Uma mesinha, papel, lápis, envelope. Tudo isso no meio da calçada do centro de São Paulo. Por ali, no compasso do relógio veloz da cidade que nunca para, pedestres vêm e vão com suas saudades escondidas no peito. Uma pergunta quebra o instante “qual foi a última carta que você escreveu?”. O convite a pensar sobre isso, e escrever uma nova correspondência, rouba alguns minutos do horário de almoço, ou preenche a solidão de quem vive em situação de vulnerabilidade e tem como morada aquele calçadão.
Transformar alguns instantes em uma conversa, escrita ou falada em volta da mesa, é a ideia do projeto Amor CorreSPondido, criado pela artista visual Carmen Garcia em parceria com a psicóloga Camila Ribeiro Costa Leite. A intervenção artística aconteceu quase todo o ano de 2024 na frente do Sesc 24 de maio, na Unesp e até nas ruas de pedra de Paraty durante a Flip. Em janeiro, estará de volta ao centro histórico de São Paulo. “O objetivo inicial era conversar com essas pessoas que estavam em uma situação de vulnerabilidade, mas ele ganhou uma proporção ainda maior colocando todo mundo na mesma mesa“, explica Carmen, em entrevista ao “Mulheres e a Cidade” desta semana. “Além de nós duas, sempre que possível convidamos outros artistas como propositores desta conversa para termos uma diversidade de linguagem“, diz.
Por ali, já foram escritas cartas para um marido preso, para um parente que se foi, para si mesmo e até para seu “eu” do futuro. A ideia é que todas sejam enviadas, mas algumas, como a de um dependente químico que participa sempre da ação, são apenas guardadas a pedido dele. “Ele senta, escreve muito, depois pede pra guardarmos com a gente, porque com ele vai se perder. Como todas as pessoas que estão nessa situação, ele tem pouco controle das próprias coisas“, conta Carmen. Para a artista visual, o Amor CorreSPondido traz a imprevisibilidade de encontros, de diálogos e de experiências no meio da cidade. “Existe uma transformação pessoal na experiência da carta e uma transformação coletiva na experiência da mesa. A força do projeto está na convivência dessas duas coisas ali”.
Graziela Salomão: O que é o Amor CorreSPondido e como surgiu a ideia do projeto?
Carmen Garcia: É um projeto independente que acontece em qualquer lugar onde eu andar com uma mesinha e dois envelopes. Começou como um projeto chamado “DePara” para o Museu de Língua Portuguesa voltado para a população em vulnerabilidade de moradia. Queria algo que fosse do universo das palavras, mas sabia que o letramento e uma proposta mais poética, nesse contexto, seria um pouco descabido, já que existem algumas necessidades anteriores a isso. Cheguei na ideia da escrita da carta, pensando que a palavra, para esse grupo, seria mais relevante na forma de se comunicar com alguém de quem se estava com saudade, uma vez que eles têm essa experiência do rompimento de vínculo. A Camila, psicóloga que atua na República através de uma linha da psicanálise da escuta na rua, se juntou para desenhar o projeto. Atuamos lá por um ano. Sai porque queria autonomia para levar a ideia para outros lugares. Foi aí que nasceu o Amor CorreSPondido, com essa definição de intervenção artística que sempre acontece no contexto da calçada. Tem gente que senta ali porque está voltando do horário do almoço e vai escrever uma carta em 3 minutos. Tem gente que mora ali na marquise do Sesc, chega antes porque sabe que vai ter a intervenção, e permanece depois porque mora ali. A imprevisibilidade da calçada permite que um diálogo aconteça entre as mais diferentes pessoas. Ele é enriquecedor para todo mundo. Sentar à mesa não é um favor que ninguém está fazendo para ninguém. Todo mundo está ganhando com esse diálogo.
GS: O nome do projeto traz o SP bem destacado. É uma relação com a cidade?
CG: Tinha a percepção de carta como qualquer coisa, uma correspondência de banco que fosse. Só que essas palavra vir logo depois de “amor” mudava seu significado. E, no meio dela, ter o SP fazia muito sentido pelo lugar onde eu estava: em uma mesa no meio da calçada da Luz, misturada em um encontro de vulnerabilidade. Isso é uma experiência muito da cidade. E em cada lugar é de um jeito. A calçada da Luz não é a mesma da do Sesc 24 de Maio. Na outra semana, ou se chover, aquele também não será o mesmo espaço que tínhamos encontrado antes. A gente já teve que interromper porque estavam roubando celular, ou porque o carro da polícia estava passando, mesmo sendo um lugar só de pedestre. Tem uma sensibilidade da rua que muitas vezes é interrompida por esse tipo de coisa. Essa é uma característica de São Paulo, então é um projeto que está muito conectado com a cidade.
GS: Você acha que as cartas têm esse poder de gerar um contato maior e representam uma conexão mais direta com a comunidade?
