
Livros nos encontram nos momentos certos. Aqueles de abrir novos horizontes e nos fazer pensar sob outras perspectivas. Foi assim quando cruzamos com “Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres” (Fósforo). Ao sermos atravessadas pelas andanças da escritora estadunidense Lauren Elkin, de mãos dadas com escritoras como Virginia Woolf, Joan Didion, Jean Rhys e tantas outras que ela traz nas páginas do livro, percebemos que não estávamos sozinhas. Ao contrário, nosso desejo de ocupar a cidade e transformá-la em um espaço amigável para nossos corpos era um legado que trazíamos dessas mulheres e de tantas outras anônimas. “Qualquer pessoa que se sinta deslocada na cidade, que sinta que a cidade não foi construída para ela, que se sinta ameaçada no espaço público, mas que ouse recuperar o seu lugar de qualquer maneira, é uma flâneuse”, garante Lauren durante nossa conversa. Se pensarmos nisso adicionando à questão de gênero, também a de raça, a de cor e a social, a equação é ainda mais complicada.
Mesmo assim, “Flâneuse” nos abriu as portas para essa descoberta universal de que as mulheres sempre estiveram nas ruas. E que o espaço público representa muito de nós e de nossos questionamentos: fala sobre direitos nem sempre tão iguais, sobre comportamento, sobre o modo de vida que desejamos e sobre cultura. A escritora estadunidense teve essa mesma sensação ao sair de Long Island, sua cidade natal nos Estados Unidos, e chegar em Paris para estudar. A capital francesa é um convite físico ao caminhar. Entre os passos que a levam por Paris e por outras cidades como Londres e Tóquio, Lauren mescla textos e vivências de escritoras e cineastas famosas com suas obras, mostrando o espaço conquistado por elas, mesmo apagadas da história das cidades.
Por isso, para estrear essa nova newsletter, a primeira entrevista precisava ser com Lauren Elkin. Encontre seu café preferido ou até mesmo o gramado de um parque da sua cidade e aproveite essa conversa que abre a nossa comunidade “Mulheres e a Cidade“. Sim, a cidade somos nós e nós somos a cidade. Vamos juntas?
GRAZIELA SALOMÃO – Quem são as flâneuses?
LAUREN ELKIN – Talvez todas nós? Qualquer pessoa que se sinta deslocada na cidade, que sinta que a cidade não foi construída para ela, que se sinta ameaçada no espaço público, mas que ouse recuperar o seu lugar de qualquer maneira, é uma flâneuse. Meu livro defende a flâneuse como uma figura de resistência e disruptiva, e não uma versão feminina de uma figura masculina bem conhecida, o flâneur, o andarilho. Há um elemento daquele amor de se perder na cidade, de ser espectadora do teatro da vida moderna, mas a flâneuse sabe que nunca poderá ser totalmente invisível como um flâneur pode ser. Então, ela assume o comando de qualquer maneira.
GS – Como você se sentiu quando descobriu que era uma flâneuse?
LE – Uma mistura de libertação e ansiedade – libertação porque significava que eu poderia ser quem quisesse na cidade, mas ansiedade porque nunca consigo me sentir 100% à vontade na rua. Sempre me sinto um pouca vigiada.
“Meu livro defende a flâneuse como uma figura de
resistência e disruptiva, e não uma versão feminina de
uma figura masculina bem conhecida, o flâneur, o andarilho.”

GS – Como você acha que a cidade impacta a vida das mulheres? E como as mulheres impactam a vida na cidade?
LE – Só posso falar das cidades que conheço bem. Paris, uma cidade muito bonita e o meu lugar preferido no mundo, é cheia de ruas estreitas e de paralelepípedos e escadarias. Muito romântico e ótimo para diversão, mas se tiver um carrinho de bebê, você está fodida! Então as mães vão usar a cidade de uma forma muito particular. Uma coisa que adoro ver em Londres, onde moro agora, por exemplo, são placas antigas de salões de chá anunciando que há banheiros femininos no local – vi uma recentemente, mas não me lembro onde. Era uma boa tentativa de atrair uma clientela feminina, prometendo a elas que poderiam fazer xixi lá! O que era, obviamente, uma enorme barreira para as mulheres saírem em público, já que não tinham instalações necessárias para se sentirem confortáveis. Qualquer pub que você frequentar terá um banheiro masculino, os do Liverpool Philharmonic Dining Rooms, por exemplo, são listados como Grau I, o que significa que são um local histórico incrivelmente importante, com seus banheiros e pias de mármore. O banheiro feminino daquele pub foi construído há apenas meio século e claramente não é um local histórico protegido. Então são essas pequenas coisas que, claramente, são importantes.
