Direitos

entrevista com Débora Freitas

“O racismo mais nítido na cidade é a segregação espacial”

Âncora da rádio CBN conta como as experiências de mulher negra nascida na periferia colaboraram com seus estudos sobre políticas antirracistas e direito à cidade.
Por Larissa Saram

A jornalista Débora Freitas, especialista em estudos sobre raça e cidade

A primeira vez que Débora Freitas foi para a escola, no primeiro ano do Ensino Fundamental 1, percebeu que era a única entre os colegas que sabia ler e escrever. Ninguém ali tinha frequentado a pré-escola, nem a própria Débora, que foi alfabetizada pela mãe e pela madrinha em casa. Provavelmente o motivo para todos os alunos era o mesmo: na periferia da zona sul de São Paulo, onde moravam, a distância até a escola era grande na mesma proporção do valor da mensalidade da perua.

Hoje, ao fazer um olhar detalhado, a âncora do programa de rádio CBN São Paulo, consegue capturar todos os atravessamentos da cidade na sua vivência de mulher negra, desde a infância: “Várias coisas que aconteceram na minha vida tinham a cidade envolvida. Lembro da primeira vez que consegui juntar uma sílaba na outra, entender que aquilo era uma palavra: eu estava dentro de um ônibus. O primeiro olhar assediador que recebi foi no metrô”, disse durante a nossa conversa, via vídeochamada, para a newsletter “Mulheres e a Cidade”.

As experiências de vida e também profissionais, já que Débora se tornou uma apaixonada pelas pautas que envolvem infraestrutura urbana, foram definidoras na hora da escrever a tese do Mestrado. Em “Políticas antirracistas como componente do direito à cidade: experiências em São Paulo e Nova York”, Débora  faz uma análise das políticas urbanas antirracistas que estão em andamento nas duas metrópoles e mostra como a segregação espacial e as dificuldade de acesso a serviços impactam diretamente as populações negras. 

Na entrevista a seguir, ela conta um pouco mais sobre sua trajetória, além de descobertas e constatações nos estudos sobre cidade e raça.

A jornalista Débora Freitas | Crédito: Priscila Gubiotti

Larissa Saram: A sua tese de mestrado trata das políticas antirracistas em São Paulo e Nova York. Como foi o caminho até chegar nesse tema?
Debora Freitas:
Foi a partir da minha própria experiência profissional e de vida, como uma mulher negra que passou parte da vida na periferia da cidade e que enfrenta até hoje todas as dificuldades que os grupos minorizados têm. Obviamente hoje estou numa situação um pouco mais privilegiada, mas até chegar aqui foram muitas as angústias. Quando comecei a trabalhar com  jornalismo, percebi o quanto as pautas de cidades me interessavam. O buraco na rua, a falta de cobertura no ponto de ônibus, o semáforo quebrado, isso impacta diretamente na vida das pessoas e essa sempre foi a minha paixão. Como repórter, tinha muito esse olhar e, quando voltei para CBN para apresentar um programa sobre cidades, aí foi a minha glória profissional. Eu já tinha começado o mestrado e tinha definido que queria estudar as cidades com recorte de raça, só não sabia exatamente como fazer isso. 

LS: E como foram essas experiências que colaboraram para que você decidisse se aprofundar sobre o tema?
DF:
Nasci em Minas Gerias, minha família é do Vale do Jequitinhonha. Quando meus pais vieram para São Paulo, eu tinha dois anos de idade. Tenho uma lembrança muito viva da nossa chegada aqui, na rodoviária, tinha umas bexigas coloridas e os gigantes – para mim, eram gigantes porque eu era pequena e tinha muitas pessoas ali. Fui vendo, no desenrolar da vida, o quanto esse gigantismo vinha sobre a gente de uma forma tão dura. Morávamos num bairro da periferia, Americanópolis, e era um lugar quase sem estrutura. Tenho 48 anos e naquele tempo o acesso à pré-escola não era universalizado. Existiam algumas escolas, mas eram todas distantes da minha casa, para os meus pais levarem e buscarem não tinha como, por causa do trabalho. Também não tinham dinheiro para pagar uma perua. Então, a gente simplesmente não fez pré-escola e minha mãe me alfabetizou em casa, junto com a minha madrinha. Quando cheguei na primeira série já sabendo ler e escrever, percebi essa realidade dos meus colegas de sala – mais ninguém sabia. E todo mundo estava na mesma condição, começando a escola naquele momento. Passei a observar o que existia em comum naquele bairro cheio de precariedade. Depois de um tempo, a gente acabou se mudando, fomos morar onde estou até hoje, a Vila Guarani, que não é tão centralizada, mas é bem perto de uma estação de metrô. Cresci aqui, depois, quando casei, fiquei morando 14 anos na região metropolitana de São Paulo e há 4 anos voltei pra cá, para dar um apoio para os meus pais.

