Quando você liga a televisão, se sente representada no que vê? Se ficou buscando referências na sua memória, é porque há um problema de representatividade, seja pelo gênero, raça ou classe econômica. Ou tudo isso junto e misturado. O Brasil é um país multiétnico, mas até que ponto essa diversidade é respeitada e se traduz em inclusão – e não segregação? Seja nas cidades, ou na cultura, essa estrutura se reproduz de forma desigual, principalmente para as minorias racializadas.
A atriz Jacqueline Sato entendeu, desde cedo, que suas característica fenotípicas – ela é descendente de japoneses – seriam determinantes para a forma como era vista. “Fui uma criança extrovertida até os seis anos, época que ainda não tinha ido para a escola. Depois disso comecei a sentir uma sensação de não pertencimento porque era a única asiática e recebia olhares, comentários e outras agressões”, conta, em entrevista ao “Mulheres e a Cidade” desta semana. A arte foi uma forma de expressar esses sentimentos. No entanto, ali também ela percebeu que não estava representada. “Tive esse clique que, se ninguém atrás das câmeras contaria a nossa história, a gente mesmo precisa contar. Há ao menos dois milhões de asiáticos por aqui, mas ainda não somos retratados do jeito que merecemos”, afirma.
Ela está certa. São Paulo, por exemplo, abriga a maior população de origem japonesa fora do país. Segundo a Embaixada do Japão no Brasil, cerca de 2 milhões de japoneses e nikkeis, nipo-descendentes não nascidos no Japão, viviam na capital paulista em 2022. Pensando em tudo isso, Jacqueline decidiu que precisava mudar o verbo de esperar para agir. E colocou em prática um sonho de muito tempo: criar um programa que contasse histórias de mulheres descendentes da imigração asiática no país. E decidiu ser ainda mais audaciosa, jå que queria toda a equipe por trás das câmeras formada por mulheres, em especial brasileiras asiáticas. Lançado na quinta-feira passada (1), “Mulheres Asiáticas”, transmitido pelo canal E! Entertainment e também disponível no Universal+, nasceu desse desejo de ocupar espaços, mostrar a diversidade, quebrar esterótipos, e ser pioneiro ao trazer, a cada episódio, duas mulheres de ascendência asiática de destaque em suas áreas. A primeira temporada é focada nas nipo-brasileiras e tem seis episódios. “Quero ampliar para outras ascendências – coreana, chinesa -, porque a Ásia é composta de 50 e tantos países e recheada de toda essa diversidade que as pessoas não entendem ainda“, diz Jacqueline, que criou, produziu, roteirizou e também apresenta o programa.
Embaixadora do Greenpeace Brasil e defensora das causas ambientais e animais, Jacqueline quer ser uma voz para conectar todos essas bandeiras a uma transformação social. Ao contar histórias, tanto no audiovisual, como no dia a dia, ela acredita que essas inspirações são um primeiro passo para isso. “Espaços de diálogo trazendo essa intersecção de quem faz a cidade, dos habitantes dela e do espaço físico ajuda a gente a repensar. E quando a gente reflete, passa a agir diferente no mundo”.
Graziela Salomão: Como surgiu a ideia do programa?
Jacqueline Sato: Surgiu pela falta. Sou atriz há 14 anos e não vi muita mudança acontecer em relação a nossa representatividade. Sou uma das poucas atrizes que conseguiram traçar uma carreira dentro do audiovisual, um privilégio e muito esforço para isso. Ainda tem uma visão estereotipada das obras em relação a nós. É preciso trazer mulheres de verdade na frente da TV para serem referência e fazerem outras se sentirem verdadeiramente representadas. A minha vontade foi trazer diversidade dentro da diversidade. Ainda escutamos aquela piada horrorosa de “japonês é tudo igual” e precisamos mostrar que somos bem diferentes umas das outras.
GS: O programa tem o objetivo de mostrar a identidade do povo amarelo no Brasil, em especial das mulheres. Que mensagem você quer que ganhe as ruas?
