
As cantoras de ópera são, por essência, filhas das cidades. Surgiram do burburinho dos centros urbanos, dos teatros que se abriram ao público, dos salões que passaram a ser ocupados por vozes femininas. Mas nem sempre foi assim. Até o início do século XVII, mulheres eram proibidas de subir aos palcos. Os papéis femininos eram interpretados por meninos ou por castrati, homens castrados antes da puberdade para preservar o timbre agudo. Aos poucos, esse cenário começou a se transformar. Foi em cidades como Veneza que as primeiras cantoras ganharam espaço, dando vida a deusas, heroínas e rainhas.
Essas histórias intensas de amor, paixão e dor fizeram com que a paulistana Carla Cottini se apaixonasse pela música erudita e encontrasse nela seu lugar no mundo. “Minha avó materna, que era uma das minhas principais cuidadoras, cantava para mim e colocava música para eu escutar quando era pequena”, relembra. Mal sabia ela que ali nascia a soprano que, anos depois, encantaria plateias em muitos cantos do planeta, protagonizando óperas de Mozart, Donizetti, Puccini e tantos outros.
Carla divide sua carreira entre temporadas no Brasil e no exterior, e é reconhecida pela crítica pela beleza do timbre e pela potência de sua presença de palco. Nos últimos anos, precisou pausar momentaneamente a carreira para enfrentar uma cirurgia nas pregas vocais e, em paralelo, se dedicou à maternidade com a chegada de Sofia, enquanto se adaptava à vida em Berlim. As cidades, para ela, sempre foram mais do que cenário. São espaços que a transformam. “Cada cidade tem características sócioculturais diferentes. É incrível como o ser humano pode pensar e agir diferente a partir da cultura de onde vem”, reflete. “Mais incrível ainda é uma obra-prima como Don Giovanni, por exemplo, ser produzida simultaneamente em dezenas de países pelo mundo”
De passagem recente pelo Brasil, Carla integrou a montagem inédita de Don Giovanni, de Mozart, no Theatro Municipal de São Paulo. Em conversa com o Mulheres e a Cidade, falou sobre como a arte se entrelaça com o urbano e como as cidades moldam e influenciam sentimentos universais como amor, medo e liberdade no nosso dia a dia.

Graziela Salomão: Como foi seu encontro com a ópera?
Carla Cottini: Meus avós maternos e paternos escutavam ópera e música clássica em casa. Meus pais também colocavam CDs de ópera e musicais da Broadway para tocar no carro. Eu ia imitando, tentando cantar, decorava as melodias e até pronunciava fonemas parecidos com o que seriam as letras das peças, que eram normalmente em italiano, francês, alemão ou inglês.
GS: Você voltou a São Paulo para se apresentar no Theatro Municipal. Esse reencontro com a sua cidade natal em um palco tão histórico traz um gosto especial e uma responsabilidade diferente?
CC: Sim! Com certeza! O meu coração está muito preenchido com esta experiência de voltar ao Theatro Municipal para cantar uma das óperas mais grandiosas de todos os tempos. Amo estar em São Paulo, conectada com minha família e amigos antigos, na cidade onde cresci. O Theatro Municipal é um templo para mim e a Zerlina é uma personagem que já interpretei em diversas cidades nos últimos 12 anos. Desta vez é mais delicioso ainda porque me sinto dona da minha voz e do meu corpo e muito intima com o repertório, então posso me deliciar com a música e me divertir com o papel.
GS: Você é uma cantora de ópera, arte que aqui no Brasil não é ainda tão acessível ao grande público. Como acha que a música pode trazer as pessoas mais para perto da cultura, da história e, consequentemente, das cidades?
CC: São Paulo é um centro artístico importante no cenário mundial. Oferece diferentes modalidades artísticas formais e informais por toda a cidade. Os principais teatros e salas têm sólidas programações e, muitas vezes, os ingressos esgotam antes mesmo da estreia. A maior parte da população, no entanto, acaba não tendo acesso, de fato. A música é o canal mais direto para a cultura, na minha opinião, porque existe cada vez que é cantada ou tocada. Tem um poder de transformação enorme porque entra na gente trazendo afeto, emoção e isso já pode nos arrancar da realidade cotidiana e nos convidar a viajar, a sentir outra coisa e, consequentemente, a pensar diferente. É exatamente aí que mora o potencial de transformação.

