Cultura

entrevista com Pam Araujo

“Como artista, eu vejo a rua como uma possibilidade”

Co-criadora do Slam das Minas SP e integrante do coletivo Poetas Ambulantes fez da palavra em movimento a força criativa para elaborar um luto e hoje leva poesia para todos os cantos da cidade. Por Larissa Saram

“A poesia não salva o mundo. Mas salva o minuto”. Era 2015 quando a portuguesa Matilde Campilho disse essa frase no palco principal da Festa Literária de Paraty, a FLIP, e atingiu em cheio não só quem a assistia naquele dia. A frase extrapolou espaço e tempo, é comum encontrá-la rodando pelas redes sociais e promovendo comoções. Dez anos depois, é essa fala de Matilde que me veio à cabeça quando ouvi Pam Araújo contar sua trajetória durante a nossa entrevista para esta edição da newsletter Mulheres e a Cidade. 

Nascida e criada na zona leste de São Paulo, em Guaianazes, hoje moradora do Jardim São Luís, distrito na periferia da Zona Sul da cidade, Pam fez da palavra um refúgio diante da dor. Em 2009, após perder cinco familiares em um acidente, ela encontrou na escrita um caminho para elaborar o luto e transformar a tristeza em força criativa. Foi assim que sua relação com a poesia se fortaleceu — primeiro como desabafo, depois como voz que ecoa pelas ruas de São Paulo e acolhe principalmente as mulheres. Ela é uma das co-criadoras da Slam das Minas SP e faz parte do Poetas Ambulantes, coletivo que realiza intervenções poéticas no transporte público.

Nessa de levar a poesia falada pela cidade, as palavras em movimento de Pam Araújo saíram da boca e foram parar no papel. A lista é grande: as zines “Fotossinta-se” (2012) e “servielas” (2013) e os livros “Buraco” (2017, Editora Baderna) e “Hídrica” (2021, Philos). No finzinho de 2024, saiu “Mulheres História” (Baderna), antologia assinada pela Slam das Minas e que se debruçou na vida e obra de Maria Firmina dos Reis, Ana Cristina Cesar e Maurinete Lima. A seguir, ela dá mais detalhes sobre o processo de escrita desse trabalho mais recente e fala sobre como a presença no espaço público faz do seu trabalho ferramenta de transformação.

Larissa Saram: Como e quando a poesia entrou na sua vida?
Pam Araujo:
Escrevo desde pequena, sempre utilizei a palavra para desafogar, mas essa força da poesia chegou mais para frente, em 2009, quando aconteceu um acidente e cinco pessoas da minha família vieram a falecer. A partir disso comecei a utilizar a escrita para desabafar, colocar as coisas que sentia, para uma mudança no meu sentimento. Em 2011, estava voltando do meu trabalho e encontrei um sarau que acontecia ali no Anhangabaú. E em 2012 conheci os Slams, as batalhas de poesia. Daí para frente participei de muitos.

LS: Foi nessa época que organizou a Slam das Minas SP?
PA
: Foi em 2016 que, junto com outras parceiras, a Luz Ribeiro, Mel Duarte e Carolina Peixoto, idealizamos e organizamos essa batalha. E em 2019 passei a integrar o Poetas Ambulantes, um coletivo que faz e distribui poesias pelos transportes da cidade. Eu já colava com eles desde 2014, mas depois fui fazer parte, mesmo.

“Se a elite ainda acredita
que existe um lugar específico
da poesia, ela está em 1800.
A gente tá criando outras
narrativas. Acho que não
é levar a poesia, sabe?
A poesia está sendo feita
na periferia. Ninguém
precisa mais levar”

LS: Qual é a sensação de espalhar poesia pela cidade?
PA:
Com a Slam das Minas, a gente vai lá no palco e as pessoas estão esperando por aquele momento, né? Estão esperando pela poesia. Isso me traz uma liberdade, uma potência e uma possibilidade também de ser ouvida, que para mim é muito importante, me faz melhor e me faz diferente também. Já com Poetas Ambulantes é um outro lugar, porque a gente fala poesia no metrô, no ônibus, onde as pessoas não estão esperando. Já tive momentos em que o poema foi superbem recebido, a pessoa ri com os olhos, aceita aquele poema no coração dela, o que é muito mágico. Mas tem também caras feias, já recebemos, óbvio. Na maioria das vezes é libertador fazer poesia nesse espaço: a pessoa tá voltando do trampo, tá com o dia cheio e, de repente, ouve uma poesia. A gente faz uma curadoria pensando em tratar de assuntos, mesmo os pesados, de forma leve. Então, traz uma gracinha ou traz um um poema que fala de uma coisa que é importante para aquela pessoa ouvir, mas de uma maneira diferente. É uma liberdade diferente.

Pam Araujo em uma apresentação no Theatro Municipal com o coletivo Poetas Ambulantes | Foto: Renata Armelin

LS: Ecomo você enxerga a importância de levar a poesia, que muitas vezes é um gênero tratado de forma elitista, para as ruas?
PA:
Acho que, apesar de sim, ainda ter espaços onde a literatura é tratada dessa forma, eu não frequento esses lugares, esses espaços onde a poesia é vista desse pedestal. Eu me encontrei mesmo na poesia vinda de pessoas que são da periferia. E a gente faz poesia sem precisar desse recorte. Em 2022, fomos indicadas no Eixo Inovação do Prêmio Jabuti. No ano retrasado, quem ganhou o livro do ano foi Luísa Romão, que é uma poeta que vem do Slam. E em 2024, na categoria conto, o único livro independente indicado era de uma superfrequentadora da cena, da Slam das Minas, a Jô Freitas. Então, eu acho que ficou pequeno, sabe? Se a elite ainda acredita que existe um lugar específico da poesia, eles estão em 1800. A gente tá criando outras narrativas. Acho que não é levar a poesia, sabe? A poesia está sendo feita na periferia. Ninguém precisa mais levar.