“Quanto mais perto do metrô,
mais branca a população,
quanto mais perto da rodovia,
mais parda ou preta.
Essas mazelas todas
têm o endereço”

LS: Como você acha que a questão da mobilidade da cidade te atravessou?
DF: Meus pais nunca tiveram uma casa própria, porque comprar uma casa própria significava morar na periferia e meu pai sempre pensou “prefiro pagar aluguel que é para os meus filhos estarem próximos do metrô, do transporte público, e acessarem uma escola melhor, mesmo que seja uma escola pública, mas mais estruturada, para conseguirem trabalhar”. Na cabeça dele, essa foi a lógica. Isso diz muito da composição da formação da cidade.  

LS: Isso era perceptível para você já naquela época? 
DF: O que me levou a realizar todas essas situações de dificuldade na periferia ou mesmo aqui, que não é periferia porque a gente tem uma estrutura, mas é um pouco mais distante do centro, é que quem está numa situação de vulnerabilidade tem cor, são as pessoas negras. Era a maioria em Americanópolis, é a maioria na parte mais pobre do bairro onde moro. Quanto mais perto do metrô, mais branca a população, quanto mais perto da rodovia, mais a população é parda ou preta. Essas mazelas todas têm o endereço.

LS: E para as mulheres, ainda mais, né!?
DF:
Muito mais diretamente, até porque a gente tem a mulher no comando de boa parte das famílias pobres. Várias coisas que aconteceram na minha vida tinham a cidade envolvida. Lembro da primeira vez que consegui juntar uma sílaba na outra, entender que aquilo era uma palavra: eu tava dentro de um ônibus, com a minha família. O primeiro olhar constrangedor, assediador que recebi foi dentro do transporte público, no metrô. Fui assaltada na rua. Coisas boas acontecem no envolvimento com a cidade e as coisas ruins também. 

Débora Freitas | Crédito: Priscilla Gubiotti

LS: Depois que passou a estudar a relação entre a formação das cidades e raça, o que ficou muito mais nítido para você?
DF:
A falta de política pública com viés claro de raça. Existe uma tentativa, mas estamos muito atrasados. Não é uma coisa fácil de se fazer. Fiz uma análise sobre as políticas públicas de Nova York e as tentativas de políticas públicas de São Paulo. Tem muita diferença porque eles são muito mais avançados nas discussões. A gente sequer reconhece que raça é uma questão, já começa por aí. E ao não reconhecer, não conseguimos nem pensar em como direcionar isso, mas é preciso e a gente só vai conseguir quando os gestores, os tomadores de decisão, os formuladores de políticas públicas ou mesmo quem faz essa formulação na sociedade civil organizada, que acho que tá muito mais adiantada, talvez, porque aí tem esse foco mais claro, fizer. O poder público não quer saber. O poder público quer saber de fazer política que traz voto, o que é viável para o conchavo. 

LS: Existe alguma iniciativa aqui em São Paulo que você acredita ter potencial?
DF:
Acompanhei a fundo aqui em São Paulo o Fórum Antirracista, que é uma proposta importante, interessante, mas acabou ficando no papel, não saiu de dois eventos. Estava sob a gestão da Secretaria de Relações Internacionais e tinha uma interlocução com a Educação, mas a Educação já faz um trabalho muito bem feito –  obviamente que por quem está envolvido e não por existir uma política pública. São práticas desenvolvidas por determinados diretores, pessoas negras, já com letramento racial, com pesquisa na área. E a partir das diretrizes, desenvolvem projetos com o foco racial. Mas é uma coisa muito solitária, uma não conversa com a outra. E quem assina são as pessoas brancas. As pessoas negras estão envolvidas nas discussões, mas sem nenhum poder de decisão. Ou seja: os grupos minorizados não participam das discussões e das decisões das políticas públicas, que é o que vai abarcar a maior parte da população. E a sociedade civil organizada, que tá mais focada nisso, consegue um atendimento localizado, não tem escala. 

