
Foi nos superlativos que moram nas rancheras mexicanas, no surrealismo colombiano, nas manifestações venezuelanas e na exuberância do que é feito no Brasil que se encontraram Paula Baselice e Juliana Angel Osorno. Na verdade, elas se conheceram durante a pandemia, num curso de escrita, e quase de cara rolou uma admiração mútua. Um tempo depois, Paula criou no Instagram o Superlatina, perfil para impulsionar o conhecimento sobre o nosso continente. “Tive essa ideia pelo meu amor e curiosidade pela América Latina. Aprofundei um pouco a busca e vi uma pesquisa que mostrava: apenas 4% dos brasileiros se consideram latinos. Queria, então, mostrar quanta riqueza temos no Brasil e em todos os países que compõem essa região tão inspiradora”, contou Paula na nossa conversa por email para esta edição do Mulheres e a Cidade.
Depois de criar o perfil, Paula pensou na Juliana como parceira ideal pra continuar o projeto, pois além de ser colombiana, o que mostraria a união de brasileiros e latinos hispanohablantes, para a amiga essa questão da latinidade sempre foi muito natural. “A gente também tem muitas interseções em nossos interesses, ao mesmo tempo em que cada uma tem mais conhecimento sobre umas coisas ou outras, então construímos também a editoria do perfil pensando nessas paixões: ambas falamos de comida, e de literatura, mas Paula fala mais sobre cinema e música e eu sobre arte, e assim vamos estimulando essa valorização do latino. E como mulheres e feministas temos a tendência a falar muito sobre outras mulheres feministas”, detalhou Juliana pra gente, também por email.
Na entrevista a seguir, Paula e Juliana falam sobre os lugares que Superlatina quer alcançar, a onda crescente do orgulho de ser latino-americano e como esse sentimento de pertencimento influencia na forma como as mulheres latinas ocupam e se colocam no espaço público.

Larissa Saram: Nos últimos meses tem rolado uma onda na internet de “orgulho latino”, talvez impulsionada pelas políticas anti-imigração do presidente em exercício nos Estados Unidos, Donald Trump. Como avaliam essa tendência?
Juliana Angel Osorno: Acho que está rolando muito pelo disco do Bad Bunny e os shows da Shakira, será que não? Bad Bunny conseguiu fazer hoje o que Shakira já tinha feito com Pies descalzos, que foi furar a membrana de consumo de cultura do Brasil, o que não é fácil, porque o Brasil consome muito mais da sua própria cultura do que a dos outros países do continente. Aí, acho que o disco do Bad Bunny conseguiu algo parecido; ele tocou em algum lugar que agradou o brasileiro e, bem, o disco dele tem uma mensagem muito mais politizada do que os hits da Shakira (perdóname, Shakis!). É uma mensagem contra o imperialismo americano e com uma forte revalorização dos ritmos de Puerto Rico. Nesse sentido, acho que esses dois eventos têm deixado um sabor de amor pela América Latina na internet. Talvez no meio disso tudo também tenha uma tendência à valorização da latinidade como resposta às políticas de Trump, mas eu acho que, de qualquer maneira, isso não sai da bolha.
Paula Baselice: Fora do perfil, trabalho numa rede social, então posso dizer que é mais que uma tendência, é um caminho sem volta (ainda bem). As falas de Trump ajudaram, sim, a criar esse senso de união. No fundo, todos fomos impactados de alguma forma. Mas esse exemplo do Bad Bunny, que viralizou e levou uma absurda quantidade de brasileiros a se sentir identificada com seu novo disco (e a cantar em espanhol), destaca o orgulho de vir de onde veio. Teve também a Fernanda Torres e “Ainda estou aqui”, conquistando a torcida de tantos latinos. E a latinidade reunida contra o filme Emília Pérez para apoiar a história do México. Sinto que estamos entrando numa era poderosa de nos entender como povos muito familiares. Comunidade, mesmo. Eu sempre fico pensando nisso, um pensamento meio utópico, em como seria se esse continente se unisse de verdade.