JS: De ocupar esse espaço, mostrar o rosto dessas pessoas e rechear a televisão com mais diversidade, inspirando outras mulheres a seguirem os seus sonhos ou abrir a possibilidade de sonharem. Falamos muito sobre a história nipo-brasileira nesta primeira temporada, mas quero ampliar para outras ascendências – coreana, chinesa -, porque a Ásia é composta de 50 e tantos países e recheada de toda essa diversidade que as pessoas não entendem ainda. A gente sabe muito bem as diferenças entre os países da Europa, mas na Ásia misturamos tudo porque não tivemos tantas histórias contadas a respeito dessa região chegando até a gente.
GS: E o que esse programa já transformou em você?
JS: Sempre tive vontade de criar e demorei para ter essa coragem. Ficava nesse lugar passivo, esperando os testes como atriz, mas eles são muito espaçados, até por causa do meu recorte. Não dá para viver assim, tem que trabalhar, né? Não só financeiramente falando, mas para se sentir produtiva, viva. Tive esse clique que, se ninguém atrás das câmeras contaria a nossa história, a gente mesmo precisa contar. Há ao menos dois milhões de asiáticos no Brasil, mas ainda não somos retratados do jeito que merecemos. Quando você é a criadora ou a produtora, tem mais voz dentro das escolhas. Escolhi que todas atrás das câmeras seriam mulheres e, em sua maioria, brasileiras asiáticas. Isso dá autenticidade nas narrativas. Fico feliz que esse seja o primeiro programa a trazer essa representatividade na frente e atrás das câmeras. Ainda existem algumas pessoas que não se sentem brasileiras, se sentem em um “não lugar”, que é uma sensação de não pertencimento por não ser brasileira nem japonesa o suficiente. Habito esses dois universos, esse entre-lugares. Muitas vezes a síndrome da impostora bateu, mas o programa é uma quebra de paradigmas na minha vida. Mesmo com desafios durante o processo, passei a acreditar mais em mim mesma e perceber que somos mais forte do que acreditamos.
GS: Qual das histórias mais te tocou?
JS: Muito difícil falar de apenas uma. Cada uma é única. Todas elas me inspiraram e me mostraram que não importa seu campo de atuação, muitas vezes vamos nos sentir solitárias, mas a gente persiste e logo começa a encontrar os aliados para essa caminhada. Estar rodeada de mulheres que também superaram tanta coisa me fortalecia. Um dos momentos em que me emocionei foi no episódio da Ana Hikari em que falamos da importância da representatividade e como nos tocou quando a Michelle Yeoh ganhou o Oscar. É um lugar que para muita gente parecia impossível e ver uma de nós conseguir nos permite sonhar mais alto. Foi um choro bonito, de esperança. Outro momento foi no episódio com a Fernanda Takai. Ela disse que ser convidada para o programa a despertou em pensar na importância dessa representatividade e de ela agir mais. E, de fato, ela gravou comigo e, pouco tempo depois, foi uma produtoras associadas do curta “Amarela” pela importância da reflexão do projeto.
“Entendi que não era tímida, mas fui intimidada. O externo teve toda essa força em mim e só consegui transformar isso através da arte e do teatro. Percebi que outras asiáticas brasileiras tinham tido uma trajetória similar e entendi que era uma questão coletiva da situação amarela”
GS: A questão da representatividade e do não-pertencimento também aparece em”Amarela”. A personagem não se sente pertencendo nem dentro nem fora de casa. Como foi colocar isso nas telas e ter apresentado esse curta em Cannes?
JS: Foi um poder de cura muito grande. Fui uma criança extrovertida até os seis anos, época que ainda não tinha ido para a escola. Depois disso comecei a sentir uma sensação de não pertencimento porque era a única asiática e recebia olhares, comentários e outras agressões. Lembrando disso entendi que não era tímida, mas fui intimidada. O externo teve toda essa força em mim e só consegui transformar isso através da arte e do teatro. Percebi que outras asiáticas brasileiras tinham tido uma trajetória similar e entendi que era uma questão coletiva da situação amarela. A gente tem que se unir para gerar essa transformação necessária contra uma hegemonia ainda vigente. Depois da sessão em Cannes, o diretor chorou profundamente e falou que não era um choro só dele, mas de muitos. Acredito que somos a geração capaz de dialogar sobre isso, de falar dessa dor, de trazer diálogo e ajudar os outros. A nossa vontade é de contar as histórias que nós e nossos antepassados passaram para que não volte a acontecer.
