Lifestyle

entrevista com Irina Gatsalova

“Me sentir estrangeira em todos os lugares, seja Rússia ou Brasil, não é confortável”

A artista visual e influenciadora de viagens que nasceu no Rio, mas é de origem russa, faz do mundo sua inspiração para se encontrar e se expressar – seja na criação de joias únicas ou de posts. Por Graziela Salomão

Foto: Arquivo Pessoal

Desde pequena, Irina Gatsalova entendeu que a sua identidade não estava ligada à cidade em que ela nasceu ou cresceu, mas sim a que ela descobriria de fato durante os longos anos em que o mundo foi o quintal de casa. Filha de russos que trabalhavam para o Consulado da Rússia, “por isso todas as mudanças que fiz e a minha sorte de ter nascido carioca“, Irina conviveu, desde pequena, com o significado concreto da errância. Com a família, também viveu em Moscou, na Rússia, e Quito, no Equador. Depois de adulta, a artista visual ganhou o horizonte e passou por Nova York, São Paulo, Roma e Madri.

Nem sempre foi fácil não se sentir pertencente a um lugar, ônus das andanças pelo mundo. No entanto, foram elas também que trouxeram o bônus de descobrir como traduzir os diversos aprendizados culturais em algo concreto. Irina transforma essas experiências em inspiração para criar joias únicas desenhadas por ela para sua marca Gatsalova. “A principal influência da minha marca era a arte surrealista, em especial, mas achei uma nova musa para mim que, justamente, é esse mix multicultural“, conta na entrevista desta semana para o Mulheres e a Cidade.

Morando em Budva, uma pequena cidade costeira em Montenegro, desde 2023, a designer tem se aventurado também por outros mares, desta vez digitais. Transformou sua conta pessoal no Instagram em um guia de lifestyle das viagens que faz. O objetivo, segundo ela, é ir além do turismo “americanizado” e sem profundidade. “Quero procurar cidades menos conhecidas para as pessoas saberem que existe muito, além dos clichês, para se conhecer”. 

Foto: Arquivo Pessoal

Graziela Salomão: Você nasceu no Rio, mas cresceu em outros países. Como foi entender essa multiplicidade de culturas que te formam?
Irina Gatsalova: Fiquei até os 2 anos no Rio, depois passei pelo Equador e pela Rússia. Em 2006, me mudei para São Paulo. Meus pais trabalhavam no consulado da Rússia, por isso todas as mudanças que fiz e a minha sorte de ter nascido carioca (risos). Essa multiplicidade de culturas me parece uma dádiva, pois foi uma oportunidade única que me permitiu aprender muitas línguas (espanhol, português e inglês, além do russo) e muito sobre a diversidade e a riqueza das tradições e culturas, que continuam sendo uma grande inspiração para mim e para minha arte. Me fez uma pessoa muito aberta e curiosa, daquelas que não tem vergonha de começar uma conversa com estranhos no exterior quando ouço que estão falando alguma língua que conheço. 

Essa multiplicidade de culturas me parece uma dádiva, pois foi uma oportunidade única que me permitiu aprender muitas línguas e muito sobre a diversidade e a riqueza das tradições e culturas, que continuam sendo uma grande inspiração para mim e para minha arte.

GS: Você se mudou para Montenegro recentemente. Como foi a decisão?
IG: Não sei se era uma cigana em outra vida, se foi por ter mudado tanto, ou se estava descontente com alguns fatores aqui no Brasil, como a qualidade de vida e a insegurança que sentia, em especial depois de ter sido assaltada à mão armada em dezembro do 2023, em plena luz do dia, mas há alguns anos queria “fugir pras montanhas”, para uma cidade com menos trânsito, onde pudesse ficar perto da natureza e focar na minha arte. Mal sabia eu que, no verão, Montenegro vira um formigueiro (risos), enche de turistas e trânsito. Sei que é engraçado falar assim, pois eu, em teoria, sou meio turista também, mas já me sinto residente aqui. Conheci a cidade através de uma amiga. Os pais dela tinham um apartamento e, em 2013, vim passar o verão com ela. Fiquei encantada com a natureza, com o fato de Budva ter montanhas e o mar pertinho, e a cidade “velha”, que é o centro histórico medieval, ter até restos da Necrópolis Romana. No começo de 2022, quando estava internada numa clínica em São Petersburgo fazendo um tratamento de protonoterapia, uma forma de radioterapia de alta precisão, para tratar um sarcoma que descobri no ano anterior, começou a guerra com a Ucrânia. Ter tido o câncer mudou consideravelmente minha perspectiva e, com a infeliz surpresa da guerra, decidi que não tinha tempo para ficar esperando o que ia acontecer. Vendi meu apartamento de Moscou e entendi que a Rússia não era uma opção pra mim. Montenegro veio na minha cabeça: sabia que era um país seguro, que os preços dos imóveis eram mais baixos que no resto da Europa, e a possibilidade de obter uma residência via compra do imóvel era bem mais acessível. 