“Sinto que estamos entrando numa era poderosa de nos entender como povos muito familiares. Sempre fico pensando nisso, um pensamento meio utópico, em como seria se esse continente se unisse de verdade”
LS: Como podemos detectar esse movimento nas ruas?
PB: Não acho que podemos detectar nas ruas ainda, mas é uma questão de tempo. Para mim, o Carnaval foi um grande exemplo concreto e visível de como finalmente estamos começando a nos apropriar da nossa latinidade. Multidões cantando músicas em espanhol, imigrantes cantando nossas músicas. Festas e blocos apoiando a questão da latinidade. Eu me emocionei várias vezes.
JA: Teve um bloco de reggaeton no carnaval de São Paulo, né? Acho que talvez a festa possa ser um dos locais em que esse movimento está tendo mais adeptos.
LS: Como o orgulho latino-americano tem influenciado a ocupação dos espaços públicos, especialmente mulheres, em manifestações culturais?
PB: Vou falar aqui não como uma estudiosa, mas como uma observadora curiosa: vejo isso ainda bem no começo. Existem muitos festivais, festas, manifestações em espaços públicos falando da cultura de outros países, mas acho que ainda dentro de uma bolha e feitos com e pelos próprios imigrantes. Espero que a gente veja nesses grandes festivais, em breve, mais headliners latino-americanos e menos estadunidenses e europeus, por exemplo. Porque isso vai significar que nossa demanda aumentou.

LS: Como o sentimento de pertencimento influencia a forma como as mulheres latinas ocupam e se colocam no espaço público?
JA: Eu só consigo pensar nas manifestações dos movimentos feministas latino-americanos a favor (e exigindo) nossos direitos. Teve as argentinas ocupando as ruas até conseguir o direito ao aborto, teve as colombianas na mesma onda, tem as Madres de Mayo exigindo a volta de seus filhos e netos sequestrados pela ditadura argentina, tem as morras mexicanas enchendo as ruas do México para exigir o fim do feminicídio, tem as marchas de 8M em várias cidades do continente, as chilenas cantando “Um violador en tu camino” durante o levante popular em 2019. Acho que isso não tem a ver diretamente com latinidade, ou com identidade latina, mas sim sei que esses movimentos de feministas latino-americanas operam em rede, e que há uma certa irmandade feminista latino-americana que opera alí e que uns movimentos informam os outros, então eu acho que, nesse sentido, ou nesses espaços se mistura um pouco essa orgulha latina, digamos, latina e feminista e coletiva.
PB: De maneira geral, a gente se coloca no espaço público com medo. Talvez essa seja a coisa que mais una as mulheres latinas e isso é muito triste. Na (ainda pequena) influência da Superlatina, é isso que gostaríamos que acontecesse: que a gente se conhecesse mais pra poder nos apoiar mais. E, claro, nos expressar no espaço público com mais liberdade.
“O estereótipo da brasileira sensual e liberal, a gente sabe bem o que provoca: sairmos pro espaço público com cada vez mais medo. Os estereótipos foram criados pra isso, afinal. Uma tentativa horrorosa de justificar preconceitos, atitudes machistas e crimes. E de conter nossa liberdade”
LS: Há muitos estereótipos associados às mulheres latinas, principalmente no comportamento – que somos mais alegres, sensuais, liberais. Como acham que esses estereótipos impactam na forma como ocupamos as ruas?
PB: Acho que esses aos que você se refere são estereótipos de mulheres brasileiras e talvez de alguns outros países. Mas não acho que as mulheres peruanas ou guatemaltecas, por exemplo, sejam vistas como sensuais. Então, sim, o estereótipo impacta muito até nisso. Porque até nós, mulheres, generalizamos as mulheres latinas. Somos parecidas em muitas coisas, mas diferentes na mesma proporção. E que bom que estamos falando sobre isso aqui porque é o que precisamos fazer: querer conhecer mais e mais dessas culturas tão próximas. Voltando à pergunta, o estereótipo da brasileira sensual e liberal, a gente sabe bem o que provoca: sairmos pro espaço público com cada vez mais medo. Os estereótipos foram criados pra isso, afinal. Uma tentativa horrorosa de justificar preconceitos, atitudes machistas e crimes. E de conter nossa liberdade, né? Uma coisa é certa: quanto mais as mulheres latinas se conhecem e se juntam, mais a gente pode se proteger. Latinas unidas mesmo.
