Cultura

entrevista com Tamires Lima

“O essencial das livrarias e outros comércios de bairro é não deixar que se percam as relações de humanidade”

Junto com a sócia, Larissa Viana, a arquiteta fala sobre a criação da livraria “Sentimento do Mundo”, em São Paulo, como espaço de pausa e trocas entre a comunidade. Por Larissa Saram

Larissa Viana e Tamires Alves, sócias da livraria Sentimento do Mundo, em São Paulo | Foto: Divulgação

O nome poético estampado na plaquinha e na escada da entrada traduz o charme do lado de dentro. Mas não só. A “Sentimento do Mundo” nasceu com algo tão grandioso quanto a força do texto que a inspirou, assinado por Carlos Drummond de Andrade: o propósito de transformar junto – mesmo que em meio a uma vivência coletiva de caos, que é o que experimentamos hoje em grande parte dos centros urbanos.

Inaugurada em 2023 no bairro da Santa Cecília, em São Paulo, pelas mãos das arquitetas Tamires Lima e Larissa Viana, e com apoio de uma rede de amigos, a livraria é um espaço para que as pessoas pensem sobre o dia a dia que estabelecemos na cidade e construam o que as sócias chamam de “política do cotidiano”. “É importante que se mantenham espaços em que gente encontra gente, em que vizinho encontra vizinho, em que leitores encontram outros leitores. Essas micro interações, que geram pequenos momentos de reciprocidade e conexão, são muito valiosas para manter o que há de humano em nós, o que eu considero o passo 1 pra que a gente consiga batalhar contra essas grandes estruturas sociais de opressão, do capitalismo ao machismo, do neoliberalismo à homofobia”, explica Tamires na conversa que tivemos para esta entrevista do “Mulheres e a Cidade”.

As respostas dela e da Larissa são longas, mas eu garanto que vale a pena separar um tempo de qualidade – o mesmo que as arquitetas defendem – para conhecer mais sobre a livraria e pensar sobre como as trocas com a comunidade local podem ser uma ferramenta poderosa de mudança para estabelecer modos de vivência mais justos.

A livraria durante o processo de reforma, em 2023 | Foto: Divulgação

LARISSA SARAM: Vocês duas são arquitetas. De onde surgiu o desejo de abrir uma livraria e como ele foi crescendo até ser realizado?
Larissa Viana: Sou cearense e moro há 11 anos em São Paulo, no bairro da Santa Cecília. Vim pra fazer pós-graduação, emendei o mestrado e o doutorado, diversos trabalhos e aqui fui me estabelecendo. Ao longo desses anos também vi uma grande movimentação no bairro, de novos espaços abrindo, de casinhas indo ao chão para novos prédios de apartamentos cubículos subirem. E toda essa transformação me fez querer ter um espaço para as pessoas se encontrarem e trocarem, pensarem o cotidiano, construir o que costumamos chamar de política do cotidiano. Um tempo atrás eu havia pensado em abrir um espaço, mas ainda não tinha um formato exato do que seria. Aí um dia estava trabalhando na feira da reforma agrária do MST no Parque da Água Branca (eu trabalho no MST) e encontrei a Tami, nós nos conhecemos anos atrás, trabalhando juntas. Conversa vai, conversa vem, ela falou algo mais ou menos assim “aí no meio disso tudo eu tava num processo de abrir uma livraria”. Uns dias depois, passada a correria da feira, lembrei dessa informação e retomei meu pensamento sobre ter um espaço no bairro e pensei: por que não uma livraria? Aí escrevi pra Tami perguntando se tinha vontade de retomar o processo da livraria e interesse em uma sócia. Fui jantar na casa dela uns dias depois e decidimos firmar a parceria.
Tamires Lima: Pra mim, ter cursado arquitetura mudou a forma como olho a cidade e como enxergo as relações sociais que se dão nela. Por isso, entendo que não só as livrarias de rua, mas o uso das ruas na escala do pedestre, do encontro entre seres humanos, de pequenos e médios comerciantes, fomenta uma forma de uso da cidade que devolve o que ela perdeu de humanidade.