CG: Não, eu acho que é o poder da mesa. A carta fica como grande protagonista, mas acaba sendo quase uma desculpa para trazer as pessoas para a mesa. Se esse fosse o convite, as pessoas iriam achar estranho e falar que não. Mas ao perguntar “qual foi a última carta que você escreveu?”, o caminho é um pouco diferente. Só que a gente sempre acessa as pessoas pela metade porque não sabemos qual é a relação quando a carta chega ao destinatário. Essa carta se desdobra, entrando na casa de quem a recebe. É um movimento muito forte. Então a carta inicia a comunicação entre as pessoas, mas ela se finaliza de maneira invisível para nós. Acho que essa prática tem um tipo de desapego.
GS: Quem mais escreve as cartas: homens ou mulheres?
CG: No geral, são dois públicos muito diferentes. O que vem toda semana porque tem essa relação com a mesa e com a conversa, e nem sempre escreve uma carta. E o que passa eventualmente e pára para escrever. Ali na frente do Sesc quem participa é o público em situação de vulnerabilidade de moradia, que é 90% masculino. As mulheres que se sentam para escrever, no geral, não estão nesse contexto. Estão passando pelo centro porque trabalham ali, foram no Sesc ou comprar alguma coisa. Esse já é um marcador bem importante. Tem alguns casos bem específicos como o do A., que é uma criança que acompanha a mãe que tem uma barraca ali no centro, e vem toda semana. Tem o Z., que permaneceu naquele trecho muito anos e agora mora numa pensão. Ele tem mil páginas escritas, é um escritor obsessivo, foi em todas as oficinas porque quer sentar à mesa e escrever. Outro é o Z.C., desenhista, que também vem toda semana. Está em tratamento no Capes, contou pra psicóloga que ia às oficinas, e ela colocou o Amor CorreSPondido na carteirinha dele prescrevendo o projeto como um compromisso de tratamento. Outro é o C., que tem por volta de 30 anos e está numa situação muito pesada de uso de crack. Ele senta, escreve muito, depois pede pra guardarmos com a gente, porque com ele vai se perder. Como todas as pessoas que estão nessa situação, ele tem pouco controle das próprias coisas.
GS: Como o projeto pode estimular, através da carta, uma transformação para o presente e para o futuro?
CG: O ato de trocar cartas gera uma nostalgia porque, com as redes sociais e a comunicação instantânea, isso ficou mais volátil. Talvez a potência mais transformadora do Amor CorreSPondido esteja na mesa na calçada. Acho que existe uma transformação pessoal na experiência da carta e uma transformação coletiva na experiência da mesa. A força do projeto está na convivência dessas duas coisas ali.
GS: É muito simbólico trazer a mesa, que é esse lugar fixo, para compartilhar um espaço da rua, que é público, de passagem e que geralmente não nos é permitido ficar, principalmente grupos em situação de maior vulnerabilidade. O que você quer transmitir com isso?
CG: Acho que tem uma coisa muito interessante da arte que é um tipo de permissão que ela traz. Tivemos uma experiência com a polícia que, embora seja hostil na rua, nunca foi hostil com o nosso contexto porque existe um gesto que autoriza. Claro que há vários privilégios: nossas carteirinhas, o aval do Sesc, a nossa camiseta, o fato de sermos brancos. Tudo isso torna o que é indesejável mais suportável. Tem muitas coisas que, mesmo estranho, a gente está autorizado a fazer e levar, assim, uma experiência muito legal para quem participa. Mas isso serve como parceria de ações muito maiores e mais objetivas que precisam ser feitas, principalmente pelo poder público e pelos governantes. A gente proporciona esses gestos bonitos, mas que tem proporções muito diferentes das que transformam a cidade.
GS: Se você fosse escrever uma carta para a cidade, o que colocaria?
CG: Nesse contexto político que estamos, sinto um amor contraditório. Gosto muito dessa cidade, mas ela se faz de difícil. A última eleição é incompreensível para mim. É como uma amiga que está numa numa relação abusiva, você fala “sai”, mas ela diz que não é tão simples. Isso me deixa com muita raiva. Por que que as pessoas estão cômodas e indiferentes com essa realidade de quem está numa situação vulnerável? Acho que é um pouco isso que eu escreveria.
GS: Como a cidade te atravessa como mulher?
CG: Acho que em relação ao projeto, a institucionalidade me protege de alguma forma. Me sinto cômoda, segura ali na vivência dele. Diferente de quando estou voltando para casa. Acho que São Paulo tem uma complexidade de interseccionalidade tão grande que aprendi um pouco em quais contextos me sinto incômoda e evito eles. Sinto que pauto minha circulação pelos meus incômodos e, pensando em privilégios, opto por percursos cômodos. Mapeei de alguma forma como circular, entendendo que esse mapear tem a ver com usar o meu privilégio, inclusive financeiro, de circulação. Acho que outras questões me atravessam tanto ou mais do que a questão de gênero, assim que a minha relação com a cidade tem a ver com o contexto do espaço urbano e das pessoas da cidade.