LS:O ambiente doméstico é, historicamente, o espaço destinado para as mulheres, principalmente aquelas que não precisavam trabalhar. Como enxerga a força que a Slam das Minas e Poetas Ambulantes têm nesse sentido?
PA:
Posso falar mais da Slam das Minas nesse caso, por conta do recorte de gênero e tal, Poetas Ambulantes já não tem isso. Acredito que a coletiva traz uma outra possibilidade, né? Hoje a Slam das Minas é mais que consolidada, e a gente sabe que ali vai ser seguro para você, mulher, mulher trans, não-binária, enfim, chegar lá, falar o seu poema e não ser discriminada. Você não vai ser apontada, você vai ter um espaço seguro para falar o seu texto. Por anos, muitas mulheres iam na Slam das Minas, falavam um texto, sei lá, de amor sapatão, de um momento de mudança de gênero ou outros assuntos específicos e que era falado só ali, não era falado em nenhum dos outros Slam Mistos que acontecem na cidade. Muita gente diz: “Ah, vamos dar voz”. Isso não existe, todo mundo tem a sua voz. Os espaços é que nos faltam, os ouvidos é o que nos faltam. A Slam das Minas vem para isso, é um espaço seguro onde você pode falar o seu texto e ter ouvidos atentos. É nessa força que a gente acredita.

“A minha relação com
o espaço público é essa
relação de entender essa
tela gigante, de ruas e histórias
e poesias que podem ainda
vir a ser criadas e também
esse lugar ruim, violento,
que pode me atingir a
qualquer momento”

LS: Como mulher e artista, qual é a sua relação com o espaço público?
PA:
Nossa, complexa. Sou uma moradora da periferia, então o território é algo que modifica o dia a dia. Como artista, vejo a rua como uma possibilidade. A rua é onde a gente vê tudo e todos, estamos ali. Essa transversalidade, de você estar nos espaços e isso te afetar, acho que é algo que não tem como ser diferente. A rua incomoda, mas ela incomoda as mulheres em lugares mais específicos, em lugares diferentes. E esse incômodo por ser mulher, por ser artista, muitas vezes vira poesia, vira criações e também vira xingamentos. Vira treta na rua (risos). Mas a minha relação com o espaço público é essa relação de entender essa tela gigante, de ruas e histórias e poesias que podem ainda vir a ser criadas e também esse lugar ruim, violento, que pode me atingir a qualquer momento.

LS: Li num post seu que a poesia te deu asas e fez você voar para lugares que nem imaginava. Quais lugares são esses?
PA: Nossa, inúmeros. Com a poesia, consegui viajar para estados que não conhecia. Estive em vários lugares, no Ceará ,no Rio Grande do Norte, no Paraná, em Tocantins, em Belém. A poesia me deu a possibilidade de criar uma Pâmela diferente, ela me deu essas asas. Fez eu ir para lugares inimagináveis, publicar três livros. Tem tudo isso.

LS: Você lançou, no finalzinho do ano passado, junto com outras mulheres, a terceira antologia da Slam das Minas, o livro “Mulheres História”. Poderia contar mais sobre esse projeto?
PA:
Esse projeto nasce de uma ideia que a gente sempre quis na verdade, que é poder estudar vida e obra de escritoras que não são muito divulgadas, conhecidas. A gente se encontrou durante o ano inteiro para falar dessas três escritoras, Maria Firmina dos Reis, Ana Cristina César e Maurinete Lima. E ficamos aí, uns 4 meses, mais ou menos, em cada uma das escritoras. Lemos os livros, debatemos, falamos da vida delas. Então, a gente precisou escrever sobre ela, sabe? Cada uma de nós, da Slam das Minas, eu, Carolina Peixoto, Poliana Herica e Ibu Helena, nós escrevemos esses poemas a partir desse tempo debruçado em cima dessas escritoras. E foi pela necessidade de conhecer a vida dessas mulheres que inflamou, e ver o quanto elas são importantes e foram apagadas da história que a literatura tem no nosso país. Além de nós, que escrevemos os poemas para cada uma delas, a gente convidou outras poetas para escreverem também. Então tem texto da Roberta Estrela D’alva, a Luz Ribeiro; o prefácio é da Ryane Leão, a orelha é da Midria.

“As mulheres que vieram
antes e que construíram
essa cidade mostram para
gente a força que tiveram
para poder sair, trampar,
faxinar. As da nossa própria
família também nos mostram
isso, essa construção de mãos
e de ideais que vem de mulheres,
que pensam a coletividade
e que seguram a casa para
os outros criarem essa cidade”

LS: Como você acha que a história daquelas que vieram antes de nós pode nos ajudar a construir cidades melhores para mulheres e pra todo mundo?
PA: Acredito que tudo o que vem antes não deve ser descartado. Todas as experiências são válidas. As mulheres que vieram antes e que também construíram essa cidade mostram para gente a força que tiveram para poder sair, trampar, faxinar. As da nossa própria família também nos mostram isso, essa construção de mãos e de ideais que vem de mulheres, que pensam a coletividade e que seguram a casa para os outros criarem essa cidade também – e decidirem, inclusive, pelo nosso pelo nosso futuro de forma errada. O que vem antes pode nos ajudar quando a gente enxerga o que éramos, como estamos e o que queremos. Essa vivência anterior nos mostra o que não aceitamos mais. Conseguimos enxergar claramente isso justamente porque essas mulheres vivenciaram e lutaram. Acho que a história da cidade é através de mãos de mulheres, construindo e segurando a barra. E o futuro é feito da mesma coisa porque nós aqui estamos também criando tudo isso.

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