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entrevista com Tatiana Vasconcellos

“Insisto em ser pedestre, em ser ciclista, e me exponho a riscos inadmissíveis porque a gente precisa poder andar segura por aí”

Jornalista fala sobre a sua relação com o espaço público e reflete sobre o que é sentir a cidade no corpo — das delícias de explorar novos lugares aqui e no mundo até a necessidade de vigilância em tempos brutos. Por Larissa Saram

A jornalista Tatiana Vasconcellos | Foto: Priscila Gubiotti

Tatiana Vasconcellos já foi pra gente uma referência importante. Hoje, a apresentadora do “Estúdio CBN”, programa de entrevistas, debates e notícias, é ainda mais: além de ser uma das jornalistas da atualidade que mais admiramos, Tati se tornou uma amiga querida, com quem experimentamos novas opções de bares em São Paulo e trocamos figurinhas sobre as nossas experiências como mulheres que adoram estar na rua.

Combinamos de fazer esta entrevista para o Mulheres e a Cidade durante um jantar. O lugar que escolhemos fica a apenas dois quarteirões da casa da Tati e, por isso, ela faz o trajeto a pé. É uma segunda-feira, o vento mais gelado dá notícias do outono e apesar de todas as mesas estarem ocupadas, há pouco movimento ao redor do restaurante. Eu pergunto para a nossa entrevistada se ela se sentiu confortável durante o caminho. “Já andei por aqui com muito mais tranquilidade do que ando hoje. Vim bem atenta o tempo todo”, ela conta enquanto se acomoda e cita uma conversa que teve com uma colega de estúdio durante a produção de “O Que as Mulheres Querem?”, novo podcast capitaneado pela própria Tatiana e que estreia hoje, 8 de maio. O papo era sobre o assombro cada vez maior de transitar por São Paulo.

Sentir a cidade no corpo, aliás, é um dos assuntos que a Tati mais curte falar – e escrever. Esse é um dos motivos pelos quais a convidei para estar aqui. Ela já publicou internet afora muitos textos sobre isso. Em breve, eles farão parte de uma coletânea, que está em fase de finalização e deve ser lançada nos próximos meses. Fico sabendo da boa notícia durante o nosso jantar.

Entre garfadas em massas saborosíssimas e goles de Coca-Cola Zero, Tati me respondeu sobre pedalar pela cidade, manter olhos de turista e viajar sozinha. Ela também relembrou a experiência de ter passado uma temporada em Lisboa, em 2022. É uma conversa informal, gostosa, pra inspirar. Puxe uma cadeira e sente aqui com a gente:

Há mais de 10 anos, Tati comprou uma bicicleta para fazer pequenos deslocamentos e pedalar pelas ciclovias de São Paulo

Larissa Saram: Qual é a sua relação com a rua?
Tatiana Vasconcellos: 
Eu adoro a rua. Ela me traz sensações contraditórias, de liberdade e de perigo. Concomitantemente.

LS: Esse alerta de perigo te impede de sair mais do que você gostaria?
TV: 
Eu vou com medo mesmo. Insisto em ser pedestre, em ser ciclista, e sei que me exponho a riscos inadmissíveis, justamente porque a gente precisa poder andar segura por aí.

LS: Sempre foi assim?
TV: 
Quando nasci, meus pais moravam num predinho que ficava numa rua sem saída. Cresci literalmente na rua, brincando na rua, jogando bola na rua, andando pela rua. Muito criança, ia à padaria para a minha mãe, aquela coisa que era possível nos anos 80. Também uso o transporte público desde muito cedo. Tô em circulação pela cidade desde muito cedo. Sempre fui rueira.

“Adquiri bicicleta antes de vender o carro, isso faz uns 10 anos. Não é que virei ciclista, que comecei a andar de bicicleta no lugar de andar de carro. É que era uma época em que andar de bicicleta em São Paulo era estimulado pelo poder público. Isso significa o desenvolvimento de políticas públicas que te permitiam fazer aquilo, como expansão das ciclovias, iluminação das ruas”

LS: E sempre transitou de bike também?
TV: 
Adquiri bicicleta antes de vender o carro, isso faz uns 10 anos. Não é que virei ciclista, que comecei a andar de bicicleta no lugar de andar de carro. É que era uma época em que andar de bicicleta em São Paulo era estimulado pelo poder público. Isso significa o desenvolvimento de políticas públicas que te permitiam fazer aquilo, como expansão das ciclovias, iluminação das ruas. Era uma época convidativa para quem, como eu, sempre gostou de pedalar, mas tinha um pouco de medo, porque o trânsito há 10, 15 anos, já era brutal, né? Tinha uma amiga que pedalava e usava a bicicleta como meio de transporte e ela treinava comigo. E aí comecei a fazer meus trajetos de bike. Então, sei lá, eu tinha que ir ao dentista, que era meio para os meus lados, ia de bicicleta. Dermato, que era pertinho, ia de bicicleta. Nesse momento, a minha relação com a cidade mudou demais.

