Cultura

entrevista com Fênix

“É nas ruas que percebo as vivências do povo em todas as suas nuances”

A artista afroindígena conta como é a rotina de trabalho nos espaços públicos e como as mulheres colaboram para que o grafite seja visto como um tipo de manifestação artística legítima. Por Larissa Saram

Fazia tempo que queríamos conversar com a Fênix e trazer esse papo aqui para o “Mulheres e a Cidade”. A artista carrega para o grafite as raízes indígenas herdadas da família paterna, que pertencente a etnia Tabajara, da cidade de Ubajara, Ceará. Nos traços desenhados nos muros ela imprime um legado ancestral. É tudo tão bonito, que fica difícil não perder a noção do tempo ao bater o olho nos desenhos coloridos que ela posta no Instagram.

Fênix é o nome artístico de Sthefany Santos de Oliveira. Nascida na periferia da zona sul de São Paulo, mudou com a família aos 10 anos para Minas Gerais. É lá, inclusive, que está a maior parte das suas obras – mas há grafites também em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. A conexão com as ilustrações começou ainda na infância, por influência do pai: “Ele foi minha primeira inspiração, sempre encontrando maneiras de expressar a criatividade através de desenhos em qualquer lugar – cartas, guardanapos, até mesmo papel de pão. Cresci observando os passos dele de perto”, contou a ilustradora em uma de nossas trocas de mensagem pelo WhatsApp.

Além de detalhar o começo da carreira, na entrevista a seguir Fênix fala sobre a experiência de ser uma mulher trabalhando na rua o tempo todo e como é fazer parte de um movimento ainda carregado de estereótipos e machismo.

Larissa Saram: Como a arte chegou para você?
Fênix: Meu pai foi minha primeira inspiração, sempre encontrando maneiras de expressar a criatividade através de desenhos em qualquer lugar – cartas, guardanapos, até mesmo papel de pão. Cresci observando os passos dele de perto. Durante minha infância, fui profundamente cativada pelos desenhos e, nessa mesma época, comecei a admirar os grafites na cidade. Eles marcaram meus primeiros contatos significativos com a arte.

“Me sinto constantemente atenta
e vigilante. Na vida urbana, me deparo
com o assédio e o preconceito, mas
também com experiências
enriquecedoras e momentos
únicos de conexão e aprendizado”


LS: Seu trabalho é uma investigação sobre a ancestralidade. Da onde nasceu a relação com esse tema?
F: Quando dei meus primeiros passos na pintura, busquei expressar minha mais profunda verdade, resgatando e honrando minhas raízes indígenas, que vêm do lado paterno. A cidade que meu pai nasceu e cresceu, se chama Ubajara, no Ceará. Somos da etnia Tabajara. Essa jornada me levou a uma conexão mais profunda com o legado ancestral, enxergando-o como uma fonte essencial de sabedoria e inspiração.

LS: A rua não é um lugar onde as mulheres são bem-vindas. Como você se sente quando começa um projeto de grafite na rua?
F: Me sinto constantemente atenta e vigilante. Na vida urbana, me deparo com o assédio e o preconceito, mas também com experiências enriquecedoras e momentos únicos de conexão e aprendizado. Assim como em muitos espaços, a presença de mulheres negras é de suma importância. Principalmente enquanto referencial de autonomia, existência, admiração e potencial.

“Já tive muitas vivências, uma vez
pintei num viaduto e convivi com
mulheres que moravam na rua,
que me passavam os relatos de abuso.
É um contato que eu não consigo
me privar, não é ser só artista, mulher,
a gente acaba vivenciando muitas
histórias que as pessoas nem imaginam
que a gente possa ter acesso”

LS: O ato de grafite pressupõe o perigo e a tensão, e é o que atrai o grafiteiro, como também o que repele a grafiteira. Como transpor isso?
F: Acho que esse desejo de tensão, de perigo, está presente em outras artistas também, não vejo que é exclusivo dos homens. Porém, ela é somada a muitos outros medos e perigos que estão ali na rua. Eu não gosto da ideia de anular esses outros sentidos. A maneira que a gente segue, transpondo e tal, é criando elos. Amizades, grupos, uma comunidade entre nós que acaba se fortalecendo. Existe esse “ir” sozinho, mas o coletivo é muito forte. É o que dá sustentação para continuar.