“Interessava muito o fato
de ter um espaço onde
as pessoas pudessem se
encontrar e pensar juntas
sobre a sociedade que temos
construído e que podemos
construir. Abrir um comércio
em uma rua onde todo dia
abre algo novo, mas que
fosse um que também
questionasse a transformação
avassaladora empregada
pelo mercado imobiliário,
um comércio que proporciona
o tempo lento, que é o tempo
da leitura, da reflexão”

LS: E como sonhavam que essa livraria deveria ser? O que queriam que ela tivesse de diferente, de especial? Por quê?
Tamires Lima:
Ela tinha que ser uma casinha, isso buscamos desde o início. Não por um fetiche, mas porque entendemos de forma muito clara que a configuração do espaço tem grande influência na maneira como as pessoas vão usá-lo e vão se relacionar nele. Portanto, uma casinha nos pareceu a forma mais singela e, ao mesmo tempo, impactante de aproximar as pessoas, de fazer com que nos sintamos em casa mesmo na presença de desconhecidos.
LV: Para mim interessava muito o fato de ter um espaço onde as pessoas pudessem se encontrar e pensar juntas sobre a sociedade que temos construído e que podemos construir. Então era fundamental que fosse um espaço acolhedor, onde as pessoas realmente se sintam bem. O ponto inicial da minha conversa com a Tami é que seria uma casinha justamente pra fazer esse diálogo com um bairro que tem passado por tantas transformações. Abrir um comércio em uma rua onde todo dia abre um novo, mas que fosse um que também questionasse a transformação avassaladora empregada pelo mercado imobiliário, um comércio que proporciona o tempo lento, que é o tempo da leitura, da reflexão, que não é o do bombardeio do algoritmo, que te leva sempre a consumir o que você já consome. A leitura proporciona o inesperado. E ocupar uma casinha é possibilitar que ela exista e resista, que não seja derrubada para mais um prédio subir.

Detalhes do charme que é a livraria por dentro | Foto: Divulgação

LS: E como foi esse processo de abrir mesmo as portas?
TL:
Encontramos pela internet um imóvel na Santa Cecilia, mas essa casa do anúncio não rolou. No dia em que íamos visitá-la, passamos em frente a essa casinha onde estamos agora, tinha uma placa de aluga-se, visitamos e fechamos o negócio. Foi um tanto inesperado, mas esse bairro sempre permeou nossas vidas desde que moramos em São Paulo.
LV: Na primeira visita já nos apaixonamos de cara e começamos lá mesmo a pensar na integração dos espaços. Contratamos o escritório de arquitetura Mirada Sul, que é do Danilo, meu companheiro, para fazer o projeto (apesar de sermos arquitetas, naquele momento estávamos acumulando outros trabalhos – e ainda estamos). O Danilo foi ótimo, entendeu exatamente o que queríamos e fez acontecer. Coisas como o vão de integração das duas primeiras salas que ele desenhou in loco, o banco de integração da sala do fundo com a cozinha que ele fez toda a forma. Soma-se a isso o fato de termos amigos tecnicamente qualificados, emocionalmente envolvidos e com ferramentas disponíveis. Isso foi fundamental, porque fizemos uma obra rápida e com pouquíssimo recurso. Foram esses amigos, junto com a gente, que montaram todas as estantes. Desde os cortes dos pilares, lixar, montar, foi tudo feito lá dentro e por nós, dia após dia com ajuda e parceria. Então de fato, construímos aquele espaço com muitas mãos, mãos amigas, mãos solidárias.

“Buscamos criar e fortalecer
esses vínculos comunitários

a partir do espaço, das
possibilidades de uso”