“A periferia tem cor. E a periferia é negra.
E são essas pessoas que têm mais
dificuldade de acessar o transporte público,
os serviços básicos, as que são mais
vítimas da violência, que têm menos
acesso à educação”

LS: E dá para mudar?
DF:
Dá resultado quando você coloca esse olhar de que é preciso entender o quanto a questão racial afeta a população mais pobre,  as mulheres. Pode ser feito de diversas formas, trazendo as pessoas negras para a mesa de discussão. Começa por aí. Ouvir o que as pessoas negras têm a dizer, o que as mulheres têm a dizer. Só ouvindo as pessoas que estão passando pelo problema é que eles vão saber. Quem faz a cidades são os homens brancos, sempre foi assim e não parece que isso vai mudar. 

LS: Para olhar para as tentativas de políticas públicas antirracistas hoje é preciso olhar para trás. Como a organização urbana e essa materialização do racismo que se deu em São Paulo historicamente se perpetua no espaço público? 
DF: O que é mais palpável é que a populacão negra está na periferia. Tem um dado da Rede Nossa São Paulo, do Mapa da Desigualdade, que 50% ou mais da população negra está em bairros periféricos. Quanto mais para o centro você vem, mais branca é a população. Essa segregação é histórica, foi proposital na formação dos centros urbanos logo depois da Abolição, na chegada dos imigrantes, no processo de tentativa de branqueamento da população, que foi cada vez mais jogando a população negra para as franjas da cidade. A medida que a cidade se expande, para mais longe essas pessoas vão indo. Você chega num bairro como Capão Redondo, é majoritariamente negro. Parque Santo Antônio, majoritariamente negro. Você entra numa favela, ela é majoritariamente negra. Então o racismo mais nítido na cidade é a segregação espacial. Sempre fico observando nas cidades que vou, e isso não é uma coisa só de São Paulo. Fala do Brasil. A periferia tem cor. E a periferia é negra. E são essas pessoas que têm mais dificuldade de acessar o transporte público, os serviços básicos, as que são mais vítimas da violência, que têm menos acesso à educação. Mesmo com as políticas, com as ações afirmativas que cresceram aqui no Brasil, temos que enxergar isso e ver o que trouxe de bom, ainda que deixe eu desejar, sabe!? A gente ainda deixa muito jovem pobre negro da periferia, muitas meninas, muitas mulheres negras da periferia sem acesso. E a vida vira uma outra coisa porque é ela quem assume o papel do cuidado. Então, é muito mais difícil para uma mulher conseguir sair dessa situação. Uma mulher negra, pobre, periférica, só vai ascender socialmente se tiver acesso à educação. Para conseguir crescer profissionalmente, não tem outro caminho para gente. E, às vezes, você fica no meio do caminho, não porque você não quer, é porque não pode, não consegue. 

LS: A gente fala sempre muito da importância do letramento racial. Como ele chegou pra você?
DF:
Tarde, mas antes tarde do que nunca. Meu pai era um homem branco casado com uma mulher negra e, por causa disso, para a minha família, o racismo não existia. E na minha trajetória, sempre tive que correr atrás, o meu pensamento era de que não podia perder tempo com racismo. Até porque sou uma mulher negra de pele clara, então sempre fui mais tolerada nos espaços, mas sempre fui a única. Trabalho desde os 14 anos, nunca vi pessoas negras em cargos de chefia. Lembro só de ter uma gerente de RH, que era uma mulher negra retinta, foi a única pessoa que tinha um cargo mais elevado, todas as outras estavam servindo. Mas claro que depois que me virei para o tema, entendi que precisava tratar dele e trazer pra minha vida, que era uma questão que me afetou, mesmo que não do mesmo jeito que afeta uma mulher negra retinta. Na juventude, dizia que não podia reclamar, que nunca tinha sofrido racismo. Nunca tinha sofrido racismo direto, mas o racismo estrutural, hoje consigo enxergar os momentos em que ele se colocou. 

LS: Foi difícil admitir para si mesma que tinha sofrido racismo?
DF:
Olhar para isso é muito doloroso. Admitir que sofri racismo em determinada situação, que fui preterida num relacionamento porque era uma mulher negra, precisa de muito recurso emocional para lidar com as feridas. E transformar em força para lutar, né!? São muitas as permissões que a gente precisa pedir: primeiro a de poder sentir essa dor e também para acessar lugares em que tenho condição de estar e onde claramente sou tolerada.

Nunca me vi na Academia, nunca me vi ocupando o lugar em que estou hoje. Sou fruto de entender que eu posso ocupar e vou lutar por isso. Tive que pedir muita permissão para o meu inconsciente, para ele me deixar ocupar esses espaços, me deixar à vontade neles. Hoje, não tenho como desistir, tenho que considerar raça e gênero em absolutamente tudo que faço, Não admito voltar, por mais que sinta vontade de desistir. Se uma desistir, a outra desiste, a outra também e a luta acaba. É continuar chutando parede, metendo o pé na porta.

