona Sul, e o contato com a arte urbana veio junto com a capoeira Angola , que também me empoderou muito. Enfrentei desafios, principalmente por conta do racismo estrutural. Foram momentos de revolta, mas com o tempo ganhei maturidade e novas ferramentas para lidar com essas situações. E a arte foi uma delas.

LS: Lembra de alguma dessas situações marcantes?
MV: Sim. Meus primeiros murais na Rocinha foram feitos em tempos de guerra entre facções rivais quando a comunidade estava em clima de tensão. Mesmo assim, tomei a liberdade de pintar os muros dos becos perto de casa, sem autorização. Fui acolhida com olhares respeitosos e curiosos dos vizinhos e isso me marcou profundamente.
LS: Você já participou de ações em outras partes da cidade, mas decidiu voltar seu foco para a Rocinha. Por quê?
MV: Percebi o impacto positivo que a arte gerava na vida de pessoas em situação de vulnerabilidade. Nos mutirões que participei pelo Rio de Janeiro, conheci artistas que me inspiraram a olhar com mais carinho para minha própria comunidade, especialmente em momentos delicados como os de conflitos internos.
“Quanto mais atuava na rua e via os olhares das crianças,
os sorrisos dos vizinhos, mais entendia que meu papel era
também cuidar do lugar de onde vim. Comecei a organizar mutirões e criações coletivas, e isso foi me conectando
ainda mais com o território”
LS: E como se desenrolou esse processo, de focar na Rocinha?
MV: Ele se firmou com o tempo. Quanto mais atuava na rua e via os olhares das crianças, os sorrisos dos vizinhos, mais entendia que meu papel era também cuidar do lugar de onde vim. Comecei a organizar mutirões e criações coletivas, e isso foi me conectando ainda mais com o território.

LS: Como acha que o seu trabalho ajuda a preservar a memória e fortalecer a identidade local?
MV: Sou reflexo do que vivo. Já vivi momentos bons e ruins, dentro e fora da Rocinha. Minhas obras contam essas histórias e valorizam a minha ancestralidade e a cultura das favelas cariocas. Busco evidenciar as virtudes que fortalecem a nossa trajetória e construção coletiva com o objetivo de inspirar os moradores e pessoas que circulam nas comunidades.
LS: E qual é a diferença entre pintar na Rocinha e em outras partes da cidade?
MV: Na Rocinha, eu me sinto mais livre. A comunidade me conhece, sabe da minha trajetória, já me viu em diferentes momentos entregando arte com respeito e verdade. Isso gera confiança, abertura, troca, é como pintar no quintal de casa, onde cada rosto me impulsiona a continuar. Já em outros bairros, a sensação é a de desbravar novos territórios. Mesmo com a confiança e realização que levo comigo, cada lugar tem sua energia própria, seus códigos, seus costumes. A cultura local influencia diretamente no olhar das pessoas, na forma como recepcionam a arte e até no tempo que ela permanece ali, viva. Mas gosto desse contraste. Ele me desafia, me tira da zona de conforto e amplia meus caminhos. Pintar fora da favela me faz dialogar com novas realidades, construir novas pontes e sempre levo comigo a identidade que carrego daqui.
“A rua tem suas tensões, mas também é palco de encontros,
trocas e força coletiva. Como mulher, sei dos riscos.
Mas também sei do poder de ocupar esses espaços
com propósito, com arte, com voz”
LS: A rua é um lugar de risco para mulheres. Mas também pode ser espaço de criação e pertencimento. Qual é a sua visão sobre isso?
MV: A rua tem suas tensões, mas também é palco de encontros, trocas e força coletiva. Como mulher, sei dos riscos. Mas também sei do poder de ocupar esses espaços com propósito, com arte, com voz.

LS: A arte transforma o espaço público. Mas e o contrário? Como os espaços moldam sua arte e quem você é?
MV: Cada lugar carrega uma energia. Às vezes é uma dor coletiva, às vezes é uma alegria escondida. Esses espaços me atravessam, moldam minha criação e também quem eu sou. Me fazem querer ser ainda mais instrumento de transformação.
LS: Como o grafite pode ser ferramenta de resistência e cuidado para mulheres da periferia?
MV: Estar na rua contando nossa história já é um ato político. É um resgate da nossa ancestralidade, da nossa força. A arte permite que a gente reescreva narrativas e se cuide através da expressão, nos dá uma certa liberdade de projetar nossos sonhos coletivos e individuais. Além de nos tornarmos referência e força para outras mulheres.
LS: Se a cidade pudesse escutar uma frase sua, escrita em um muro, o que seria?
MV: Acredite no poder de escrever sua história independente da expressão artística. Sua maior riqueza está em valorizar sua ancestralidade é dela que vem a força para seguir a jornada.