Comportamento

entrevista com Milo Araújo

“Acho injusto precisar fazer uma mudança geográfica dentro da cidade para poder não só ter, mas ser”

Co-fundadora do Malungada, coletivo de pedal para pessoas negras e pardas, conta sobre as transformações promovidas pela bicicleta na sua trajetória de mulher periférica. Por Larissa Saram

O lugar onde nascemos pode ser definidor dos caminhos que a gente escolhe – ou deixa de escolher por falta de opção. No caso de Camila Araújo, a Milo, foi preciso muita caminhada para escapar do destino quase certo para a maior parte das meninas que nascem e moram no Capão Redondo, bairro do extremo da zona sul: ser mãe e ficar por lá mesmo. E essa caminhada da Milo é quase literal – ela andou muitos quilômetros para ir e voltar da escola no Ensino Médio e depois, já na faculdade, cruzava três linhas de ônibus para cursar Publicidade numa faculdade no centro de São Paulo. 

Foram esses longos deslocamentos que despertaram na Milo a noção dolorida de desigualdade de oportunidades que distâncias geográficas cavam numa cidade como São Paulo. Ficar com a família no Capão não podia ser uma escolha. E o que nasceu como revolta se transformou em militância. Hoje, a diretora de arte de 31 anos divide a rotina entre o trabalho em uma agência e as tarefas da Malungada, guia de pedal para pessoas negras e pardas. Criado em 2019, o coletivo tem cerca de 50 pessoas e se posiciona como “pedal de entrada”, ou seja, é para quem tem medo de pedalar, nunca pedalou ou acha que andar de bicicleta não é para qualquer um.

Nessa conversa para o “Mulheres e a Cidade”, Milo conta sobre as experiências vividas na periferia da cidade e como a bicicleta virou ferramenta de transformação para ela e para a galera da Malungada.

Larissa Saram: O quanto você acha que nascer e morar em um bairro da periferia impactou na sua circulação pela cidade?
Milo Araújo: Sempre fiz escola pública e todas eram perto de casa. Quando fui fazer o Ensino Médio, a escola ficava no Brooklin e naquela época ainda não existia a Linha Lilás do metrô. Tinha que caminhar para ir e voltar de lá. Acordava às 5h, atravessava o fim do baile funk para poder chegar às 7h. Via as outras crianças, das escolas particulares ao redor, e elas não tinham que batalhar tanto assim para chegar lá, geograficamente. Então, os acessos não eram facilitados, era uma questão de até onde você consegue ir na cidade. 

LS: E conforme você foi ficando mais velha, essa noção de que a cidade não é igual para todo mundo foi ampliando, né!? 
MA: Quando entrei na faculdade, isso ficou muito mais escrachado. Percebia que era tão inteligente quanto as outras pessoas, mas elas conseguiam ficar a tarde toda na faculdade, estudando, e eu tinha que voltar porque o meu caminho era longo. Quantos laços, projetos nasceram depois das 22h30, porque as pessoas moravam perto e conseguiam ficar mais tempo na Avenida Paulista? E eu não ficava, não podia perder o último ônibus do Terminal Capelinha. Sempre tive essa sensação não do quê eu estava perdendo, mas o quê estava me sendo negado, porque nem todo bairro é centro.

Mesmo nascida e criada na cidade,
morei em repúblicas junto das pessoas
que vinham do interior. Foi mais ou menos
nesse momento que a questão do acesso
à cidade começou a criar mais forma
dentro de mim, antes era só uma revolta

LS: Nessa época você já pensava sobre tudo que envolvia os acessos ao espaço público?
MA: Carrego até hoje esse sentimento, acho injusto o fato de eu precisar fazer um movimento de mudança geográfica dentro da cidade para poder não só ter, mas ser. Assim que terminei a faculdade, saí da casa dos meus pais porque percebi que não ia conseguir competir com os outros estagiários da minha área se tivesse que fazer todo aquele trajeto o tempo inteiro. Ia demandar muito de mim. E aí mesmo sendo uma pessoa que foi nascida e criada na cidade, morei em repúblicas junto das pessoas que vinham do interior para poder acessar os lugares do centro e tudo que vinha junto deles. E foi mais ou menos nesse momento que a questão do acesso à cidade começou a criar mais forma dentro de mim, antes era só uma revolta.

LS: Quando foi que a bicicleta se tornou essa ferramenta de transformação?
MA:
Eu era estagiária, morava no bairro do Sumarezinho, dividia um apartamento com mais 8 meninas – olha o que a gente se submete pra não precisar pegar 3 ônibus pra ir e 3 pra voltar. Trabalhava na Vila Olímpia, e a Vila Olímpia é um bairro muito específico quando a gente vai falar de urbanismo, porque ele é horrível, né!? Não se acessa de jeito nenhum. Fui ficando muito estressada com o trânsito. E pensei: nossa, fiz todo esse esforço de mudança para ter facilidade e não estou tendo nenhuma. Foi aí ouvi falar de uma bicicleta elétrica. Como achava que não tinha condicionamento físico para pedalar por quilômetros, pegar ladeira, comprei. E comecei a ir e voltar do trabalho com ela. Até que reparei nos grupos de pessoas que pedalavam juntos e passei a acompanhar. Depois de dois meses, vendi minha bicicleta elétrica e comprei a fixa, que não tem marcha, nada, é quase uma extensão do meu corpo. É com ela que ando até hoje.

