Cultura

entrevista com Renata Armelin

“O transporte está sempre cheio de poetas disfarçados de trabalhadores. A arte é parte ativa na vida do povo”

Fotógrafa e uma das co-fundadoras do coletivo “Poetas Ambulantes” fala da experiência de registrar a interação entre artistas, público e arte dentro do transporte público. Por Larissa Saram

Renata Armelin é fotógrafa e uma das co-fundadoras do coletivo “Poetas Ambulantes” | Foto: Acervo pessoal

Quando entra num ônibus ou trem para registrar as performances do coletivo “Poetas Ambulantes”, Renata Armelin sabe que vai fotografar mais do que intervenções artísticas – ou  “atentados poéticos”, como gostam de chamar carinhosamente os artistas do coletivo que há 12 anos faz leituras em ônibus, trens, metrôs e nas ruas de São Paulo. Renata vai preparada para a troca: “Em novembro, uma passageira quis participar e declamou, muito emocionada, um poema que havia escrito. Após a leitura, nos contou o motivo daquelas palavras sempre doerem: um antigo relacionamento a manteve em cárcere privado durante 17 anos. Disse que a escrita foi fundamental para sua recuperação e reestruturação de vida. Ela é uma sobrevivente e aquilo nos acertou em cheio!”, contou durante a nossa entrevista para esta edição do Mulheres e a Cidade.

Renata é co-fundadora do “Poetas Ambulantes” e foi através do coletivo que começou a dar oficinas, não só de fotografia, mas de poesia e prosa também. Apaixonada pela literatura periférica e marginal, está sempre presente nos principais saraus de São Paulo, como o “Slam das Minas – SP” – “mas quando há público, permaneço sempre atrás da câmera”, explica.

Nesta conversa, a fotógrafa nascida no Tucuruvi e moradora da Zona Norte até hoje, fala sobre a  interação com a rua e com as pessoas, o uso da fotografia como ponte para alcançar outros mundos e como exercita o olhar para encontrar mais beleza na cidade.

Registro dos “Poetas Ambulantes” em ação, no metrô de São Paulo, feito pela Renata | Foto: Renata Armelin / Reprodução Instagram

Larissa Saram: Você é uma das criadoras do coletivo “Poetas Ambulantes”. Como nasceu esse projeto?Renata Armelin: O coletivo nasceu em 2012, a partir de um feliz encontro no Sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. As poetas Carol Peixoto e Luz Ribeiro tiveram a ideia de fazer uma intervenção poética dentro dos ônibus, inspiradas no trabalho dos vendedores ambulantes de trem e ônibus na cidade de São Paulo. Mais outros poetas se juntaram e assim nasceu o coletivo. Me encantei e me ofereci para fotografar. Distribuímos poesias e livros nos transportes públicos, com a intenção de fomentar a leitura e estimular os passageiros a mostrarem seu lado poético e artístico. É um jeito de levar cultura, estimular o pensamento crítico e a consciência de classe, bem como fazer com que as exaustivas viagens de transporte público sejam um pouco menos desgastantes e mais divertidas. Seguimos na ativa até hoje, já são 12 anos de atentados poéticos!

“Nunca sabemos quem iremos encontrar e quais são as palavras e vivências que os passageiros irão compartilhar. Sempre há interações e carinho vindo por parte das pessoas que estão no vagão ou no ônibus”

LS: Você começou a sua atuação no coletivo registrando as intervenções poéticas e depois passou a ser também artista da palavra. Poderia falar um pouco das diferenças dessas experiências pra você enquanto está performando/ registrando? Eu quero dizer aqui que a perspectiva de interação com a rua e as pessoas muda, né!?
RA:
Desde pequena tive uma relação próxima com as palavras e a literatura, graças aos esforços de minha mãe em incentivar eu e meu irmão à leitura. Por muito tempo, as palavras foram meu refúgio. Antes de entender que já sofria de depressão na pré-adolescência, fazia uso delas para preencher o vazio que, desde então, me habitava. Na ausência de um tratamento psicológico adequado, a escrita se tornou o lugar onde podia dizer tudo o que sentia sem ser julgada, desacreditada. Ser apresentada à Cooperifa fez meu mundinho mudar. Descobri que existia um lugar onde toda e qualquer pessoa podia ir lá e falar dos amores, das lutas, das dores e serem ouvidas atentamente. Descobri que não estava só, que muitas das minhas aflições eram as de outras pessoas e pude perceber que a poesia seguia viva e não se constituía apenas de poetas clássicos que já faleceram. Apesar de todo esse envolvimento, sempre escrevi muito timidamente. Nunca declamei um poema na Cooperifa e em muitos outros saraus, declamar um poema meu na frente de um monte de gente sempre foi me colocar nua de corpo e alma para um público. E essa “nudez” me intimida bastante, mas independente disso, sem dúvida fui instigada e impulsionada e escrever mais e, de tanto ouvir/ler as outras pessoas, aprendi sobre a vida, as vivências alheias, o quão política é a poesia e também pude evoluir a qualidade técnica da minha escrita. Quando há público, permaneço sempre atrás da câmera.