Tati no estúdio que montou em sua casa, durante a temporada que viveu em Portugal em 2022

LS: Como?
TV: É que coincidiu também com uma época em que comecei a conhecer outras cidades do mundo. E me sentia tão cidadã fora daqui, no sentido de me sentir integrada à cidade mesmo, que ainda que eu não fosse de lá, ainda que não falasse aquele idioma e nunca tivesse estado naqueles lugares, o fato de usar o transporte público, andar bastante a pé na rua, turistar, me dava essa sensação de pertencer àquele lugar. E eram coisas que eu não fazia aqui, na minha rotina, porque se a gente não presta atenção nisso, a gente não faz o que é melhor, a gente faz o que é mais rápido. A gente faz o que é mais fácil, às vezes até o que é mais barato. Fui uma jovem adulta que queria morar em Londres sem nunca ter ido a Londres. Porque gostava da música, do clima, achava elegante. E fui a Londres pela primeira vez quando tinha 30 anos. Voltei realmente, assim, amando a cidade, e com vontade de reproduzir aqui aquela sensação. Nunca mais perdi isso de vista.

LS: Então ainda hoje consegue viver em São Paulo com esse olhar e esse ritmo de turista?
TV: Já fui melhor nisso e mais disposta. Entre 2012 e 2014, fui morar perto de uma estação de metrô, no mesmo prédio de uma amiga. Ficamos muito próximas. Era a época do Occupy New York, lembra? Falávamos que íamos fazer o nosso Occupy em São Paulo. A gente acordava, tomava café em algum lugar, pegava o metrô e ia fazer coisas. Ver uma peça num teatro obscuro do centro, visitar uma ocupação de um prédio por artistas na zona norte. Coisas que normalmente a gente não fazia. E por que não faz, né, meu? Tem 1 milhão de coisas para fazer nesta cidade. E por que não faz? Porque a gente tá sempre absorvido por outras coisas que não aproveitar a cidade. Produzir, produzir, consumir, consumir. Essa foi uma ótima época, fiz meu Bilhete Único e era orgulhosa de sair no fim de semana de metrô como se faz em Londres, como se faz em Paris, como se faz em Santiago, como se faz em Buenos Aires.

“Noticio violência há muitos anos, sei que ela tem CEP, cor, sei tudo isso. E me indigno na mesma medida. É muito chocante quando chega perto de você. É outro adjetivo, não é chocante. É um assombro. Sinto no corpo”

LS: E que é possível fazer aqui também de certa forma.
TV: Claro que é. Você precisa de disposição, mas isso é um hábito que se cria, eu acho. Vou envelhecendo e, a cada ano, Interlagos, onde acontece o [festival de música] Lollapalooza vai ficando cada vez mais longe. Mas não é tão diferente você pegar o metrô e ver o mesmo Lollapalooza no Chile. Eu já fui, é a mesma distância, você vai ter que andar o mesmo tanto. Mas você está no Chile, você acha legal. Aqui é longe pra caralho.

LS: Acha que é só falta de disposição?
TV: A violência nos afasta muito da cidade, né? Faz um mês, mataram um cara na esquina do lugar onde trabalho. Meio dia e meia, que é a hora que vou almoçar e faço o mesmo caminho, eu e tanta gente que trabalha no mesmo lugar que eu. Tava todo mundo bem assustado. No mesmo dia, saiu uma estatística mostrando que o bairro onde moro é o líder em assalto no ano. Que um cara tomou um tiro na padaria no mesmo dia em que meu irmão esteve lá comprando pão. Sou jornalista, sou velha, não sou ingênua. Noticio violência há muitos anos, sei que ela tem CEP, cor, sei de tudo isso. E me indigno na mesma medida. É muito chocante quando chega perto de você. É outro adjetivo, não é chocante. É um assombro. Sinto no corpo.

Registro da Tati em Lisboa, Portugal

LS: Aliás, isso, de sentir a cidade no corpo é um assunto que você fala bastante sobre, nas suas redes, nas suas colunas.
TV: Quando fui morar em Lisboa, senti meu corpo relaxar conforme o tempo ia passando e ia entendendo que naquele espaço, por uma série de razões, eu não estava em risco como costumo estar aqui. É muito diferente. Esse não é um discursinho “ai, Brasil é inseguro, Europa é segura”. Não é isso. Tem um monte de razões que explicam, mas isso é um fato. E é um fato porque é como me senti nos dois lugares. É um fato, pois empírico. Lá, a violência existe, acontece contra mulheres nas ruas, mas de outra maneira. A xenofobia, por exemplo. Você abre a boca para falar português do Brasil, você é maltratada de cara. E com mulher é pior. Lá tem outro tipo de violência muito praticada e pouco medida que é a violência doméstica. Então, eu, mulher, não estou sujeita aos mesmos riscos lá que eu estou sujeita aqui, mas há outros riscos, que eu só vou conhecer se eu viver e não tenho como aferir. Passei três meses andando na rua lá, isso tenho como aferir. E bati perna naquelas ladeiras, viu!?