GS: Como São Paulo poderia tornar esse acesso à cultura mais fácil?
CC: Há muitos artistas extremamente competentes e sérios buscando espaço para exercer o ofício e, muitas vezes, falta organização dos espaços e, principalmente, investimento financeiro. Esta cada vez mais difícil conseguir patrocínio para os projetos artísticos e isso é um problema enorme que gera um problema social ainda maior como consequência.
GS: Você se apresenta em palcos de várias cidades do mundo. Como as cidades impactam nesse momento do espetáculo?
CC: Cada cidade tem características sócioculturais diferentes. É incrível como o ser humano pode pensar e agir diferente a partir da cultura de onde vem. Mais incrível ainda é uma obra-prima como Don Giovanni, por exemplo, ser produzida simultaneamente em dezenas de países. É uma peça que estreou em 1787 e continua sendo feita no mundo inteiro.
GS: Como a cidade influencia na forma que você se construiu como artista e como mulher?
CC: Sao Paulo requer que sejamos polvos, multifuncionais, dinâmicos. É o constante exercício de planejamento, de organização, de colocar um olho no peixe e o outro no gato. São milhares de oportunidades de ver algo novo, conhecer uma pessoa totalmente distinta. É lindo, animicamente rico, vibrante e, ao mesmo tempo, pode ser caótico e angustiante. Nascer e crescer em São Paulo me trouxe incontáveis vivências e me tornou capaz de viajar o mundo, de me adaptar facilmente a diversos lugares com este dinamismo. E, para ser mãe, acho que isso traz muitas vantagens, porque a vida da mãe que trabalha e não tem uma vasta rede de apoio é rica do ponto de vista da alma, vibrante, caótica e angustiante. Também aprendi a descobrir meu respiro no silêncio e ir encontrando meus cantinhos pelo mundo.

GS: Você vive atualmente em Berlim. Como foi a mudança de cidade e a adaptação?
CC: Berlim me chamou. Já tinha morado 5 anos na Espanha e um ano no norte da Itália, estudando música e cantando profissionalmente. Em 2018, fui chamada para substituir um soprano que estava doente em Berlim, vim de última hora e senti que deveria ficar. Comecei a estudar alemão e uma coisa levou a outra. Entre estudos, casamento, COVID, cirurgia nas pregas vocais, gravidez e contratos, acabei ficando. E amo.
GS: Tem uma cidade que seja a do seu coração?
CC: São Paulo sempre será uma das cidades do meu coração, onde criei minhas primeiras memórias. O Rio de Janeiro também porque foi o primeiro lugar onde morei sozinha. Em Valencia, na Espanha, fiz gradução e mestrado e sinto que foi minha segunda casa, mas agora Berlim ganhou esse espaço. Gosto do jeito que o pessoal pensa, das pessoas que encontro, da comunidade que criamos. O cenário cultural é indescritivelmente maravilhoso, conheci meu marido lá e minha filha Sofia nasceu no meu apartamento em Berlim. Acho que é o lugar ideal para viver com minha família. Não vou mentir: o inverno é longo e escuro, mas até isso nos faz valorizar o verão e, sempre que podemos, escapamos para São Paulo (risos). Sou pisciana demais para ter apenas uma cidade no meu coração.

GS: Sua relação com o espaço onde está criando sua filha impacta na decisão de não voltar ao Brasil? E que cidade e legado sonha em deixar para ela?
CC: Sim. Berlim, principalmente na parte onde moro, é habitada por expatriados de vários lugares do mundo. Gosto muito disso: de andar na rua e escutar várias línguas diferentes, ver minha filha brincando nos parquinhos com crianças de culturas diversas. Acho bonito isso de deixar cada um ser quem é. Minha filha vai à escola, aos parques, piscinas e jardins públicos, andamos apenas de transporte público, onde ela tem sempre a oportunidade de vivenciar a diversidade. Estas vivências são essenciais para a formação do ser humano. Entender que o outro é o outro e que, juntos, formamos o “todos”. Em São Paulo fica mais complicado porque o medo da violência é grande e a cidade é muito grande e complicada de percorrer sem ser de carro. O trânsito também pode tornar a vida estressante e caótica. Cada vez que vou, percebo um número maior de pessoas pelas ruas sem o mínimo necessário para viver, mais diferença social, muros mais altos e mais violência.
GS: Você gosta de explorar a cidade e caminhar por ela? CC: Em Berlim, não temos carro, então tudo é a pé ou de transporte público e adoramos este modo de viver. Amo as casas de ópera, as salas de concerto e o parque Tiergarten. Passear num parque daquele tamanho dentro de uma cidade é maravilhoso. Quando estou em São Paulo, fico hospedada na casa do meu pai na Cidade Jardim, onde escuto o canto dos passarinhos, que lembra a minha infância, e é lindo demais. Amo o Theatro Municipal, a Praça das Artes, o Teatro São Pedro e a Sala São Paulo. Tenho um carinho especial pelo bairro da Mooca, onde estudei teatro e dança. Escolher uma parte de São Paulo é desafiador demais. São tantas “vibes” diferentes!