Para que servem as ruas e ciclovias? Apenas para nos levar de um ponto a outro ou para, de fato, ser um espaço de encontro público. Foi esse pensamento que invadiu a vida e a rotina da jornalista Thalia Verkade quando ela voltou à Holanda depois de ter sido correspondente internacional na Rússia para o jornal diário holandês NRC. A holandesa, que amava seu Lada Niva, um jipe russo criado no fim dos anos 1960 para suportar todo tipo de estrada e obstáculo, percebeu, principalmente depois de ser mãe e se ver cerceando o filho de brincar na rua porque pode ser perigoso, que o espaço público, que é nosso por direito, não é acolhedor. E assim decidiu adotar a bicicleta na sua rotina e pesquisar mais sobre o assunto.
Só que ela se deparou com questões ainda mais complexas. Não é o aumento de ciclovias que resolve a questão da urbanidade. Ao contrário, era preciso ir além e entender como o carro, e até mesmo as bicicletas, tinham se tornado símbolo de uma correria desenfreada das cidades. E a Holanda não era o paraíso perfeito dos ciclistas como todo mundo imagina. Foi do encontro com o especialista Marco te Brömmelstroet, professor titular da cadeira Futuros em Mobilidade Urbana no Instituto de Pesquisa Social de Amsterdã da Universidade de Amsterdã e diretor fundador do Urban Cycling Institute, que ela mergulhou no tema com perguntas como “por que aceitamos que o espaço público é inseguro para nossa locomoção?”. O resultado de conversas, pesquisas e insights é o livro “Movimento: Como Reconquistar nossas Ruas e Transformar Nossas Vidas” (Editora Perspectiva), recém-lançado no Brasil, em que os dois mostram como os esforços para que o trânsito flua trazem um enorme desgaste humano e questionam o que são e para quem são as nossas cidades.
Entre os pontos de reflexão de Thalia, a questão-chave é como devolver os espaços públicos às pessoas e transformar o ir e vir em uma ação cotidiana sem medo ou angústia. “A percepção de que a aparência atual das ruas é resultado de escolhas, e não uma lei da natureza, é essencial para uma real mudança“, afirma a jornalista em nossa conversa por e-mail para o “Mulheres e a Cidade“.
Graziela Salomão: Quando a questão da mobilidade dentro das cidades se tornou um tema de atenção pra você?
Thalia Verkade: Muito tarde. Até escrever este livro, eu só tinha como certo que era preciso apertar um botão para atravessar a rua e pensava que a prioridade era um trânsito mais rápido. Depois que me tornei mãe, minha conscientização aumentou: de repente, me vi gritando com meu filho de dois anos para não correr para a rua! Quando você pensa nisso, é bem estranho que crianças de dois anos sejam responsabilizadas por não serem mortas em sua própria rua por causa de adultos que dirigem carros potentes.
GS: Qual foi a principal descoberta sobre o potencial das ruas para sua construção como mulher? E sobre o impacto das ruas na construção da comunidade?
TV: Uma coisa que me impressionou foram as semelhanças entre a máquina econômica (o dinheiro deve fluir), a máquina de trânsito em que muitas cidades se tornaram (o tráfego deve fluir) e as linhas de montagem de fábricas (as coisas devem fluir). Momentos de parada e congestionamentos são ruins para todas essas máquinas. Acredito que essa é a “dura” lógica industrial clássica, que não leva em conta as questões sociais e humanas sobre para que servem as ruas. Chamar isso de lógica masculina versus feminina é polarizador e não é verdadeiro, mas essa lógica industrial foi desenvolvida e imposta às cidades na cultura ocidental masculina dos séculos XIX e XX. As cidades, para mim, não são uma coleção de ruas e prédios, mas sim um encontro de pessoas tentando viver juntas. A lógica industrial não tem boas respostas para as perguntas que surgem aqui e prejudicou severamente a maneira como as pessoas viviam e vivem juntas. Por exemplo, tornando a maioria das ruas perigosas, possíveis lugares letais para atravessar a pé.
GS: Como podemos devolver as ruas às pessoas? E o quanto isso seria positivo?
