Lifestyle

entrevista com Gaía Passarelli

“Para São Paulo se tornar mais humana, precisamos resolver um monte de coisas pras mulheres da cidade inteira”

Referência quando o assunto é flanar sozinha dentro e fora de São Paulo, a jornalista divide suas experiências, ranços e sonhos em relação a maior cidade do mundo. Por Larissa Saram

A jornalista, apresentadora e criadora de conteúdo digital, Gaia Passarelli | Arquivo pessoal

É difícil falar sobre o tema viajar sozinha sem mencionar Gaía Passarelli. Em 2016, a jornalista lançou “Mas você vai sozinha?” (Globo Livros), onde reúne deliciosos relatos de suas viagens ao redor do mundo e dicas para quem tem o desejo de fazer as malas e empenhar uma aventura solo. Rapidinho, rapidinho, o livro caiu no gosto de muita gente e é até hoje uma referência para mulheres viajantes sem companhia.

As histórias que Gaía relata no livro rolaram principalmente enquanto ela era VJ na MTV (#saudades) e, depois, escrevendo para revistas de turismo. Mas antes disso, ela já desdobrava mapas e dividia suas incursões por outros continentes no blog “How to Travel Light”.

Nativa digital, ela embarcou na onda das newsletters assim que as viagens além-São Paulo, cidade onde nasceu e mora, foram diminuindo. E, de novo, se destacou. Assim nasceram “Paulicéia”, projeto que pensava ​​a cultura em São Paulo durante a pandemia, patrocinado pelo Substack, e o “Tá todo mundo tentando”, boletim semanal de crônicas e dicas de coisas legais para fazer na cidade – e que está bombando, tem mais de 15 mil assinantes. Em breve, os textos da news migrarão da tela para o papel. Ainda no primeiro semestre de 2024, Gaía lança pela Editora Nacional o livro “Tá todo mundo tentando”, uma reunião do que melhor publicou na internet + material inédito. 

Com esse currículo brevemente descrito nos parágrafos acima, já deu para sentir que Gaía é a personificação do “Mulheres e a Cidade”. Estávamos ansiosas para conversar com ela e entender a relação que estabeleceu com as ruas de São Paulo e do mundo. O papo de mais de 2 horas – éramos três jornalistas falando de um tema em comum – rolou num café, em Santa Cecília. E os melhores trechos você lê a seguir:

Gaía Passarelli, no trem entre Cuzco e Águas Calientes, no Peru, em 2015 | Reprodução Instagram

Larissa Saram: Viajar faz parte da sua vida desde criança. Como começou essa relação?
Gaía Passarelli:
Meu avô era um daqueles casos clássicos de velho italiano, que cresceu na pobreza, prosperou na vida adulta e quis prover para as netas o que não teve. E ele adorava viajar! Levava eu e minha irmã em viagens de carro. Fomos conhecer os Vinhedos no sul do país, as cidades históricas de Minas, fomos para o Amazonas, para Fortaleza, para o Pará. Meus avós faziam também viagens sem a gente, só os dois, e sempre que voltavam, era uma coisa meio mágica, meio maravilhosa, porque traziam bonecas, chocolates. Então, eles colocaram na minha cabeça essa coisa da viagem como algo para se realizar. 

LS: E o desejo de viajar sozinha, veio da onde? 
GP: Sempre gostei de fazer coisas sozinha, sou uma pessoa introspectiva desde criança. Era comum eu sair e fazer grandes circuitos a pé pela fazenda dos meus avós, no Mato Grosso, na casa deles da Mantiqueira. O viajar sozinha foi pintando conforme fui tendo oportunidades, mas não era consciente. Acho que o primeiro convite que tive para fazer uma viagem solo foi numa época em que estava na MTV, mas sem programa no ar. Fui passar uma temporada em Londres para fazer uns cursos –  saudades dessa época, aliás (risos) – e articulei com uma galera daqui do Brasil, que fazia roteiros de viagem. Eles fecharam um para mim que ia de Londres até o norte da Escócia de trem, parando em várias cidades. Em nenhum momento pensei “ah, vou ser essa mina que viaja sozinha”, assim como não passava pela minha cabeça “não vou porque não tem ninguém para ir comigo”. 