JA: Esses estereótipos, de fato, são muito fortes lá fora, ou em algum lugar de contraste. E acho que, sim, os estereótipos deixam as mulheres latinas em situações mais perigosas em lugares onde esses estereótipos são a única informação que as pessoas têm, ou a informação mais mobilizada (ou seja, no norte global, principalmente). Parte do Superlatina é compartilhar coisas da América Latina que mostrem a diversidade e a especificidade de cada lugar, sem perder uma espécie de fio condutor, que tem mais a ver com política do que com identidade. É óbvio que não somos iguais, mas seria legal que fossemos um coletivo que se fortalecesse, que olhássemos mais para dentro do território e menos para os Estados Unidos como horizonte. Que o horizonte de consumo cultural e material seja aqui perto e não lá longe.

LS: O que ser uma mulher latino-americana significa para vocês e como demonstram essa identidade quando estão fora de casa?
PB: Ser uma mulher que sabe o que é nascer e viver num lugar que tem uma história de exploração. Nisso, dá pra dizer que todas somos iguais. E isso fica enraizado de muitas formas que não dá pra classificar em uma identidade só. Mas acho que a minha latinidade eu expresso consumindo e depois vendendo meu continente e as mulheres poderosas que vivem nele. “Olha essa cantora mexicana. Já leu essa autora argentina? E essa diretora chilena de documentários incríveis?” Recentemente, a gente promoveu uma exposição com a Superlatina, só com artistas latinos. É essencial que a gente celebre nossas próprias criações pra de fato começar a mudar alguma coisa.
JA: Para mim sempre foi um dado: sou colombiana, logo sou latino-americana. Que eu entendo mais ou menos como que “nós” somos mais parecidos entre “nós” do que parecidos com “eles” (quem queira que sejam esses “eles”). Isso pode ser porque não tenho uma genealogia próxima europeia (como muitas pessoas brancas no sudeste do Brasil e no Sul do continente gostam de marcar), ou porque não sou de nenhuma religião que tenha vínculo com partes específicas do mundo. Quando cheguei no Brasil, mesmo com outra língua, tive a sensação de que aqui era tudo muito próximo e familiar, que mesmo não conhecendo, já conhecia um pouco. Se comem coisas parecidas, se conversa de maneira parecida, as cidades são injustas de maneiras parecidas. E também tem o fato de que gosto de muitas coisas e muitas práticas nossas: das músicas, das danças, das comidas, dos produtos de indumentária e vestuário de marcas nossas.
“É importante demais que a questão feminista parta de uma manifestação pela nossa defesa, lutando pelo direito de não sermos mortas. Mas acho que a gente deveria se unir também pra manifestar nossa arte, nossa música, nossa criatividade, nosso papel no mundo de quem verdadeiramente está mudando as coisas”
LS: Estudiosas dizem que a quarta onda do feminismo é tipicamente latino-americana. Como acham que isso impacta nas cidades que podemos moldar e deixar de legado para o futuro?
PB: Talvez isso tenha surgido com os grandes movimentos feministas de alguns países latinos. O “Ni una menos”, por exemplo, que começou na Argentina e depois se espalhou pelo mundo. Nesse sentido, vejo que, como disse acima, ainda estamos unidas apenas pelo medo. É importante demais que a questão feminista parta de uma manifestação pela nossa defesa, lutando pelo direito de não sermos mortas. Mas acho que a gente deveria se unir também pra manifestar nossa arte, nossa música, nossa criatividade, nosso papel no mundo de quem verdadeiramente está mudando as coisas. Eu sou otimista, apesar de tudo.
JA: Espero que o futuro de muitas lutas para além do feminismo cresça cada vez mais aqui. E que haja futuro.