LS: O que as pessoas não fazem ideia que uma grafiteira passa?
F:
Essa violência que a gente passa, que reportamos entre nós, dentro dos nossos grupos. Óbvio que uma mulher vai sofrer assédio, mas quem não consome arte, não está por dentro, acho que não para para pensar sobre isso. Por parecer algo distante, mesmo, sendo que ocupar a rua está para uma artista, mas está também para milhares de outras mulheres. Já tive muitas vivências, uma vez pintei num viaduto e convivi com mulheres que moravam na rua, que me passavam os relatos de abuso. É um contato que eu não consigo me privar, não é ser só artista, mulher, a gente acaba vivenciando muitas histórias que as pessoas nem imaginam que a gente possa ter acesso.

LS: O que deveria melhorar para que vocês trabalhassem com mais tranquilidade?
F: Não consigo pensar uma resposta que não fale mudar totalmente a nossa sociedade. Penso que o que a gente sofre é algo que passa por mim, e aí, beleza, eu estando na rua, pintando, num lugar de vulnerabilidade, posso passar mais vezes que uma outra mulher, mas que nós, enquanto mulheres, passamos. Essa violência atravessa todas, principalmente, claro, quem está na rua, mais exposta. Não consigo pensar numa resposta pra gente, que trabalha na rua sem pensar no estado todo. É uma reforma total de pensamento, de estrutura social. Acredito que a gente consegue impactar e criar uma pequena esfera, que fica grande até que um dia muda a sociedade. Não ando com descrença, mas se o pensamento do que é uma mulher, dessa estrutura machista, não for quebrada real, eu, enquanto artista que estou na rua, não vou colher essa tranquilidade, e a mulher que está no farol, na feira, também não vai colher.

“Não ando com descrença, mas se
o pensamento do que é uma mulher,
dessa estrutura machista, não for
quebrada real, eu, enquanto artista
que estou na rua, não vou colher
essa tranquilidade, e a mulher que
está no farol, na feira, também
não vai colher”

LS: Existe um movimento conservador que associa o grafite ao vandalismo. Como você acha que o trabalho das mulheres colabora para que o grafite seja visto como um tipo de manifestação artística legítima?
F: Primeira vez que alguém me traz essa pauta e ela tem muitos caminhos. Acho interessante porque a mesma estrutura machista, que repele, é a que nos coloca num lugar de fragilidade e também de romantização, de delicadeza. Mesmo que muitas de nós não façam um trabalho que seja condizente com isso, com esse “feminino”, por outro lado, a maior parte, eu acho, faz. E a ocupação desses lugares, juntamente com a abertura da linguagem do grafite para essa retratação mais feminina, do feminino, acaba de certa forma expandindo o espaço para um lugar que não vai ter só “violência”. Ao mesmo tempo, muitas dessas retratações, ali dentro das pinturas, têm um significado de resistência contra a violência. Quem está de fora pode não absorver totalmente o discurso e propósito, mas há sempre algo muito forte, que é lido só com o estereótipo do que é feminino e por isso se torna, de alguma forma, mais brando, mais aceito.

LS: Como é a sua relação com o espaço público? Quando não está trabalhando, gosta de explorar a cidade?
F: Minha interação com a cidade é permeada por uma profunda observação e contemplação. É nas ruas que percebo as experiências e vivências do povo em todas as suas nuances, e como constantemente faço intervenções na estética urbana, me mantenho constantemente. atenta ao mundo ao meu redor. Explorar e vivenciar a cidade é uma verdadeira paixão para mim.

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