A desconexão com a vida estável que levava em São Paulo foi o que levou Juli Hirata a atravessar o mundo de bicicleta. Bióloga de formação, cicloativista, em 2015 ela pediu divórcio, se desvinculou de quatro empregos e vendeu o que podia para, no ano seguinte, comprar uma passagem aérea até o Alasca, mais precisamente na Prudhoe Bay, uma vilazinha o mais norte possível que dá para chegar de bike. De lá pra cá, já são mais de 30mil km rodados, um ombro fraturado, um veículo roubado e, claro, muitas histórias.
Nessa conversa que tivemos por WhatsApp, enquanto tomava um drinque sozinha num restaurante de Sorrento, sul da Itália, Juli falou sobre acolhimento, vulnerabilidade e o que aprendeu com a solidão das longas distâncias.
Larissa Saram: Você é uma cicloviajante desde 2016. Por quantas cidades já passou?
Juli Hirata: É impossível numerar, já são mais de 30 mil km rodados. Saindo do Alasca, cruzei o Canadá, cheguei aos Estados Unidos e fui até o México. Depois entrei em Belize, já na América Central. Aí veio Panamá, Guatemala, Honduras, Nicarágua. Na Costa Rica, sofri um acidente, caí descendo de bicicleta o vulcão Irazu, quebrei o ombro direito e perdi o movimento do braço. Depois de um ano e meio de tratamento, cheguei no Suriname e aí já entrei na América do Sul. Aí fui até a Guiana Francesa e pedalei até Trinidad e Tobago. Nessa época, o Bolsonaro tava com tanque de guerra na fronteira com a Venezuela por conta de um pico de migração. Então, fui para Curaçao e segui para a Colômbia. Fiquei oito meses lá, foi maravilhoso! Quando entrei no Equador, veio a pandemia e precisei viver na na fronteira com o Peru. Depois voltei para o Brasil e voei para o Peru de novo para subir os Andes de Lima. Fui descendo até chegar bem perto de Cusco. Lá, tive minha bicicleta roubada. Aí, depois de conseguir uma nova, tirei umas férias de Américas e fui para Portugal. Cheguei até Istambul, cruzei de Oeste a Leste. A ideia era ir em direção ao Japão, mas rolou um terremoto na fronteira com a Síria e, com a guerra acontecendo, resolvi voltar pro Brasil. Trabalhei aí por um tempo até me propor uma pequena aventura experimental, sem a bicicleta, mas ainda sozinha. Agora estou no sul da Itália.
LS: O corpo da mulher no espaço público é desde sempre tratado como fora do lugar. E a bicicleta dá um contato muito mais visceral com o mundo, do que um carro, por exemplo. Depois de passar por tantos lugares, como é ser uma mulher explorando as cidades de bicicleta?
JH: O mundo da aventura é predominantemente masculino. E uma mulher viajando de bicicleta fica exposta em vários lugares, mas o maior deles não é a exposição física. É principalmente do psicológico coletivo. Quando uma pessoa nos vê, ela tem um estranhamento que é de outra ordem. Em 2015, quando comecei a me planejar, fiz um levantamento bem por cima e a proporção era de quase 20 homens para cada mulher viajando sozinha pelo mundo. Viagens de longa duração, eu digo, pessoas que estavam há mais de três meses na estrada. O que o homem faz muito tranquilamente, pra gente é outra situação. É quase impossível passar despercebida numa cidade, principalmente nesses pequenas vilas. Quando a gente chega, é comum que as pessoas já saibam sobre quem somos. Estar mais visível nos coloca numa posição mais vulnerável.
LS: Tem alguma história marcante sobre isso?
JH: Cheguei em fevereiro no Alasca, as temperaturas lá estavam muito frias. No meu primeiro dia, peguei -24o.C, no segundo -32o.C. E não tem nada por quase 600km. Tem só dois pontos de apoio a motoristas, mas como era início da temporada, só um deles estava disponível. Eu estava carregando 80kg de equipamento na Dalton Highway, que durante muitos anos foi considerada a mais perigosa do planeta. Então, os poucos caminhões que passavam, se comunicavam pelo rádio e eu não sabia disso. Fiquei sabendo na última parada, um caminhoneiro que vinha me ajudando ao longo do trajeto com água, me falou que fiquei conhecida como a maluca da estrada, que quando um deles passava por mim, avisava os outros. De certa forma, eles estavam cuidando de mim.
LS: Essa foi uma história boa. Rolou alguma ruim?
JH: No Canadá, tive problema com um stalker. Ele estava me acompanhando pelas redes sociais, viu que eu tava chegando perto de onde ele estava. E esse cara fez algumas investidas pelo Instagram, me mandou fotos, aquela coisa que de certa forma todas nós já passamos de alguma maneira. Falei que não queria aquele tipo de interação, ele ficou bravo, e eu o bloqueei. Ele criou um outro perfil, passou pela estrada e tirou uma foto do que parecia ser eu. Disse que era muito fácil me encontrar. E que era também fácil me atropelar e ninguém ver. A gente está vulnerável principalmente por estar fazendo uma coisa que pouquíssimas pessoas fazem.
LS: Como o caso da Julieta Hernández, cicloviajante venezuelana que foi assassinada no Amazonas, bateu em você?