LS: Você acha que esse tempo vivendo em Portugal te curou de alguma forma desse medo de andar na rua sozinha?
TV: Não me curou porque voltei para cá. E o meu corpo voltou a reagir como reage quando estou andando por aqui, exposto aos riscos que conheço ou que acho que conheço. As ruas de Portugal não me curaram, mas nas ruas de Portugal eu pude relaxar um pouco e aproveitar o contato com aquele lugar, me permitiu explorar aquele lugar do jeito que gosto, que é andando pelas ruas e tal, porque os caminhos eram menos hostis.

“Andar de bicicleta tem mais a ver com sentir a cidade do que com contemplar a cidade, que é o que, em geral, a gente pode fazer quando tá caminhando, porque não exige exatamente o mesmo nível de atenção. Mas também sinto a cidade quando estou a pé”

Graziela Salomão: Ainda falando sobre sentir a cidade no corpo, quando a gente entrevistou a Renata Falzoni, ela falou que vê a cidade quando caminha e sente a cidade quando está de bicicleta. Como é isso para você?
TV: Acho que andar de bicicleta tem mais a ver com sentir a cidade do que com contemplar a cidade, que é o que, em geral, a gente pode fazer quando tá caminhando, porque não exige exatamente o mesmo nível de atenção. Mas também sinto a cidade quando estou a pé. Vou enfiar aqui um outro elemento que não tem nada a ver com a relação com a cidade, mas andar de bicicleta é uma atividade física e isso produz hormônios no corpo que me deixam muito feliz. Se eu tô mal humorada, nervosa, e vou pedalar, melhora a minha vida. Muito. É pela química? É. Mas é também pelo sol que você toma, pelo vento na cara, pelo jeito como você vai vendo a cidade funcionar. Você não observa de fora, você sente ela funcionar porque você está dentro.

LS: Como uma exploradora da cidade, o que ainda te maravilha, te impressiona de um jeito bom?
TV: Se você me perguntasse para o mal, teria muitas respostas. Não ando numa boa fase com o São Paulo, talvez daqui a três meses eu tenha uma resposta ou três meses atrás eu tivesse uma resposta. Não ando achando que ela tá muito legal, apesar de ter conseguido hoje estabelecer uma rotina que me faz me sentir turista porque uso transporte público todo dia. Fiz a minha rotina de um jeito que cabe a cidade, que eu tô integrada nela. E eu adoro isso! Gosto de andar a pé, de pegar metrô. Você sente a cidade assim. O que vou dizer agora é menos sensação e mais idealizado: o que me emociona em São Paulo é o fato de que sempre vai haver um lugar que não conheço. Sempre vai ter um lugar em que vou pela primeira vez.

Tatiana Vasconcellos em Lisboa, Portugal

LS: Como que essa vivência de cidade constrói seu repertório?
TV: Acho que é a partir do que me desperta, das sensações que tenho na rua e do que vou buscar fazer com isso depois, seja ler alguma coisa ou seguir recomendações. Às vezes buscar conhecimento teórico para algo que vivi de forma empírica, prática ali, com os sentidos atentos.

LS: Que tipo de viajante você é?
TV: Eu já fui uma viajante mochileira, hoje evito, mas se precisar, estamos aí, acho que a coluna ainda dá conta [risos]. Sou planejada com tempos de poder me perder, com espaços para poder me perder. Não gosto de fazer mil cidades em pouco tempo. Gosto de ficar nos lugares, justamente porque gosto de sentir a cidade. Então, tento um pouco de planejamento e um pouco de espaço para perceber o que estou com vontade de fazer. Que pode ser, inclusive, nada.

LS: Sozinha ou com mais gente?
TV: Depende do lugar, da viagem, do propósito. Fiquei três meses em Lisboa e fiz muitas coisas sozinha. Tinha a minha rotina, como aqui que faço muita coisa sozinha. E foi bom. Na mesma medida que foi bom fazer rolês com todos os meus amigos que estavam lá.

LS: Sente diferença na forma como as mulheres viajando sozinhas são vistas?
TV: Sinto. Em Lisboa, prestava muita atenção nisso porque não tem mulher na rua. Só tem homem desfrutando do espaço público. Fui a uma tasca e contei: tinham oito homens. Quando entrei, eles pararam o que estavam falando para me acompanhar. Sentei no balcão, como eles. Pedi uma cerveja e um bolinho de bacalhau. E fiquei lá observando. Você acha que eles acham que eu tô ali fazendo a mesma coisa que eles? Ou seja, nada? Eles acham super estranho que tenha uma mulher ali fazendo a mesma coisa que eles.

“Viajar sozinha me ensinou que, infelizmente, a gente sempre tá sempre em risco. Não importa o lugar. Mas também me ensinou o quão pode ser bom experimentar outros lugares”

LS: Se pudesse resumir, o que viajar sozinha te ensinou sobre ser mulher?
TV: Viajar sozinha me ensinou que, infelizmente, a gente sempre tá sempre em risco. Não importa o lugar. Mas também me ensinou o quão pode ser bom experimentar outros lugares. Estar em outros lugares faz a gente pensar em como vivemos aqui  e a tentar melhorar esse nosso ambiente ao redor. Ou pelo menos votar direito para poder melhorar.

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