No fim de maio de 2022, enquanto as ruas do Bixiga eram tomadas pela notícia da morte de uma das figuras mais conhecidas do bairro, o senhor Walter Taverna, a socióloga Rose Almeida começava a pensar como organizaria um encontro de emergência com a comunidade: naquele mesmo dia, ela tinha recebido uma ligação informando que um sítio arqueológico havia sido encontrado durante as escavações de uma estação da Linha 6-Laranja do Metrô.
Estudos científicos já davam conta de que ali no Bixiga, localizado na porção central da cidade de São Paulo, existia um quilombo urbano. A materialidade era uma nova comprovação e mais: a possibilidade de se investigar com profundidade a história da população negra que ocupou aquele espaço.
Respeitado o luto pela morte de seu Walter, foi marcada uma reunião no Museu do Bixiga, aberta para todo mundo que quisesse participar. Lá começaram as conversas sobre o que era importante e o que estava em jogo. Nascia o Mobiliza Saracura Vai-Vai, movimento em defesa do legado do Quilombo do Saracura e da preservação do sítio arqueológico que está no mesmo espaço das obras do metrô.
Rose faz parte do núcleo mais participativo do movimento, que tem hoje entre 25 e 30 pessoas. Toda segunda-feira esse grupo se reúne para debater e tomar decisões. Há também encontros mensais, bem maiores, que funcionam como boletins para quem não consegue dispor de tantas horas semanais para se envolver com a mobilização. O Manifesto do Mobiliza reúne mais de 500 pessoas entre arquitetos, arqueólogos, engenheiros e pesquisadores. E abaixo-assinado já chegou a quase 10.000 assinaturas.
Na conversa que tive com ela por videoconferência para o Mulheres e a Cidade, Rose falou sobre as múltiplas camadas que fazem parte da luta do Mobiliza e como a participação política da população tem força suficiente para promover as mudanças que a gente sonha para o lugar onde moramos.
Larissa Saram: Como foi formado o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai?
Rose Almeida: A mobilização surgiu a partir da informação do encontro de um sítio arqueológico no lugar onde está sendo feita a obra de construção da Linha-6 Laranja do metrô. Mas não foi só a informação que nos fez mobilizar, foi o fato de que essa informação não foi amplamente divulgada. E num local em que já se tinha o conhecimento científico, jornalístico, histórico de que houve a existência de um quilombo, um espaço de produção de vida, de sobrevivência e de resistência, a notícia da descoberta ficou relegada lá no meio o SEI, que é o Sistema Eletrônico de Informação. A empresa que está tocando a obra simplesmente não deu visibilidade pública para isso. Aqui no Bixiga as pessoas são bastante ativistas, envolvidas com o bairro e suas questões. E nos interessava saber como é que seria o resgate arqueológico, o que fariam com as peças. Para a comunidade negra, não só do bairro do Bixiga, como da cidade de São Paulo, do Estado brasileiro, é muito importante e muito relevante essa informação da existência de um quilombo aqui.
LS: Quais são exatamente as pautas do movimento?
RA: Primeiro: o acompanhamento para que se faça o devido resgate desses achados arqueológicos. Segundo, que a comunidade seja envolvida. Há toda uma uma determinação na lei que diz que é preciso ter educação patrimonial, e isso quer dizer envolver a comunidade no conhecimento que esse sítio arqueológico pode trazer. Nós queremos participar, nós queremos acompanhar. E também, um outro ponto muito importante: a gente quer garantir que se traga de volta a história da população negra no bairro do Bixiga. Porque o bairro do Bixiga é conhecido hoje pela maioria das pessoas como um bairro italiano, como se este local tivesse surgido a partir da vinda dos imigrantes europeus – o que vai acontecer um tanto no início do século 20 e se aumenta por volta dos anos 30 pra frente. Mas o Bixiga não existe a partir só desse momento, ele tem uma existência anterior, aí a gente tem que falar inclusive dos povos originários que estiveram aqui, e a a existência do povo negro, que foi escravizado.
LS: É verdade que vocês são contra a construção da estação de metrô?
RA: Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico. Tá tudo bem, o metrô faz parte da estratégia de mobilidade urbana. Essa é uma oportunidade de produzir conhecimento e ainda ter uma estação que pode ser muito legal, que pode gerar mais renda, fomentar ainda mais o turismo, e um turismo com bastante relevância para a sociedade. Isso também tem a ver com o projeto de educação patrimonial.