LS: Acho que já falaram um pouco sobre isso, mas queria saber como o fato de serem arquitetas influenciou no conceito da livraria, que é estimular o senso de comunidade, e como isso tem acontecido na prática?
TL:
Tem algumas coisas ali que, acho eu, de maneira não óbvia, foram nossos pontos de partida. Por exemplo, as estantes. Antes mesmo de ter local, já tínhamos uma ideia de como queríamos expor os livros e do que queríamos atingir com essa exposição. Manter boa parte dos títulos de frente, por toda a loja, é um desafio de estoque, mas nos tem trazido um ótimo retorno das pessoas. Elas têm se sentido mais atraídas pelos livros e acabam se sentindo mais tocadas pelos temas que selecionamos. Não é uma plaquinha, são os próprios livros que te contam que tema está ali na sua frente. Isso tudo gera troca entre as pessoas e com a gente também. O nosso bancão da sala de eventos, ou a nossa “pracinha”, como carinhosamente apelidamos durante a obra, realmente virou uma pracinha, as pessoas se sentam em torno do banco, usam ele como mesa de centro, há os que esticam as pernas e as crianças que o fazem de trampolim. Ele dá uma vida a mais ao espaço, e com usos que não têm nada a ver com leitura diretamente, mas que complementam o ambiente e o deixam mais agradável, mais aconchegante, e as pessoas rapidamente sacam isso e se apropriam. Tudo isso não é acaso, ter a bagagem da arquitetura nos levou a apostar nessas propostas e, felizmente, as pessoas gostaram e têm inclusive ultrapassado nossas expectativas de usos, o que nos dá uma sensação de missão mais que cumprida.
LV: Na prática tem acontecido através do espaço. Temos um espaço aberto, livre, que permite e convida as pessoas a estarem nele. Então tem, por exemplo, o Caio, que é um jovem que veio do litoral e mora na pensão vizinha e vai todas as tardes estudar na livraria. Tem a Gabi, uma jovem que mora com a família perto e também vai sempre estudar lá. Os dois sempre participam dos debates que promovemos no espaço. Tem o Douglas, que vive em situação de rua, passa sempre lá para pegar café e água – temos café e água da casa para quem quiser. Então buscamos criar e fortalecer esses vínculos comunitários a partir do espaço, das possibilidades de uso. E aí temos também alguns clientes mais fixos que nos fortalecem através da compra de livros para que possamos seguir sendo esse espaço. Porque isso é bem importante de dizer: nós somos realmente uma livraria independente, feita por nós duas que nesse quase um ano somos as únicas responsáveis por fazer absolutamente tudo. Então é fundamental vendermos livros para conseguir seguir se estruturando e seguir sendo espaço de construção da política do cotidiano. Um espaço que tá em construção. Costumamos falar isso, que não nascemos prontas, pelo contrário, nem nos propusemos a isso. Somos uma livraria se construindo, no gerúndio mesmo. E essa construção se dá muito a partir do cotidiano, do público que vai e fala de um livro, de um autor, um evento que traz diferentes pessoas.

LS: Como vocês acham que as livrarias de rua podem contribuir para o plano de uma cidade mais democrática e acolhedora?
TL:
Para mim, o essencial das livrarias e outros comércios de bairro é exatamente não deixar que se percam as relações de vizinhança, de coletividade, de humanidade entre nós. É muito duro viver em São Paulo, uma cidade bastante caótica e frenética, então, é importante que se mantenham espaços em que gente encontra gente, em que vizinho encontra vizinho, em que leitores encontram outros leitores, é uma oportunidade de manter vivo o que a gente chama de “política do cotidiano”. Essas micro interações, que geram pequenos momentos de reciprocidade e conexão, são muito valiosas para manter o que há de humano em nós, o que considero o passo 1 pra que a gente consiga batalhar contra essas grandes estruturas sociais de opressão, do capitalismo ao machismo, do neoliberalismo à homofobia. Tudo passa por, no mínimo, termos uma mínima vivência comunitária, conviver, debater, trocar e construir com outros, e não só com os “iguais”.