LS: Na sua tese, você analisou como as políticas de educação, saúde e segurança pública estão diretamente conectadas ao planejamento da cidade. Como esses assuntos se cruzam?
DF: Tudo é uma coisa só, se uma não funciona, a outra também não vai rodar. E aí vira uma sequência de fatores que vão impactando cada vez mais negativamente a vida dessas mulheres, impossibilitando que elas vivam. E a luta é sempre para sobreviver. E quem olha por isso?

LS: Como a mudança pode acontecer?
DF:
Imagina se  uma pessoa que passou por situações de pouco acesso conseguisse desenhar políticas públicas? Tudo seria muito diferente. Defendo que mais mulheres, mais grupos minoritários cheguem nos espaços institucionalizados. Precisamos de mais mulheres negras nas casas legislativas, na Câmara, na Assembleia, nos espaços executivos. Sou superentusiasta de alguns programas que têm surgido de formação de mulheres, meninas, pessoas negras, da periferia, de formação política, para que elas entrem na vida políica partidária,  porque assim elas terão algum poder. A chegada dessas pessoas nesses postos vai fazer com que o racismo e a violência de gênero acabe imediatamente? Não, mas isso tem que acontecer e acho que essa é a forma mais democrática. Temos que brigar com tudo que vem tentando impedir que a gente chegue nesses espaços. Somos corpos políticos sempre.

“Primeiro a branquitude entender
o que é antirracismo
e reconhecer os seus privilégios.
E a partir daí ir para ação”

LS: E a sociedade civil? Pode contribuir como?
DF: A sociedade civil organizada, e a desorganizada também, têm um papel muito importante. Falo desorganizada como uma brincadeira, porque no fim das contas existe sim uma organização. O trabalho que Paraisópolis fez durante a pandemia, por exemplo, e que foi replicado em comunidades de países de todo o sul global. Eles não vêem isso com recorte racial, mas é porque a maior parte da população lá é negra. Já está intrínseco nas discussões e ações. Os projetos que acontecem ali dentro da favela já têm esse viés racial, de gênero quando, por exemplo, eles fazem projetos voltados para as mães solo, que são vítimas de violência doméstica e têm que sair de casa porque não têm renda. Isso já tá direcionado, é uma autogestão feita de acordo com as necessidades. Obviamente tem as suas adaptações, mas tem coisas muito simples, né? Basta ouvir o que a população quer dizer. 

LS: Você menciona na sua tese que a cidade antirracista ainda é imaginada, mas é também uma cidade possível – e já até começa a ser desenhada em cidades globais a partir de políticas urbanas com foco na população negra. O que você acha que é mais urgente para que as mudanças de fato comecem a acontecer?
DF: São muitas as possibilidades. Acho que o que está mais à mão e que, a partir daí, a gente consegue ampliar, é a educação. Primeiro a branquitude entender o que é antirracismo e reconhecer os seus privilégios. E a partir daí ir para ação. Em São Paulo, acho que hoje é a área mais avançada, embora os projetos sejam ainda solitários, formulados por grupos específicos, mas que têm trazido resultados importantes. E pensar também em políticas voltadas para a habitação, justamente para desmobilizar a segregação espacial. Se o poder público não colocar a mão nisso, nós não vamos ter habitação de interesse social nas áreas centrais. A vivência mostra isso pra gente, todos os conjuntos habitacionais são construídos na periferia. Acho que são dois caminhos bem importantes: políticas específicas antirracistas para a educação e habitacionais. E a partir daí, isso vai impactar no transporte, na saúde e em outras áreas. 



Mais notícias

Cultura

Patricia Maissa

A pernalta e engenheira ambiental desfila pelas ruas em cima da perna de pau durante os dias de festa. A visão privilegiada a emociona e a faz desejar ainda mais um espaço inclusivo para todas. Por Graziela Salomão

Cultura

Blenda Santos

Por meio do slam, poeta sergipana leva para as ruas de Aracaju e outros espaços diversos as narrativas das mulheres negras, periféricas e nordestinas de ontem e de hoje. Por Larissa Saram

Direitos

Preta Ferreira

A multiartista, ativista e uma das vozes do MSTC faz da arte sua ferramenta de luta por direitos básicos de moradia e de justiça na maior metrópole da América Latina. Por Graziela Salomão

Lifestyle

Laura Artigas

Diretora, documentarista, roteirista e jornalista coloca em seus projetos pessoais e profissionais as experiências de ser uma mulher que caminha atenta pela cidade. Por Larissa Saram