“Não tem espaço para a
felicidade no campo só
do dinheiro. Contar as
histórias dos nossos povos,
das nossas descendências,
dos nossos ancestrais,
valorizar os que vieram
antes da gente, tem a ver
com construir uma sociedade
mais solidária, mais fraterna.
Tudo isso é plano de fundo”
o tempo inteiro do
movimento Mobiliza”
LS: Que é o quê exatamente?
RA: A gente tá numa discussão intensa sobre isso: o projeto de educação patrimonial não pode ser só enquanto durar a obra. Educação patrimonial teria que continuar sendo fomentado com a comunidade. O que é um patrimônio? Por que isso é importante? Por que essa materialidade dos nossos patrimônios são importantes para as nossas formações? Para a formação dos nossos filhos? Se a gente ficar falando só de dinheiro para as nossas crianças, esta será uma existência árida, não uma existência feliz. Não tem espaço para a felicidade no campo só do dinheiro. Contar as histórias dos nossos povos, das nossas descendências, dos nossos ancestrais, valorizar os que vieram antes da gente, tem a ver com construir uma sociedade mais solidária, mais fraterna. Tudo isso é plano de fundo o tempo inteiro do movimento Mobiliza. Coisas muito difíceis de se levar para uma mesa de negociação, né?
LA: Você falou sobre ter uma estação de metrô que promova também o conhecimento. Como imagina ser possível manter a obra do metrô e preservar o sítio encontrado?
RA: Já há exemplos no mundo de que dá pra preservar e fazer a estação. Faça um projeto novo que preserve as estruturas e que, inclusive, faça com que tenha um espaço turístico, que seria outro benefício para o próprio bairro e a própria cidade. A gente preserva a nossa história. O conglomerado de 100 empresas que atuam na construção da estação são multinacionais, elas vão ter interesse financeiro. Mas esse não pode ser o único interesse a ser protegido, né? Eu não espero que uma empresa espanhola tenha interesse sobre a nossa história. Nós é quem precisamos preservá-la, recontá-la e precisamos rever, inclusive, os nossos erros do passado. É uma luta para manter o que dá sentido na vida da gente.
“Quando a gente fala
da importância de recuperar
a história do Quilombo, é
mais do que achar umas
peças. São partes importantes
de elementos que possibilitam
conhecer um tanto da história
que se passou ali. Uma história
que tem a presença do povo
negro, mas que essa presença
não é escrita”
LS: Ainda existem pessoas que não compreendem a importância de preservar e resgatar a história. Como você explicaria a relevância desse trabalho que o Mobiliza está realizando?
RA: É importante falar do apagamento histórico da população negra porque nos relega também não saber como é que foi essa história de existência no Brasil. O máximo que a gente fala da história é: os negros foram capturados do seu local de nascença, do seu local de vida, foram brutalmente retirados da sua existência e trazidas em situações absurdas, dentro de um navio. Morreram muitos. Chegaram aqui, foram torturados, espoliados. Tudo isso para dizer que quando a gente fala da importância de recuperar a história do Quilombo como o sítio histórico, é mais do que achar umas peças. É mais do que já surgiu como dado, achar caquinhos. São partes importantes de elementos que possibilitam conhecer um tanto da história que se passou ali. Uma história que tem a presença do povo negro, mas que essa presença não é escrita. Então, a gente precisa fazer a devida inscrição na história da nossa história porque muitos fatos a gente não conhece. O Mobiliza Saracura Vai-Vai luta contra o apagamento e quer possibilitar que a população negra reconte a sua história a partir de concretudes. Se o movimento não existisse, esse resgate já teria terminado há muito tempo e não teria chegado no conhecimento e nas possibilidades, nem na profundidade que ele chegou até agora.
LS: Como o racismo estrutural se relaciona com a construção da Linha-6 Laranja do metrô no Bixiga?
RA: O Bixiga é o pontinho preto do centro, é o pontinho no centro que mais concentra a população negra. A quadra do Vai-Vai era ali na rua Quatorze de Julho e na década de 50 perdeu sua sede por causa da construção da Radial Leste. Depois a quadra foi para a Rua Lourenço Granado, no espaço onde está o sítio arqueológico. E aí de novo você tem isso: o metrô precisaria passar em cima da quadra, que está lá há 50 anos? Uma escola de samba centenária, histórica da cidade de São Paulo? Será que o metrô passaria em cima da Igreja Achiropita? Será que retiraria o MASP? Tem várias camadas de luta. A gente precisou encontrar alguma coisa pra provar que aqui teve italiano? É um discurso de manutenção da exclusão. É importante encontrar materialidade, mas a nossa existência já diz sobre esse Quilombo.