LS: Qual é a relação de vocês com São Paulo?
TL:
Hoje em dia eu mais odeio que amo São Paulo, vivo numa relação de conveniência com essa cidade, porque ela oferece muitas oportunidades, mas suga a alma na mesma proporção. A livraria surge como um respiro para isso, tanto para mim mesma quanto para tentar compartilhar com outras pessoas. Buscamos imprimir essa desaceleração não apenas na relação com os clientes, mas também com fornecedores e com quem trabalhamos. Nada é pra ontem, nenhum pedido é feito no grito, ninguém tem que comprar logo e ir embora rápido. Se for para competir com grandes plataformas para fazer do mesmo jeito que elas fazem, não teríamos a mínima chance. Nossa ideia é, justamente, atuar diferente dessa lógica. Felizmente a Sentimento não consegue entregar um livro encomendado no mesmo dia, porque eu durmo, passeio, tenho cachorro, amigos, e igualmente minha sócia e meus fornecedores. Não vamos compactuar com uma mobilização exploratória do trabalho para que um livro seja entregue em horas, isso não faz o menor sentido na minha cabeça. E, a meu ver, é uma das piores coisas que São Paulo tem a oferecer, apesar de ser entendida, em geral, como um dos pontos positivos da cidade.
LV: Costumo dizer que ter aberto a Sentimento do Mundo foi minha declaração de amor a São Paulo, ao mesmo tempo que é também uma declaração de revolta. É uma declaração de revolta ao mercado de trabalho exploratório, que tá posto na maior metrópole da América Latina, declaração de revolta à vida em torno do carro pra se deslocar, uma declaração de revolta aos centros de consumo representados pelos shoppings. E é uma declaração de amor por buscar e apostar que outras relações de trabalho são possíveis, que é possível utilizar o comércio sem carro, consumir em pequena escala e dos pequenos comércios de bairro, dos comércios feitos, construídos e tocados por mulheres. Que é possível entrar num espaço e se perder nele, se perder por ser conduzido as descobertas que só os livros conseguem proporcionar e que é possível, mesmo em São Paulo, viver o tempo lento de Milton Santos. E isso tudo dialoga justamente com meu programa preferido que é andar a pé pela cidade, vivendo e sentindo a cidade. 

“Essa cidade oferece
muitas oportunidades,
mas suga a alma na mesma
proporção. A livraria surge
como um respiro para isso,
tanto para mim mesma
quanto para tentar compartilhar
com outras pessoas. Buscamos
imprimir essa desaceleração
não apenas na relação com
os clientes, mas também
com fornecedores e
com quem trabalhamos

LS: Onde literatura e arquitetura se cruzam para promover o direito à cidade?
TL:
A meu ver, a leitura ainda é um campo de difícil colonização pelo neoliberalismo. Ler tem seu próprio tempo (ainda que hoje existam apps que prometem te fazer ler mais rápido), parar pra ler tem o potencial de ser um ato muito transformador, já que vivemos numa época em que tudo é instantâneo, curto, gerado por inteligência artificial, etc. Há muito de humano, orgânico, em pegar um livro pra ler, e acho que nisso conseguimos conectar a leitura com a proposta da nossa livraria, fazer com que esses ritmos mais lentos se encontrem e se potencializem no espaço.
LV: Nas descobertas que o tempo lento proporciona. No nosso caso, se encontra na nossa casinha que preserva a história e a memória através da ocupação dela com livros, com ajuntamento de pessoas, com o convite a andar pelas ruas até ela e a partir dela. Ao proporcionar esse tipo de relação com a cidade, contribuir para que as pessoas se desloquem a pé a partir dos pequenos comércios de bairro, contribuem para uma cidade mais democrática, acolhedora e saudável.

LS: Qual é o principal desejo de vocês hoje para São Paulo ser um lugar melhor para todes?
TL:
Pergunta difícil (risos). Eu sou uma pessoa pessimista e vou poupar vocês de dar minhas opiniões mais sinceras sobre o futuro de São Paulo. Mas eu gostaria que a cidade fosse, no mínimo, mais lenta, que as pessoas pudessem fazer suas coisas com alguma calma, ter mais tempo para se dedicar a outras e não apenas ao trabalho, como é a realidade da grande maioria. Só de podermos ter mais tempo de qualidade para nos importar com outras pessoas, acredito que teríamos mais vitalidade para fazer mudanças significativas. Por isso mesmo insistimos na política do cotidiano e no tempo lento da leitura e da casinha.
LV: Eu acredito realmente que São Paulo possa ser uma cidade mais socialmente justa, mais democrática, menos massacrante e, consequentemente, mais saudável. E é isso que eu desejo. E eu desejo isso não só de longe, desejo me implicando e tentando construir de forma coletiva, a partir do cotidiano, porque não tem nada mais coletivo do que a prática cotidiana. E é isso que eu acredito e desejo, uma cidade voltada ao coletivo e pra isso é fundamental o usufruto do tempo, que ele não seja engolido pelo capital. 


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