“Sempre tive medo, nunca tive a ilusão de que o mundo é meu quintal e posso fazer qualquer coisa”

LS: E você não sentia medo?
GP:
Em alguns momentos rolou um “putz, vou fazer essa trilha, será que é ok?” ou “quero ir até esse lugar e é meio ermo, será que tudo bem ir sozinha?”. Sempre tive medo, nunca tive a ilusão de que o mundo é meu quintal e posso fazer qualquer coisa, mas até aí sou nascida e criada em São Paulo, cresci nos anos 1990 numa cidade violenta. Sempre estive atenta para o que está acontecendo ao meu redor, não sou besta. 

LS: Em qual país se sentiu menos segura?
GP:
A América Latina é violenta, machista, mas a Índia é outro rolê, as mulheres não podem fazer um monte de coisa. Fui para lá em 2016, tinha acabado de acontecer o estupro coletivo em Nova Déli, dentro de um ônibus. Lembro de pesquisar na internet “dicas de segurança para mulheres sozinhas na Índia” e aparecerem informações do tipo “coloque uma aliança falsa no dedo para acharem que você é casada e não mexerem com você”. Cheguei lá e estava tudo bem, mas o tempo inteiro pensava, por exemplo, se era seguro fazer certos trechos de trem. No meu segundo dia, estava flanando em Trivandrum, que é a capital do estado de Kerala, no sul da Índia, numa região do bazar da cidade, que é o nome que eles dão para ruas de comércio. Empolgada com as lojas, com produtos que nunca vi, fui andando e depois não sabia mais voltar para o terminal de ônibus. Uma moça saiu de dentro de uma loja, me abraçou e foi me levando. Perguntei para onde estávamos indo e ela disse “para o lugar onde os turistas ficam”. Ela percebeu que eu estava perdida e me ofereceu ajuda antes de cair em algum golpe, entrar num táxi, ser estorquida. Só aceitei porque era uma mulher. Esse foi um padrão que se repetiu durante a viagem, de pintar umas mulheres assim tipo “vem cá, meu anjo, você não é daqui, né? Vou te ajudar”. 

LS: Em 2016 você lançou o “Mas você vai sozinha?” (Globo Livros), onde conta algumas das suas histórias viajando o mundo sem companhia. Ele é até hoje uma referência para mulheres que têm vontade de se aventurar da mesma forma. Podemos dizer que esse é um livro-manifesto?
GP:
Esse é um livro sobre possibilidades, em nenhum momento foi a minha intenção ser panfletária, no sentido de que as mulheres têm que viajar sozinhas. É sempre complicado cair na coisa do “tem que”. Não acho que toda mulher tem que viajar sozinha, só se ela quiser. Se ela quer, aí ela tem que. Mas se ela não quer, tudo bem, uma mulher não é menos fodona ou bem resolvida porque não vai. Acho que o ponto está no “eu gostaria muito de fazer uma viagem sozinha, mas o meu namorado não deixa, mas a minha mãe tem medo. São esses “mas” que eu achava que o livro podia resolver. Tem a questão da insegurança, ela é real e não dá para tirar da equação. No momento em que você se coloca para vencer esse medo, de fazer as viagens nos seus termos, está se colocando numa posição mais vulnerável, porque uma mulher sozinha ainda é vista como uma situação a ser aproveitada, e isso não mudou desde a publicação do livro.

