Envira é um município bem pequenininho do Amazonas, fica quase na divisa com o Acre, escondido entre a vastidão da floresta e o rio que dá nome para a cidade. Tem aproximadamente 17 mil habitantes, e a maior parte leva uma vida sustentada pela pesca e cultivo da terra a partir de técnicas passadas de geração em geração. Foi desse lugar que Thati Monferrato partiu em 2019 com o desejo construir um futuro diferente. “Tudo era limitado e desde que comecei a ter esse entendimento sobre o que queria ser, senti vontade de sair de lá. Mirava Rio Branco ou Manaus, que eram mais dentro da minha realidade e ficavam perto pra voltar, caso eu não me adaptasse longe da família”, contou Thati durante essa nossa conversa para o Mulheres e a Cidade. Tudo mudou quando recebeu o convite de uma amiga que já morava em Brasília e estava atrás de alguém pra dividir o aluguel.
A amazonense chegou à capital federal depois de três dias e três noites atravessando rodovias dentro de um ônibus. O cansaço da viagem não foi suficiente para amortecer o encantamento pela cidade, que foi se abrilhantando a medida que monumentos e arquitetura se tornavam paisagens frequentes. A nova paixão foi costurada em tecidos para dar origem a uma coleção de roupas que celebra ícones de Brasília.
Nesta entrevista, Thati fala sobre o processo de criação da “Brasília 64”, arrebatamentos causados por Ipês amarelos e como se tornou parte viva de uma cidade que a acolheu e onde constrói, peça por peça, seu legado artístico.
Larissa Saram: Como foi a sua chegada em Brasília?
Thati Monferrato: Queria cortar custos e decidi vir pra cá de ônibus. Foram três dias e três noites viajando. Cheguei bem bem cansada, mas lembro que quando o ônibus finalmente entrou em Brasília e eu fui começando a ver os prédios, essa estética de cidade grande que é muito distante do interior, um monte de carros, aquilo que eu só via na TV, foi encantador! Ali caiu a ficha de que eu poderia ter uma nova expectativa.
Você já foi logo trabalhando com costura?
TM: Três meses depois. Comecei a trabalhar no ateliê da Vilma Rocha. Ela foi uma pessoa que abriu portas, que me ensinou. Trabalhando com ela é que realmente me apaixonei pela costura porque antes, para mim, era só um meio de ganhar a vida para chegar em outro nível. Queria estudar biomedicina e a costura era a forma de eu sobreviver pra conseguir fazer a faculdade. Quando fui trabalhar no Ateliê, comecei realmente a gostar de ver a peça acontecendo. Sempre adorei arte, então, acompanhar todo esse processo, que é artístico, de montar uma roupa do zero, provar, envolver as emoções da cliente…Fui me encantando por esse universo.
LS: Então a costura já fazia parte da sua vida de alguma forma, certo?
TM: Sim, eu comecei a costurar porque sou de uma família bem carente financeiramente. Somos em seis irmãos e meus pais não tinham condição de ficar comprando roupa pra gente. Quando foi chegando na adolescência, fui ficando sem ter o que usar, sabe? E eu tinha curiosidade de costurar, de ver como minha irmã mais velha e minha mãe faziam. Minhas avós também costuram. No começo, era escondido porque a minha mãe tinha ciúme da máquina dela (risos). Depois, minha irmã Adriana me levou na fábrica onde ela trabalhava para me ensinar direitinho. Eu tinha de 14 para 15 anos.
“O florescer dos Ipês
descreve muito bem Brasília.
É uma cidade que fica
colorida e alegre, não
são só só árvores, não
são só flores, eles causam
uma sensação na gente”
LS: De onde nasceu a ideia e o desejo de levar ícones de Brasília para uma coleção de roupas?
TM: Em uma conversa com uma amiga. Ela sabia da minha vontade de trabalhar meu nome no mercado, me incentivava, só que a gente não tinha uma ideia para chamar a atenção. Aí aproveitei que estava próximo o aniversário de Brasília e comecei a pensar, pedir em orações o que fazer. E foi em uma noite que tive a ideia de montar os looks. Primeiro me veio a Catedral [Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida] porque, para mim, é o monumento que mais chama a atenção. Quando a gente vê a Catedral, a gente já associa a Brasília. Depois, os outros monumentos, que também são importantes e turísticos. No look que é o macacão com esses monumentos, tem uma capa amarela para simbolizar o florescer dos Ipês que, quando acontece, cobre toda a cidade. Aliás, esse evento do florescer dos Ipês descreve muito bem Brasília. É uma cidade que fica colorida e alegre, não são só só árvores, não são só flores, eles causam uma sensação na gente.
LS: Como escolheu as obras que inspiraram as peças?
TM: Eu escolhi as que me chamavam mais atenção, que me causavam aquela sensação de “Nossa, como assim? Como foi construída?”. A Estátua dos Candangos, a Catedral Metropolitana, o Congresso Nacional e a Torre de TV digital. Além das obras arquitetônicas também quis trazer os Ipês, que acho que representam muito Brasília. O lago também não poderia ficar de fora. No vestido Ipê, as flores caem e revelam o mapa do plano piloto de Brasília, com o lago destacado. É incrível que o lago foi construído, não estava lá, ele foi criado.
LS: Como a cidade se conecta com o seu processo criativo?
TM: Impacta diretamente. A cidade traz informação e permite ter muitas ideias. Estou sempre conectada com algo, com alguma nova inspiração, é sempre muita coisa. Eu observo tudo, arquitetura, pessoas, clima, vegetação, estilos de vida, diferenças entre classes sociais. A cidade me faz estar sempre ativa, acelerada. O que uma vida mais pacata, isolada como na minha cidadezinha pequena, no meio da floresta amazônica, não me permitiria ter essa ousadia, essa audácia de criar algo como a coleção “Brasília 64”. Seria considerado uma coisa de louco. A cidade grande me traz essa segurança de criar sem julgamento, de ter liberdade de escolher o que quero expor.
LS: Como é a sua relação hoje com a cidade?
TM: Brasília se tornou a minha casa. Eu me apaixonei mesmo pela cidade. Além de ter aquele primeiro olhar de que é incrível, que foi uma cidade planejada, conhecer a história, que é encantadora, mas estar aqui dentro, vivendo, vendo a sua vida acontecer, as conquistas, isso criou em mim uma um laço muito forte. Gosto da calmaria, ao mesmo tempo que tem milhares de coisas para fazer. É uma cidade bonita, que tem muita natureza, arquitetura. Brasília tem muito da questão artística, foi uma cidade desenhada a mão. Estar aqui dentro para quem gosta de arte é muito bom.