GS: Tem alguma cidade que você considere a do seu coração?
IG: Budva me recebeu muito bem, tem muitos imigrantes russos e ucranianos, todos vivendo em paz. De certa forma, aprendi coisas novas sobre as minhas raízes aqui mais do que na própria Rússia, pois os imigrantes são mais sociáveis e abertos que o pessoal de Moscou. Já fiz muitos amigos – todos russos e ucranianos. Sobre uma cidade do meu coração, queria muito poder dizer uma, mas são várias. São Paulo é uma delas, apesar de eu ter ido embora. Quem sabe, seja só por um tempo. Pensar sobre onde sinto que é o meu lar, infelizmente, ainda não sei. Talvez a cidade que seja o meu lar é onde eu crie uma família. Se bem que amigos viram família também, né? Pensando nisso, minha família de verdade e de amigos está espalhada pelo mundo inteiro (risos).

Talvez a cidade que seja o meu lar é onde eu crie uma família. Se bem que amigos viram família também, né? Pensando nisso, minha família de verdade e de amigos está espalhada pelo mundo inteiro

GS: Como é ser vista como uma estrangeira, independente de onde esteja?
IG: Me sentir estrangeira em todos os lugares que passo, seja Rússia ou Brasil, não é confortável. Ao longo da minha vida ouvi comentários que me faziam sentir como algo “exótico”, uma atração no circo, com estereótipos que as pessoas já colavam em mim tipo “ah então você bebe vodka” ou “você deve amar futebol e deve ser devassa”. Comentavam do meu sotaque, do meu jeito. O sentimento de não pertencer me fez sentir, muitas vezes, até meio desamparada. 

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Você sofreu muito bullying ao morar em Quito. Como foi lidar com isso?
IG: O bullying no Colégio Americano de Quito deixou uma marca profunda em mim. Mesmo depois de ter feito anos de terapia, ainda sei que gera alguns gatilhos de insegurança, em especial quando alguém faz piadas mais sarcásticas comigo. Espero algum dia poder superar isso. Eu tive depressão, bulimia e até me cortei em alguns episódios, acho que nem tanto para me matar, mas para distrair a dor emocional que sentia e, no fundo, para chamar a atenção para a seriedade sobre o assunto. Foi somente aí que o psicólogo da escola chamou meus pais e os pais das garotas que faziam bullying. Quando me formei, enquanto os outros choravam de tristeza, eu chorava de felicidade desse pesadelo acabar. Meus pais não quiseram me colocar em outro colégio porque aquele era considerado um dos melhores e também porque diziam que tinha que aprender a ser dura e enfrentar as pessoas. 

“O sentimento de não pertencer me fez sentir, muitas vezes, até meio desamparada.”

GS: Em quantas cidades já morou? Você se vê vivendo em uma única cidade para sempre?
IG: Morei em Moscou, Quito, Roma, São Paulo, Madrid, Nova York, Atlanta e agora estou em Budva. Se vou ficar aqui pra sempre? Tenho certeza de que não. Espero um dia achar uma cidade onde encontre algo que me prenda e faça aprofundar as minhas raizes. 

GS: O que busca em uma cidade para viver?
IG: Busco segurança para poder caminhar na rua sem medo de ser assaltada, poder falar no celular ou tirar fotos sem ter uma crise de ansiedade, natureza e arquitetura bonitas, pessoas abertas, cultas e que se importem com os outros. E, obviamente, um custo de vida que corresponda a minha renda. Isso é qualidade de vida, né?

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Você é designer de joias e vem se tornando uma influenciadora de viagens. Por que o desejo de compartilhar esse conteúdo?
IG: Quero procurar cidades menos conhecidas para as pessoas saberem que existe muito, além dos clichés, para se conhecer. Lugares onde elas possam aprender sobre culturas que não foram tão influenciadas pelo turismo, mais autênticas e que não ofereçam um turismo “americanizado” e sem profundidade. Também espero inspirar, entreter e ajudar as pessoas a sonhar grande. Se alguém não consegue viajar fisicamente, ao menos que possa “viajar” mentalmente. 

GS: Você usava o upcycling de materiais na sua marca. Por que essa escolha e quais as principais influências da sua marca?
IG: Eu fazia muito uso de upcycling na Gatsalosophy, que aliás, vai mudar de nome para Gatsalova. Queria ter um impacto positivo no meio ambiente, e, ao mesmo tempo, dar nova vida a velhas histórias, uma renovação energética de certo tipo. Sabe aquele anel que ficou depois do divórcio? Para que ter ele numa gaveta, com a energia estagnada de uma história que não deu certo? O fogo purifica e transmuta. Quero dar um final feliz à história das peças que nos traziam memórias tristes. A principal influência da minha marca era a arte surrealista, em especial, mas achei uma nova musa para mim que, justamente, é o mix multicultural.

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