TV: A percepção de que a aparência atual das ruas é resultado de escolhas e não uma lei da natureza é essencial para uma real mudança. Este é o nosso espaço público. Nós, cidadãos de qualquer cidade, devemos ser capazes de imaginar novas realidades. Não apenas soluções dentro do sistema de trânsito, mas fora dele. Também perceber que muitas pessoas (a maioria, eu diria) sentem desconforto e medo por elas mesmas, por seus filhos, seus pais, e provavelmente prefeririam viver uma vida mais relaxada, pode ajudar a pensar em saídas. Esta não é uma opinião minoritária. Você não é um ativista quando quer essa mudança, mas sim apenas um ser humano.
“A percepção de que a aparência atual das ruas é resultado de escolhas e não uma lei da natureza é essencial para uma real mudança. Este é o nosso espaço público.”
GS: O epílogo do livro é sobre os próximos passos para mudar essa realidade. Na sua opinião, quais seriam as 3 principais ações que você lista como indivíduo e coletivamente para mudar as cidades?
TV: Listaria as seguintes ações:
1- Encontre pessoas com ideias semelhantes, humanos que tenham uma mente lúdica, mesmo diante da violência nas estradas e do domínio atual da lógica e dos padrões industriais em nossa sociedade.
2 – Organize eventos comunitários divertidos e experimentos temporários que questionem essa lógica da máquina. Experimentos famosos são domingos “sem carros”, bicibus – quando um grupo de pessoas se juntam para levar as crianças para a escola de bicicleta como uma comunidade – ou parklets. Tente influenciar políticos locais, mídia e outras pessoas convidando-os para seus eventos.
3 – Aproveite esse processo independentemente do resultado. Mesmo que nada mude por enquanto, vocês terão feito isso juntos e isso valerá a pena. Pare ou dê um tempo se ficar frustrado.
GS: Depois da pesquisa intensa que você fez para o livro, como é a cidade para você? E para quem ela é feita?
TV: É uma bênção e uma maldição perceber o que destruímos e estamos destruindo. Entender isso me ajudou e me “alimenta” (risos) a fazer mudanças, mas muitas vezes me sinto impaciente com a lentidão com que o sistema muda. Isso também vale para o sistema econômico que foi construído sob a mesma lógica industrial e orientada para a produção.
GS: Quando pensamos nas cidades holandesas, geralmente temos a imagem de pessoas andando de bicicleta e ocupando as ruas. O quanto isso é importante para a conscientização das pessoas sobre a cidade?
TV: A bicicleta é uma coisa maravilhosa, pois pode unir muitos objetivos: andar com facilidade e independência, aproveitar a vida e a liberdade sem tirar a liberdade dos outros, se divertir, se tornar mais ágil e saudável no processo. Mas na Holanda, hoje em dia, ela se tornou um instrumento para andar o mais rápido possível, em uma ciclovia separada, junto com motoristas de carro que fazem exatamente o mesmo em suas faixas. Bicicletas acabam sendo carros de duas rodas! Acho que ter mais pessoas pedalando não deveria ser o objetivo das ruas. Ser capaz de usar a rua como um espaço para muitas atividades diferentes, por todos, incluindo crianças, é o que eu gostaria. E o andar de bicicleta socialmente ou de forma lúdica seria uma dessas atividades.
“Ser capaz de usar a rua como um espaço para muitas atividades diferentes, por todos, incluindo crianças, é o que eu gostaria. E o andar de bicicleta socialmente ou de forma lúdica seria
uma dessas atividades.”
GS: Andar pela cidade faz parte da sua rotina?
TV: Não tanto hoje em dia, atualmente gosto de andar pela natureza, descobrindo quais insetos e pássaros estou vendo. É um novo campo de interesse para mim depois de todos esses anos pensando sobre a cidade.
GS: Como você acha que mulheres em outras cidades, como São Paulo, podem se inspirar no exemplo das mulheres holandesas?
TV: Acho que para mulheres que hesitam em pedalar, eu diria que vale a pena tentar, aprender, mesmo em uma cidade como São Paulo, talvez juntas ou primeiro em algum lugar seguro, porque pode dar a você uma sensação divertida de liberdade e autonomia. Claro que estou falando de uma posição confortável. Também pedalei muito por um ano e meio em Moscou, dez anos atrás. A maioria das mulheres (e homens) holandesas anda de bicicleta e mal tem consciência do que perderia se tivesse que ficar sem isso. Mas tenho certeza de que isso molda como nos sentimos sobre a vida de uma forma positiva.