LS: Você acha que a pergunta que virou título do livro ainda é feita com frequência para as mulheres?
GP:
Acho que essa pergunta nunca vai passar. Quem deu a sugestão foi a editora que trabalhou comigo, a Melissa Duarte. Era o nome de um post do blog que eu tinha na revista TPM. Tinha escrito que não é só mulher que está viajando que ouve isso, mas a menina que tá indo para faculdade, para o cinema… Mulheres de qualquer classe social, idade. Não tem a ver com ser pobre, rica, branca ou negra. É o tipo da pergunta que não fazem para um homem.  

“Numa viagem, uma mulher bem informada é uma mulher mais segura”

LS: Qual é a dica mais preciosa que você dá no livro?
GP:
Se informar muito sobre o lugar para onde você vai. Numa viagem, uma mulher bem informada é uma mulher mais segura. Não acredito em organizar tudo da viagem o tempo todo, mas também não acredito numa viagem totalmente solta. Saiba, pelo menos, onde está chegando, onde vai passar a primeira noite, como funciona táxi, transporte público. Isso vai evitar golpes de taxistas, por exemplo, que é uma coisa que rola no mundo todo, ou que você se coloque em situações de pouca segurança. Essas dicas valem também para andar por São Paulo.

LS: Como essas viagens todas que você fez ao longo da sua vida impactaram na mulher que você é hoje?
GP:
Impacta de um jeito positivo, no sentido de criar uma curiosidade pelo mundo ao redor, sempre entendendo que não é possível conhecer o mundo todo. A gente tá presa na nossa rede mais imediata, nos nossos preconceitos, nas nossas possibilidades. Eu me identifico com o verbo flanar porque fui percebendo que o que eu gostava raramente eram os circuitos que estavam me propondo. Queria dar chance ao acaso. Tem uma frase, acho que é do [romancista estadunidense] Paul Theroux, que é “nunca sou tão feliz quando estou caminhando a pé por uma cidade que não conheço”. E é isso, porque te tira do conforto imediato, te deixa aberto para ver coisas que não viu, sentir cheiros que nunca sentiu, sabores que não conhece, até encontros com pessoas. O flanar abre essas essas possibilidades.

LS: Como nasceu a sua newsletter “Tá todo mundo tentando”?
GP:
Em 2016, mais ou menos, fui parando de viajar e a gente estava vivendo um momento interessante em São Paulo, com muita festa de rua, a Virada Cultural, a feira Jardim Secreto. Fui ficando apaixonada pela cidade, pela ideia de ser paulistana, rompi minhas bolhas e fui explorar a ideia de escrever sobre. Depois, em 2021, trabalhava como editora-chefe do Buzzfeed e fui mandada embora, de repente. No meu tempo livre, além de procurar um novo emprego, veio uma vontade muito forte de, através da escrita, me reconectar com os meus temas e também com a minha cidade. O assunto newsletter estava em alta e assim que comecei a “Tá todo mundo tentando”, em abril de 2021, recebi um e-mail da [plataforma de newsletters] Substack, comunicando que estavam abrindo um edital de incentivo ao jornalismo local, um patrocínio. Para minha total surpresa o meu projeto foi escolhido. Passei 14 meses só escrevendo uma newsletter chamada “Paulicéia”, em que mapeava as vidas das pessoas que dependiam da cultura em São Paulo durante a pandemia. Esse foi um momento de reconexão forte com a cidade que gostei muito de fazer.

“A arquitetura modernista do centro, de Higienópolis, que é um dos bairros mais bonitos do mundo, a diversidade gastronômica, cultural, as festas, o Carnaval, tudo isso é maneiro, mas nunca pode estar acima do fato de que a gente tem uma cidade profundamente desigual e problemática”