LS: A quadra do Vai-Vai também está na pauta de vocês, né?
RA: Sim, a gente precisa que o Vai-Vai continue no bairro. Porque ela simboliza não só uma escola de samba, mas também uma estratégia importante de resistência, de organização, de um modo de vida. Não é por acaso que a cada esquina desse Bixiga tem um samba. Não é por acaso que tenha tantos terreiros afros. Não é por acaso que aqui tem a capoeira. Isso tem a ver com a cultura de um povo que permanece aqui e o Vai-Vai é uma estratégia muito importante de resistência dessa lógica.
LS: O que já foi encontrado nesse espaço do sítio arqueológico?
RA: Para além dessas grandes estruturas, muitas peças já encontradas tem a ver com a religião afro-brasileira, com as matrizes africanas religiosas. São muitas vasilhas de ágatas, conchas marinhas. Não são conchas de rio. Como elas chegaram lá? Eu tô falando de mais de 200 conchas. Um dos últimos espaços que se encontrou tem uma grande concentração de conchas, perto se encontrou um fio de contas, que a gente não sabe ainda de qual entidade religiosa é. Os arqueólogos encontraram um espaço que parece um quarto de santo, e você também vê reminiscências lá.
LS: Qual é a principal dificuldade da mobilização?
RA: É o entendimento público de que a participação social deve fazer parte dessa história. É poder convencer todo mundo de que o que a gente está fazendo deve fazer parte dos processos, porque as pessoas às vezes reclamam “ah é uma roubalheira”, “fez de qualquer jeito”, “não tem qualidade”. Mas aí quando tem um grupo organizado, com gente que dispõe de tempo para poder pensar o que que significa o impacto dessa obra na vida de cada um…Por exemplo, o pedaço da Nove de Julho que foi fechado obriga muita gente a andar por quarteirões inteiros pra chegar no mesmo lugar de antes. As enchentes aumentaram. Cadê o plano de mitigação? Tem um buraco na Rua Una que já tem até samba pronto, faz meses que é só chover, que ele aparece e fica jorrando água. Acabou a quadra do Vai-Vai, várias lojas fecharam. Uma de artigos religiosos está capengando, assim como o bar que fica do outro lado.
LS: Desde quando você mora no Bixiga?
RA: Nasci na zona norte da cidade de São Paulo, depois mudei pra Zona Leste, que era onde era possível comprar um apartamento. Há 11 anos vim morar no Bixiga. Quando conheci meu companheiro, ele já morava aqui. Quando cheguei, foi maravilhoso, era essa efervescência de participação política de todos os lados. E como eu já tinha essa perspectiva de participação, também pelo meu trabalho, isso continuou. E não só essa esfera política, a gente organiza um bloco de carnaval, que é o Bloco do Fuá, que faz intervenção na sociedade pela cultura, no sentido de democratização da arte e do fazer arte. Temos oficina de percussão onde qualquer um pode tocar, a gente incentiva as pessoas a fazerem composição. A arte para mim tem esse poder, essa força toda que é a força de resistência do Vai-vai, que é o samba. O samba é pura resistência, é pura luta e também é pura reivindicação por outro Estado e por um outro jeito de poder estar nesse mundo.
LA: O que mais te emociona em morar aí?
RA: O Bixiga é um bairro especial, inclusive, porque a paisagem dele contribui para o que você sente quando chega aqui. Parece que você está em outro lugar, bem diferente do centro de São Paulo. Aqui você encontra as pessoas na calçada, as pessoas dialogam, conversam, se organizam para ir para o samba, para assistir a capoeira, o futebol no bar da esquina, para comer um churrasquinho. É um bairro marcado pelo encontro. E isso dá uma acolhida muito gostosa na gente. É que mais me emociona. E o que mais me dá medo de acabar porque a especulação imobiliária constrói prédios fechados, com seus muros altos, com as pessoas que não estabelecem uma relação com seu bairro. Tira quem dá vida. O Bixiga para mim é esse lugar de potência, da cultura, em que você pode pensar o bem viver e que tá na pauta o bem viver, mesmo com todas as disputas que acontecem. Não pense que é mil maravilhas, tem muita disputa, mas inclusive poder falar sobre isso este lugar permite. O importante é que a diferença não significa desigualdade, ela tem que coexistir com a equidade. Senão não tem jogo social possível.