
E se as mulheres projetassem as cidades? Quantas vezes já não nos fizemos essa pergunta. Como seria a vida se o espaço público fosse pensado de uma forma em que nossa existência, de fato, estivesse contemplada?
A urbanista anglo-brasileira May East foi atrás dessas perguntas. Não para falar de uma perspectiva arquitetônica ou humana de como a cidade restringe e oprime, mas sim para mostrar como experiências vividas por mulheres em tantas partes do mundo podem nos levar a espaços que beneficiem a todos. A isso, May dá o nome de mutualismo coevolutivo. “Neste contexto, significa o envolvimento e a escuta de todos que têm interesse no sistema, em um diálogo reflexivo e generativo que projeta cidades que funcionam para todas e todos”, diz na entrevista desta semana ao Mulheres e a Cidade.
E o melhor de toda a pesquisa que a designer de projetos regenerativos e escritora traz em seu novo livro “E se as mulheres projetassem a cidade: 33 pontos de alavancagem para fazer sua cidade funcionar melhor” (Bambual Editora) é que há esperança. Essa visão de que um futuro melhor é possível vem enfatizada no papel feminino como sujeito revolucionário e ativo em uma nova formação do espaço urbano. Para o livro, May entrevistou 274 mulheres durante caminhadas por seus bairros em diferentes países. Como resultado de todas essas conversas, a urbanista explora a simbiose que existe entre mulheres e cidades e como ações pensadas e criadas para reformular os espaços urbanos sob o ponto de vista feminino podem transformá-los em lugares mais verdes, inclusivos e habitáveis para o presente e o futuro.
May é um exemplo prático de como as cidades são vivas e mutáveis. Maria Elisa Capparelli Pinheiro, conhecida pelo nome artístico que homenageia sua temporada no East Side de Nova York, é uma mulher camaleônica. Nos anos 80, foi musa da banda de new wave Gang 90 & as Absurdettes. Ativista sempre, May decidiu fazer uma transição de carreira que a levou a ser premiada como Mulher da Década em Sustentabilidade e Liderança pelo Women Economic Forum em 2019 e reconhecida internacionalmente como uma das 100 Líderes Globais em Sustentabilidade durante três anos seguidos. Hoje, atua como diretora do programa Cidades na UN House Scotland. Nessa conversa, a urbanista traz um alento em momentos atuais tão difíceis em que convivemos com crises climáticas, sociais e econômicas. “Construir cidades para e por mulheres exige uma abordagem sistêmica, na qual tecnologia e regeneração não apenas coexistem, mas se potencializam mutuamente”.

Graziela Salomão: Hoje, depois de toda a pesquisa para o livro, como você responderia à pergunta “E se as mulheres projetassem as cidades”?
May East: Se as mulheres projetassem as cidades, elas seriam desenhadas para proximidade e não para mobilidade veicular e o transporte ativo seria incentivado como modo de vida. As cidades seriam mais verdes e vitalizadas. A biodiversidade seria celebrada com a instalação de paredes vivas, telhados verdes e miniparques, todos interligados por corredores ecológicos onde as pessoas poderiam desfrutar do ar puro e a vida silvestre, se mover mais livremente pela cidade. Haveria uma diversidade de espaços de encontro e convivência, criados e cuidados pelos próprios moradores, pensados para integrar diferentes habilidades e promover a interação entre todas as gerações, do mais jovem ao mais velho. A segurança não seria apenas um discurso, mas uma prioridade real, com um design urbano que favorecesse a vigilância natural. Ruas vivas e bem frequentadas, com a presença constante de moradores e transeuntes atuando como “olhos da rua”, tornariam os espaços mais seguros para todos.
GS: Como foi a ideia de reunir essas 274 mulheres para refletir sobre as ações que elas já fizeram em relação à construção de bairros e cidades mais inclusivos e regenerativos?
ME: Minha pesquisa envolveu 274 mulheres ao longo de seis meses com entrevistas itinerantes, cada uma única em suas revelações. Todas as conversas começaram com a pergunta inicial: ‘O que é único em seu bairro?’ A partir daí, as participantes tomaram todas as decisões, incluindo a rota percorrida, a duração da entrevista, o ritmo da caminhada e o que queriam mostrar e compartilhar. Elas mantiveram controle do processo de pesquisa e foram convidadas a assumir o papel de especialistas de suas regiões. Algumas adaptaram a rota para se adequar ao seu dia a dia — como durante uma caminhada diária junto à natureza, uma ida ao correio ou a caminho da escola dos filhos. Essa abordagem permitiu que a pesquisa se conectasse diretamente com a vida cotidiana de cada uma, revelando de forma autêntica como elas já estão construindo com seus pés e protagonismo bairros e cidades mais inclusivos e regenerativos.