GS – Você usa suas experiências em diferentes cidades no livro. Se pensar nos impactos que elas trouxeram para você, quais seriam os mais fortes e transformadores?
LE – Mudar para Nova York, e depois para Paris, e todas as outras cidades em que morei, desacelerou o ritmo da minha caminhada. Já até perdi o destino e matei o tempo em cafés pelo caminho. Tudo isso me permitiu realmente olhar ao redor, perceber as pessoas e as coisas, o que estava acontecendo e a forma como o mundo é organizado. Acho que este foi o começo para eu ser uma pensadora crítica, além de uma pessoa da cidade: só quando você começa a desacelerar e a olhar ao seu redor é que pode começar a fazer perguntas. Por que as coisas são como são? Como elas são para outras pessoas? Como chegaram a ser assim? Como podem ser diferentes? Também podem ser pequenas coisas, microcosmos nos quais presto atenção porque morei em cidades. Estar em Londres agora me fez entrar em sintonia com o mundo natural de uma forma que nunca fiz antes. A natureza está em toda parte nesta cidade, é muito mais verde do que qualquer outro lugar onde já morei, e me pego prestando atenção em coisas como árvores, plantas, flores e pássaros – ecossistemas frágeis em terrenos abandonados, ou parques infantis, ou pequenos jardins. Não é por acaso que me tornei muito mais uma ativista climática desde que estou aqui.
GS – Como a experiência da cidade impacta na sua escrita?
LE – Desacelerar e começar a perceber as coisas ao meu redor me deu um ponto de partida como escritora. Comecei a manter um diário e anotar o que via nos cafés, pedaços da vida quotidiana, especulações e, claro, longas dissertações sobre qualquer caso amoroso em que estivesse envolvida. Quando mais tarde encontrei o trabalho de escritoras como Georges Perec ou Jean Rhys, vi um caminho a seguir para a minha própria escrita, que poderia ter essa mistura do mundo urbano real e da experiência individual. Estou prestes a publicar um romance que comecei em 2007 que deve ser a apoteose deste tipo de escrita que a cidade me deu — chama-se “Scaffolding” [sem tradução para o português] e se passa no mesmo apartamento em Paris de 1972 aos dias de hoje.
GS – Quais autoras mais te influenciaram a se tornar uma flâneuse?
LE – Definitivamente Jean Rhys, mas também Virginia Woolf, cujo ensaio “Street Haunting” é uma obra-prima no gênero da escrita urbana. É tudo sobre o amor dela por passear pela cidade no início da noite nos meses frios, o que também adoro, e acabei de fazer sozinha. Ela estava descrevendo como inventara uma tarefa para si mesma apenas para ter uma desculpa e sair para passear em Londres. Eu tinha uma tarefa real a cumprir, mas poderia tê-la feito a qualquer hora do dia. “A hora deveria ser à noite e a estação inverno, pois no inverno o brilho champanhe do ar e a sociabilidade das ruas agradecem. Não somos então insultados, como no verão, pelo desejo de sombra, solidão e ar doce dos campos de feno. A hora da noite também nos dá a irresponsabilidade que a escuridão e a luz das lâmpadas conferem. Já não somos nós mesmos.” Woolf evoca a atmosfera da cidade em uma determinada hora do dia e a maneira como ela nos transforma do cotidiano do trabalho em membros daquele “vasto exército republicano de vagabundos anônimos, cuja sociedade é tão agradável depois da solidão do próprio quarto.” Para mim, ela capta aquela pura alegria de caminhar e observar, que é o hábito da flâneuse na cidade.
“Os espaços podem ser horríveis, criados até mesmo
contra nós, mas talvez possamos lutar contra esse ambiente
e tentar refazê-lo para os nossos próprios usos”
GS – As cidades ainda não são amigáveis para as mulheres. Na sua opinião, como podemos mudar isso?