Foto: Renata Armelin para @poetasambulantes / Reprodução Instagram

LS: Quais são as sensações que espalhar poesia pela cidade despertam em você? 
RA: Apesar de fazer isso há 12 anos, é sempre surpreendente e novo. Nunca sabemos quem iremos encontrar e quais são as palavras e vivências que os passageiros irão compartilhar. Sempre há interações e carinho vindo por parte das pessoas que estão no vagão ou no ônibus. Costumamos brincar que o transporte está sempre cheio de poetas disfarçados de trabalhadores. Já encontramos muitos talentos, artistas que muitas vezes não conseguem viver de sua arte, mas que mesmo assim fazem com que ela viva dentro deles. Independentemente de como, a arte é parte ativa na vida do povo.

LS: Se palavra é refúgio e poesia é política, o que é a fotografia para você?
RA:
A fotografia também é refúgio e política, mas também tem o potencial de ser uma ponte que me conecta às pessoas e suas mais diversas realidades.

“Fotografe a rua, consuma a rua, mas lembre-se sempre que do outro lado da câmera também há um ser humano, uma pessoa-universo feita de muitas histórias. Você tem responsabilidade sobre como retrata o mundo”

LS: Como você enxerga a importância de levar a poesia, que muitas vezes é um gênero tratado de forma elitista por alguns, para as ruas?
RA: Essa ideia de que a poesia está encastelada na academia é, dentre muitas coisas, preconceituosa e descolada da realidade. Poesia não é só Camões, trovas da Idade Média, grandes poetas e pensadores. O povo está sempre consumindo e produzindo poesia. O rap é poesia, música sofrência é poesia, o canto de louvor da igreja é poesia, o repente é poesia, o funk é poesia, a fotografia é poesia. A poesia está em tudo! É um fato concreto que independe da forma como você valora a poesia, seja ela boa ou ruim de acordo com tuas crenças. Inclusive, peço licença ao Bertolt Brecht para fazer uma pequena intervenção e dizer que “A poesia é o pão do povo”. Considerando isso tudo, acredito que o que o coletivo leva de mais precioso é o estímulo à poesia, a arte. E esse estímulo serve para que centenas de poetas do cotidiano mostrem um pouco de si e de suas histórias. Estimulamos as pessoas a se expressarem pelo que elas são e que, por muitas vezes, lhes falta esse lugar de acolhimento e de voz. A poesia sempre esteve no asfalto, ela sempre nasceu por entre suas rachaduras. E continuará nascendo, resiliente independente das intempéries. A diferença é que os que geralmente são valorizados e aclamados são aqueles que ocupam um lugar de privilégio.

LS: Por ser uma mulher trabalhando nas ruas das cidades, por quais experiências de violência já passou no espaço público?
RA: Fui assaltada e levaram minha câmera; já passei por assédio vindo de policiais durante a cobertura de manifestações; já me senti muitas vezes vulnerável por ser mulher e estar com uma câmera; já ouvi vários xingamentos machistas por estar fotografando a rua; já fui destratada por colegas de profissão que não agem da mesma forma com homens da área. Infelizmente, essas “pequenas” violências estão sempre presentes no cotidiano e se tornam, muitas vezes, mais acentuadas quando fazemos um recorte de gênero. Confesso que, há alguns anos, tenho saído pouco para fazer fotografias de rua, isso tudo se deve ao abandono, a situação precária e violenta que se encontra, em especial, o centro da cidade – local onde sempre fotografei e que sempre me rendeu muito material e história.

A fotógrafa Renata Armelin

LS: Que dica você dá para quem está em busca de encontrar com os olhos mais beleza na cidade?
RA: Acredito que uma das grandes conquistas de quem fotografa é conseguir desenvolver um olhar mais sutil, mais voltado às miudezas da vida cotidiana, a atenção aos detalhes que passam despercebidos pelos nossos olhos viciados na rotina. E para quem fotografa a rua, essa percepção é fundamental. Somos ensinados a sempre olhar para as coisas de forma megalomaníaca, sempre queremos registrar situações grandiosas, de grande impacto. E nisso, deixamos passar as pequenas belezas, os acontecimentos singelos, as sutilezas do mundo, coisas que tratamos com insignificância no dia a dia, mas que são esses pequeninos e despercebidos momentos que fazem as engrenagens da vida funcionarem. Outra coisa, é importante que tenhamos responsabilidade e humanidade enquanto fotografamos a rua. Isso evita com que fetichizemos algumas situações e pessoas que, muitas vezes, se encontram em situação de vulnerabilidade. Fotografe a rua, consuma a rua, mas lembre-se sempre que do outro lado da câmera também há um ser humano, uma pessoa-universo feita de muitas histórias. Você tem responsabilidade sobre como você retrata o mundo. Costumo dizer que minha câmera é uma ponte para o outro. Ela liga, cria vínculos – mesmo que de milissegundos de duração -, com as mais diversas pessoas e com outras tantas realidades. Conheci muita gente, ouvi muitas histórias, fui a muitos lugares, criei e estreitei relações através da minha câmera e de suas imagens. 


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