JH: Infelizmente a Julieta não foi a primeira vítima. Nós tivemos outras viajantes, mochileiras, aventureiras que sofreram também. A morte dela levantou o questionamento de “mas também, ela estava viajando de bicicleta, queria o quê? Estava pedindo pra morrer”. Eu ouvi isso muitas vezes, que o tipo de coisa que estava fazendo era pedir pra morrer. Todo mundo acha que somos de alguma forma inconsequentes por estar fazendo uma coisa que ninguém faz.
LS: Como o ser estrangeira impacta na sua relação com as cidades?
JH: Sou mestiça de maranhense com japonês, em qualquer lugar do mundo sou uma pessoa diferente. Tem um erotismo associado ao meu fenótipo que é muito violento. E quando digo que sou brasileira, isso fica ainda mais forte. Tenho camadas de preconceitos associados a objetificação de um corpo que não pertence a ninguém. Não tenho corpo de uma brasileira, não sou uma brasileira no imaginário das pessoas. Mas se eu sou oriental, sou também uma latina. Principalmente para os homens. Quando perguntam do que tenho medo na estrada, eu digo: tenho medo de homem. Cruzei território de urso, de aracnídeos nos desertos do centro dos Estados Unidos o do norte do México, cruzei florestas com crocodilos, e nada disso me assusta mais do que os homens. Fora todos esses espinhos, ser uma brasileira, fora do Brasil, viajando de bicicleta, é maravilhoso. A bicicleta é um convite para todo mundo chegar perto e conversar, ela tira um pouco essa coisa de ser uma estrangeira porque todo mundo conhece bicicleta e ela abre portas. Quantas vezes cheguei num lugar sem saber onde ficar e recebi convite para ficar na casa de uma desconhecida? A bicicleta é esse instrumento mágico, que coloca a gente em contato com todo mundo. E aí a minha nacionalidade pouco importa. Acho que certa forma dá pra dizer que sou de um país bem diferente chamado Bicicleta (risos).
LS: Você pedala por longas distâncias. Como lida com a solidão?
JH: Essa parte é a mais linda de todas. Uma vez que você começa, o maior risco que existe é se apaixonar por você mesma e querer continuar viajando mais. Acho que foi isso que aconteceu comigo ao longo desses últimos oito anos. Viajar sozinha é um universo porque ao mesmo tempo que está acontecendo toda essa vida fora, com novidades todos os dias, tem toda uma viagem interna também, que é muito profunda quando não tem outra pessoa junto. Você precisa se questionar quem é você quando não tem ninguém olhando. O que faço quando não sou a filha, a amiga, quando não sou a parceira, a esposa ou a namorada? Quando estou pedalando, chega uma hora que não há outra alternativa a não ser olhar para si mesma. Foi quando comecei a fazer as perguntas que realmente importavam para mim, sobre os medos que sentia, sobre olhar nos olhos das pessoas. Qualquer tema vira motivo para um papo cabeça.
LS: A sua decisão de mudar completamente de vida surgiu da onde?
JH: Eu tinha uma vida muito boa. Trabalhava para caramba em quatro empregos que adorava, morava numa casa legal na zona oeste de São Paulo, era casada e não tinha filhos. Aos 30 anos estava onde imaginei. Apesar de ter tudo isso, estava distante de mim mesma, confusa por várias razões. Comecei pedindo o divórcio de um casamento de 10 anos, fiz os trâmites para para sair dos meus empregos, vendi o que podia. Virei a mesa porque tava vivendo uma profunda desconexão comigo mesma e com a vida que queria levar. Era uma vida de profunda desconexão com o que eu considero como liberdade. Quando saí nunca tive a pretensão de ter uma vida feliz, não é isso que estou fazendo. Eu quero uma vida interessante, cheia, plena. Meu compromisso hoje é, acima de tudo, com a minha liberdade.
LS: Qual é o sentimento que você tem quando chega numa cidade que não conhece?
JH: Sempre tenho um friozinho na barriga quando estou chegando em algum lugar. Gosto de ver as cidades como pessoas, cada uma com suas manias, suas coisinhas. É como se estivesse indo para um date, conhecer alguém. Faço o exercício de não comparar um lugar com outro para dar a chance de eles serem eles mesmos. E tento sempre ficar pelo menos dois dias para dar chance dessa “pessoa” se mostrar um pouquinho mais.
LS: Quais são os próximos planos?
JH: Eu agora estou mochilando pelo sul da Itália por três meses. Desta vez, sem a bicicleta porque queria experimentar o que é viajar sozinha e a bike é também uma companhia. Queria entender qual é o papel da bicicleta na minha experiência de viajar. Com ela, tudo mais a flor da pele, na superfície, é preciso literalmente transpirar para chegar em algum lugar. E quando estou na estrada pedalando, sou muito mais bicho, a experiência é primitiva, tenho que fazer xixi no mato, comer mais com a mão, agachada e alerta sobre os animais que podem aparecer. Agora sou bicho social, quando cheguei aqui e sentei pra comer com um guardanapo, me senti muito civilizada (risos). O guardanapo fez eu me sentir mais humana, estou voltando a ser um indivíduo nesse mecanismo coletivo, que precisa estar atento para as normas sociais e culturais de cada lugar. É tudo completamente novo pra mim, vou vivendo um dia de cada vez.