“Não vejo a relação entre mulheres e cidades como um problema a ser resolvido, mas como um potencial a ser realizado na singularidade de cada bairro. E isso já está
acontecendo de formas inesperadas.”
GS: Em uma outra entrevista, você disse que cada cidade pode ser uma obra de arte viva, moldada pela experiência humana e, sobretudo, pela perspectiva das mulheres. Acha que é muita utopia imaginarmos um futuro breve que pense a construção dos espaços urbanos sob essa ótica, mesmo com os retrocessos que temos visto recentemente?
ME: Não vejo a relação entre mulheres e cidades como um problema a ser resolvido, mas como um potencial a ser realizado na singularidade de cada bairro. E isso já está acontecendo de formas inesperadas. Gosto de pensar nas inúmeras iniciativas urbanas sensíveis ao gênero como parte de um movimento rizomático emergente. O rizoma, esse caule subterrâneo que cresce horizontalmente, lançando raízes e brotos de diferentes pontos, é uma metáfora poderosa. Diferente de uma árvore, que tem uma estrutura hierárquica e centralizada, o rizoma se espalha sem começo ou fim definidos. Ele é resiliente, capaz de se regenerar mesmo quando partes suas perdem vitalidade. Ideias, culturas e sistemas baseados nesse princípio são difíceis de controlar ou eliminar, porque sempre encontram novos caminhos para florescer. O movimento ‘mulheres e cidades’ segue se multiplicando e enraizando. É aquilo que desafia e transforma.

GS: Com a emergência climática, uma das perguntas que mais angustia é: ainda dá tempo de construirmos ou transformarmos as nossas cidades? E que tipos de transformações sociais, políticas e tecnológicas ajudariam, na sua opinião, a criar um cenário mais favorável à construção de cidades mais inclusivas e seguras para as mulheres?
ME: Cidades se transformam nas suas continuidade e descontinuidades continuamente. Neste processo, escolhemos não usar um mapa antigo para explorar um novo território. Ou seja, apesar de historicamente as cidades terem utilizado o perfil de um homem branco adulto sem necessidades especiais como referência para o planejamento espacial, aqui não adotamos uma perspectiva de soma zero, onde o protagonismo das mulheres no planejamento urbano resultaria em perda de espaço para outros gêneros — mais especificamente para os homens. O novo mapa que estamos criando diz respeito ao mutualismo coevolutivo, enraizado no desejo de inclusão, na incorporação do cuidado e no reconhecimento da complexidade dos sistemas urbanos. Mutualismo coevolutivo, neste contexto, significa o envolvimento e a escuta de todos que têm interesse no sistema, em um diálogo reflexivo e generativo que projeta cidades que funcionam para todas e todos.
GS: Sobre as cidades regenerativas e a tecnologia que as cidades inteligentes usarão em uma nova vivência no espaço público, como é possível unir essas duas na construção de cidades feitas para e por mulheres?
ME: Podemos dizer que as cidades regenerativas tendem a ser inteligentes, mas nem todas as cidades inteligentes são regenerativas. Nosso desafio de design é garantir que a tecnologia esteja a serviço da vida, promovendo a vitalidade dos sistemas naturais – solos, espaços verdes, cursos d’água – que apoiam as cidades, o bem-estar comunitário, a multiplicidade de acessos e a descarbonização dos nossos modos de vida. Isso pode se concretizar, por exemplo, por meio do uso de dados urbanos para incentivar o transporte ativo, da implementação de sensores e iluminação inteligente para aumentar a segurança das ruas e de plataformas digitais que possibilitem a participação ativa das mulheres na tomada de decisões sobre o espaço público. Construir cidades para e por mulheres exige essa abordagem sistêmica, na qual tecnologia e regeneração não apenas coexistem, mas se potencializam mutuamente quando apropriado para criar ambientes mais verdes, inclusivos, habitáveis e poéticos.
“Cada lugar, cada bairro com sua singularidade bio-cultural-espacial me enriquece como mulher e urbanista de alma que sou.”
GS: E depois de passar por tantas cidades, tem alguma que seja a do seu coração?
ME: Tenho muitos bairros no coração, e por eles perambulo com curiosidade renovada a cada temporada que passo neles. O West Village, em Nova York, com sua energia criativa, espírito boêmio e clubes de jazz; o Marais, em Paris, com suas galerias de arte e design, cafés e bistrôs, e pequenos museus; a Île de Saint-Louis, no Senegal, com seu quartier histórico, mercados de artesãos locais, suas casas coloniais de fachadas coloridas e varandas de ferro forjado; Leith, em Edimburgo, com sua atmosfera portuária e comunidade vibrante, resultado da revitalização e mistura do antigo com o novo; e Campeche, em Florianópolis, com suas dunas rizomáticas, pesca artesanal e cultura de bem-estar. Cada lugar, cada bairro com sua singularidade bio-cultural-espacial me enriquece como mulher e urbanista de alma que sou.