GS: A interseccionalidade de raça e gênero se cruza no espaço urbano. Que tipos de incômodos você sente ou já sentiu por ser uma mulher de descendência asiática andando na cidade?
JS: A hipersexualização é algo gigantesco para brasileiras asiáticas. Chega a ser bizarro. Como podem pensar que a gente é tão diferente só por causa da característica que te humaniza? Lembro de quando tinha 12 anos, estava andando na rua e um grupo de homens começou a comentar sobre o meu órgão sexual, achando que ele era atravessado de outra forma porque sou asiática. Aquilo foi horrível para mim, mas achei que tinha sido só comigo. Nunca falei pra ninguém por vergonha. Um dia, já adulta, conversando com amigas de diferentes idades, elas disseram que passaram pelo mesmo. Isso ultrapassou gerações! Também existe uma imaginação de que somos submissas, frágeis e obedientes. É uma mentira que nos limita. Quando você não tem esse comportamento, gera um choque nas pessoas. Já conversei com amigas negras que relatam o contrário. O que se espera delas é que sejam sempre muito fortes. Os dois extremos são ruins, é nossa humanização reduzida a esses estereótipos. Por consequência desse racismo estrutural, as pessoas não nos veem com todas as nossas características, mas sim nos reduzem para cabermos em caixinhas.
GS: São Paulo é a cidade, fora do Japão, que tem a maior comunidade japonesa do mundo. E essa diversidade étnica é o que forma nosso país. Como você sente isso?
JS: Apesar de ser uma das cidades brasileiras mais múltiplas, ainda falta muito para se ter esse acolhimento de aceitar, respeitar e valorizar as diferenças. Acho que falta essa vontade de aprender com os outros, mesmo sendo o lugar que mais convive com as diferenças. Acredito que espaços de diálogo trazendo essa intersecção de quem faz a cidade, dos habitantes dela e do espaço físico ajuda a gente a repensar. E quando refletimos, pode transformar. Você passa a agir diferente no mundo, isso vai para sua pequena bolha e dela se expande.
GS: Como a cidade te impacta – positiva e negativamente?
JS: São Paulo é aquela relação de amor e ódio, né? Amo por essa diversidade que existe e coabita. Cada bairro é quase um universo paralelo. Sou uma pessoa que adora circular por diferentes situações e bolhas, gosto dessa adaptabilidade. Ela tem uma vida cultural abundante, feiras ao ar livre que te permitem conhecer gente diferente. Caminhar pela cidade é poder descobrir restaurantes e lojinhas em que você conversa com o dono, entende a vontade e o afeto envolvido naquele negócio. Em São Paulo você poder viver diferentes realidades, dependendo do lugar onde vai. Acho que isso é muito único daqui e o que me faz amá-la. Tem o Ibirapuera que te teletransporta. Você está no meio da cidade, mas consegue relaxar e olhar a natureza. Mas, se for pensar no futuro, precisamos ter mais espaços assim de convívio e de verde. Sei que São Paulo já é uma cidade hiperdesenvolvida e que é difícil criar mais espaços como esse, mas precisa ser feito. Desejo para o futuro mais áreas de convívio social e de espaços verdes e abertos. Claro que é uma obrigação do governo, mas também papel da comunidade. Se um empreendedor puder abrir um espaço verde no seu negócio, que faça isso, para vivermos em uma cidade que não seja apenas um lugar de passagem, mas de coexistência e resistência. Isso torna mais vivo.
GS: Você também é embaixadora do Greenpeace Brasil e defensora das causas ambientais e animais. Como é possível, através dessas bandeiras, promover mudanças na sociedade?
JS: Quando me convidaram para ser embaixadora, fiquei feliz deles verem que eu poderia contribuir com ideias e ser uma porta-voz. Sempre quis usar essa força da comunicação para poder falar dessas causas que considero urgentes e importantes para o futuro. É uma corrida contra o tempo. Como contadora de histórias, busco mostrar pras pessoas que fazemos parte de um todo e tento mostrar caminhos de solução. A crise ambiental impacta majoritariamente os povos racializados e as mulheres. Quando a gente fala que as mulheres estão lutando para o futuro, é porque somos as mais afetadas por essa tragédia que vem da lógica patriarcal há tanto instaurada. Estamos em um momento que, se nada for feito, as consequências serão muito graves.