LE – Esta é uma pergunta difícil, porque não sou uma planejadora urbana. Melhorar a iluminação pública, deixar os bancos mais baixos nos pontos de ônibus ou estações de metrô, deixar as ruas mais fáceis para se andar – ou torná-las amigáveis para os pais, ter mais lugares para as crianças brincarem, calçadas mais fáceis para empurrar os carrinhos. Mas, na verdade, a raiz do problema é a masculinidade e o poder, e as formas como os homens são educados para pensar que têm de desempenhar seu gênero de uma forma particular, demonstrando domínio sobre as mulheres e outros homens. Provavelmente é ingênuo da minha parte dizer, mas a minha sensação é que as pessoas são responsáveis por criar a atmosfera num determinado espaço urbano, então, se elas colocam uma energia ameaçadora, aquele espaço será ameaçador. Não sei se algum dia conseguiremos erradicar a violência contra as mulheres, mas um grande passo para isso deve vir da criação de homens mais sensíveis – da eliminação da violência no lar, do abandono, da negligência, do consumo de drogas, quaisquer que sejam as origens dessa alienação social. Tudo sempre começa em casa.

GS – Algumas grandes cidades, como São Paulo, podem causar mais medo do que desejo de explorar o espaço público. Qual seria o seu conselho para uma mulher que deixa de sair por medo da violência?
LE – É uma pergunta muito boa. Gostaria de saber. Acho que provavelmente cabe aos governantes, e não às mulheres individualmente, pensar em como tornar as cidades mais inclusivas. Acho que, enquanto isso não acontece, a mulher precisa ser mais cuidadosa mesmo, explorar a cidade sem correr riscos – mas também tentar apreciar a beleza que pode encontrar no dia a dia. Os espaços podem ser horríveis, criados até mesmo contra nós, mas talvez possamos lutar contra esse ambiente e tentar refazê-lo para os nossos próprios usos. Talvez.
GS – A pandemia mostrou o lado ruim de ficar trancado em casa. Existe agora um sabor diferente em poder redescobrir a cidade? Você acha que as pessoas passaram a valorizar mais andar pelas ruas depois desse período triste da nossa história?
LE – Espero que sim! No final de 2021, quando ainda não tinha acabado a pandemia, mas os grandes lockdowns já haviam terminado (ao menos em Londres), publiquei um livro que escrevi no meu iPhone durante meu trajeto de ônibus em Paris entre 2014-15 e a recepção foi mais entusiasmada do que um livro sobre esse assunto teria sido em tempos normais. Todo mundo estava ansioso para estar juntos na cidade novamente, compartilhando o ar em pequenos espaços sem se preocupar se isso significaria uma sentença de morte para nós, para as pessoas que amamos ou para quem não conhecíamos. Para quem estava disposto a aprender, esse momento nos ensinou uma lição sobre como viver juntos de forma ética, como cuidar uns dos outros, como pensar em nós mesmos como uma rede humana de pulmões e vasos sanguíneos, e que as nossas próprias ações podem ter um impacto no corpo de outras pessoas. Espero que não nos esqueçamos dessa lição.
“A cidade é um lugar de grande libertação, assim como o feminismo.”
GS – Vivenciar a cidade também é um ato feminista?
LE – Penso que estar aberta à cidade talvez não seja intrinsecamente feminista, mas certamente um ato de envolvimento ativo, que pode ter uma carga política positiva. Para mim, a cidade é um lugar de grande libertação, assim como o feminismo.
GS – Você fala sobre cidades do coração. Qual é a sua? E o que há de especial nela que outras não têm?
LE – Paris é, sem dúvida, a cidade do meu coração. Morei lá por mais de 20 anos e voltarei assim que as circunstâncias permitirem. Não sei o que me impressiona em Paris – a qualidade da luz, a beleza dos edifícios, a forma como a cidade está organizada, como é fácil e agradável andar a pé – mas também é, provavelmente, porque tenho uma longa história lá, uma vida inteira de alegria, melancolia, desespero e surpresa e muito, muito trabalho duro. A cidade parece inserida na minha vida, completamente ligada à minha sobrevivência e produtividade. Cada dia que não passo lá parece um desperdício de vida.