LS: E qual é a sua relação com São Paulo hoje?
GP: No momento estou numa bolha minúscula, circulo por alguns quarteirões apenas. Já fiquei deslumbrada com a cidade, feliz de fazer parte daqui, mas às vezes sinto raiva. Acho que agora, em especial, é um momento muito feio, é muito lixo, muita gente morando na rua, a Cracolândia totalmente fora de controle. Há coisas boas acontecendo, claro, o parque Augusta foi uma tremenda vitória, a luta valeu a pena! O parque do Bixiga também foi aprovado. Essas discussões, nos anos 1990, não estavam sequer acontecendo. A arquitetura modernista do centro, de Higienópolis, que é um dos bairros mais bonitos do mundo, a diversidade gastronômica, cultural, as festas, o Carnaval, tudo isso é maneiro, mas nunca pode estar acima do fato de que a gente tem uma cidade profundamente desigual e problemática. Porque se a gente só fica ali no edifício Renata, na piscina, falando “ai que lindo”, esquece que tem gente fazendo cocô bem ali na frente. Nada contra o Edifício Renata, que bom que ele passou pelo retrofit, que as pessoas estão ali. Acho mara, não sou contra o uso que tá sendo feito dele, mas e o que está no entorno? Essas pessoas vão continuar existindo. Não acho também que as soluções dependam só de um prefeito, sequer são a curto prazo, São Paulo nunca foi uma cidade resolvida, até por causa da própria história dela, né? As escolhas que foram feitas lá atrás nos trouxeram até aqui, nada disso é por acaso. O que nos ajuda a responder: será que a gente pode começar a fazer escolhas que vão levar a cidade para ser bem melhor daqui 10, 15, 50 anos? É possível, mas essas escolhas tem que começar a ser feitas agora. 

LS: Qual é o seu maior desejo como mulher para a cidade?
GP:
Vou falar uma coisa clichê, que vai parecer aquele momento do feminismo 2016, mas é real: quero que todas as mulheres, independente de classe social, idade, afins, possam andar seguras na cidade, em qualquer região, a qualquer momento, fazendo o que quiserem. Em especial as mulheres pobres, que pegam transporte público todos os dias, trabalham e não têm com quem deixar os filhos. Para elas, a situação na cidade continua uma merda, como sempre foi. A gente teve essa grande onda do feminismo dos últimos anos, que trouxe algumas discussões importantes e talvez a gente tenha tido algumas vitórias? Não sei, talvez, mas acho que para mulher fodida, que é a maioria na cidade, a situação continua muito merda. A Beyoncé se assumir feminista não está fazendo a diferença na vida da mulher que precisa deixar os filhos na creche e pegar condução. Isso pode parecer uma parada supervazia porque trabalho em casa e moro no Centro, mas o meu sonho pras mulheres é que São Paulo se torne uma cidade tão segura para caminhar à noite quanto são as cidades europeias que a gente visita e fica “ai que maravilhoso isso aqui”! Ou seja, dá pra ter. São Paulo inteira tá foda, passa por segurança, por transporte público, pela limpeza. Para São Paulo se tornar mais humana, precisamos resolver um monte de coisa pras mulheres da cidade inteira.

LS: O que você mais celebra em São Paulo?
GP:
O fato de que a gente tem dado atenção para uma história que não é só a dos Bandeirantes ou dos imigrantes europeus, mas a história real de São Paulo, que é também a dos Jesuítas, das populações indígenas e negras, das mulheres. E é uma história que, às vezes, é dura, injusta, violenta. São Paulo só essa cidade incrivelmente vibrante, elétrica, porque é, na sua essência, diversa, pro bem e pro mal. Isso é o que a gente tem de melhor.

LS: São Paulo acabou de fazer 470 anos. Qual seria o maior presente para quem mora aqui?
GP:
Resolver a crise da habitação. Nada é tão grave hoje quanto a crise de habitação que a gente vive aqui. É muito maior do que as pessoas percebem pelo jornal. A gente não vai conseguir resolver nada na cidade enquanto não resolver a situação das pessoas que não têm onde morar. E tem solução, nós temos propostas. Isso já seria um passo imenso na direção de uma São Paulo menos indigna. E sem isso nada vai adiante.

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