LS: Então o coletivo teve muita força nessa sua mudança, né!?
MA:
Com certeza. Ajudou muito trocar com outras pessoas porque passei a observar como elas se comportavam na rua a partir do fato de que sabiam quais eram os direitos delas quando estão pedalando. Do tipo: você não precisa ficar pedalando do ladinho da faixa, quase na canaleta. A bicicleta é um veículo, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, então você pode andar no meio da faixa. E se você anda dessa forma, como mais segurança, a possibilidade de um motorista passar a dois metros é muito maior do que se ele percebe que você tá se escondendo, como se não pudesse estar ali. É você realmente conquistando o seu espaço na rua. Se hoje consigo andar na rua sozinha, foi muito porque absorvi esse conhecimento dos grupos.

LS: Qual papel a bicicleta tem na sua trajetória?
MA: A bicicleta mudou minha vida. Para ser publicitária e diretora de arte atuante nesse mercado tão paulistano, tão central, tão Vila Madalena e Vila Olímpia, e acho que até para ter conquistado esse lugar que ocupo hoje, tudo passa pela bicicleta. Expandi meus caminhos. Não é só mais ir para o trabalho, mas já fui, por exemplo, para a balada de bicicleta. Essa coisa de conseguir voltar a hora que quer é de uma liberdade incrível. E também a sensação de que você faz parte de uma da cidade, porque quando você tá dentro do carro, parece que está apartado da sociedade, não se relaciona com o que está do lado de fora. A bicicleta mudou o jeito que eu sou pedestre. Estou sempre olhando nos olhos dos motoristas, porque é assim que a gente consegue prever o movimento que vão fazer. E isso muda toda a sua dinâmica própria do trânsito.

Os motoristas de carro, os caminhoneiros
nem acreditam que tem uma mulher
pedalando ali, do lado deles. É como se
a gente desenvolvesse um outro músculo
para suportar isso. É uma cidade que as
mulheres acessam e que os homens não acessam

LS: Acha que por ser uma ciclista mulher, é vista de maneira diferente?
MA:
Sim. Quando paro no farol, por exemplo, com mais 10 motoqueiros, as chances de assédio são muitas. Já fui muito assediada assim, mas não reajo porque eu estou pedalando, então normalmente eu tô preocupada com o meu caminho. A gente é muito subestimada também. Os motoristas de carro, os caminhoneiros nem acreditam que tem uma mulher pedalando ali, do lado deles. É como se a gente desenvolvesse um outro músculo para suportar isso. É uma cidade que as mulheres acessam e que os homens não acessam. Sem falar das rotas, tem muitas delas que não nos são permitidas por conta da violência. Tem lugar que não passo se não estou acompanhada de um homem. A nossa experiência de cidade é completamente diferente.

LS: Hoje você participa de um grupo de pedal chamado Malungada. Como funciona? 
MA: A Malungada é um grupo especial para pessoas negras e pardas. Em cada recorte a gente acha as próprias questões. Fundamos esse coletivo no final de 2019, é um lugar onde me sinto confortável para pensar e contribuir com as pautas de de mobilidade urbana, até porque como a minha entrada de fato nesse mundo se deu por conta da minha experiência periférica, e as pessoas pretas e pardas, no geral, se encontram nos extremos da cidade. Para mim foi muito meu gancho assim pra poder militar na área.

LS: Por que que vocês sentiram necessidade de fazer esse grupo com recorte de raça?
MA: Porque a maior parte das pessoas que pedala em São Paulo são pessoas negras, mas a maior parte das pessoas que pedala em São Paulo e se consideram ciclistas são pessoas brancas. Pra nós, é negado o esporte, o lazer. Então, assim como é para as mulheres – e aí a gente tem a intersecção também, o corpo das pessoas negras é impactado de um jeito diferente na cidade. Por exemplo: como a gente é visto em grupo? Nós não usamos uniforme, então não nos parecemos com um grupo de ciclistas de classe média. É um monte de gente negra pedalando. 

LS: E como vocês atuam de fato?
MA:
A gente se coloca como pedal de entrada, o que significa é que a gente acolhe quem tem medo de pedalar ou nunca pedalou ou não tem fluidez. A gente não é da igreja da bicicleta, a gente é da igreja do acesso à cidade. Pensamos em intermodalidade, em como começar a conquistar a cidade através das ferramentas, como a bicicleta. E aí quando a gente vai falar sobre pessoas negras e entregas, aí vamos para um outro ponto. Essas são as que mais pedalam e não são consideradas ciclistas. Então, na Malungada a gente não se reúne só para pedalar junto, a gente pensa no que isso significa. 

LS: Como tudo isso é organizado?
MA:
A gente tenta trabalhar o máximo que dá na linha da horizontalidade. Temos cúpulas de trabalho da Malungada e temos Comissões, como a Comissão de Ética, que trata de assuntos mais sensíveis. Por exemplo, quando tem uma treta envolvendo um cara que entrou no pedal e que não paga a pensão do filho. Vamos expulsar sem conversar? A gente vai negar esse espaço de esclarecimento pra ele trocar? Temos a Comissão de Direito à Cidade, que tá tentando entender como funcionam os conselhos consultivos. A gente quer ter voz dentro do jogo opinativo. 

LS: E como faz para participar da Malungada?
MA:
Normalmente as pessoas veem a chamada no Instagram e colam num pedal com a gente. Ir uma vez não cria compromisso. Se a pessoa colar no pedal pela segunda vez, aí a gente convida para fazer parte da nossa comunidade, que é um grupo no WhatsApp. Ali é um lugar de relacionamento, onde a gente brinca, se indica, flerta. E lá tem uma Comissão de Acolhida, responsável por introduzir nossos valores. Nós somos pessoas negras, mas as pessoas negras são muito diversas. Quando a gente resolve que a nossa intersecção vai ser uma bicicleta, bicho, você saia da sua bolha real. Isso é muito interessante! É um desafio, mas maravilhoso. 

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