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entrevista com Lisa Schipper

“Se não tivermos equidade de gênero, não poderemos ter uma cidade resiliente”

Especialista estadunidense defende que as cidades serão mais preparadas para enfrentar as alterações climáticas se as mulheres participarem do planejamento e das decisões. Por Graziela Salomão

Uma das piores tragédias climáticas do Brasil expõe a face mais sensível e vulnerável das cidades: elas não estão preparadas para evitar catástrofes ocasionadas por mudanças do clima que devem cada vez mais fazer parte da nova realidade e impactem homens e mulheres de forma muito diferentes. 

Sim, a questão de gênero é uma das principais razões para que os efeitos de eventos extremos e, consequentemente, as migrações ocasionadas por eles afetem de maneira desigual. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 80% das pessoas forçadas a abandonarem suas casas ou cidades por consequência da crise do clima, como tempestades, secas, furacões e ondas de calor ou frio intenso, são mulheres. E por que elas são as maiores vítimas? “As mulheres tendem a ser as mais marginalizadas em todas as dimensões da vida”, explica Lisa Schipper, pesquisadora de Ciências Sociais e Ambientais e professora de Desenvolvimento Geográfico da Universidade de Bonn, na Alemanha, em entrevista a “Mulheres e a Cidade” desta semana. A especialista investiga como a vulnerabilidade sociocultural relacionada a gênero, cultura e religião nos países do Sul Global são influenciadas pelas alterações climáticas. 

Co-autora de um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, em inglês) publicado em fevereiro de 2022, a estadunidense aponta como as consequências do clima afetam as pessoas que sofrem as desigualdades sociais das cidades. “Quando você é excluído do clube de tomada de decisão – como é o caso da maior parte das mulheres em grande parte dos países -, você não pode tomar decisões sobre os recursos que sabe que precisa”, descreve no documento. 

Lisa busca saber se o desenvolvimento justo e equitativo é possível num clima em profunda transformação. “As mulheres precisam participar em todos os aspectos do planejamento das cidades do futuro”, afirma. Em tempos nos quais os olhos dos brasileiros estão voltados para o longo caminho de reconstrução que as cidades do sul do país irão percorrer, a inclusão mais igualitária das decisões femininas será fundamental. Confira a entrevista.

Cestas básicas entregues para famílias atingidas pela enchente em suas casas em Porto Alegre | Foto: Adriana Corrêa/ SMGOV/ PMPA

Graziela Salomão: Sobre o apontamento em relação a quem toma as decisões nas grandes cidades do mundo que você fez no relatório do IPCC em 2022, de que forma essa questão de gênero afeta a vida nas nossas cidades? E como mudar isso?
Lisa Schipper: As mulheres usam as cidades de maneiras diferentes dos homens. Elas precisam se sentir seguras, por isso a iluminação e os espaços seguros durante a noite são importantes. As mulheres são, muitas vezes, responsáveis no cuidado das crianças e procuram locais onde possam se sentar, brincar ou correr em segurança. Como os homens não pensam nestas coisas, não priorizam essas demandas quando projetam as cidades. No que diz respeito às alterações climáticas, na maioria das vezes são as mulheres que fazem as compras de mercado, mesmo que estejam trabalhando, que pegam os ônibus de volta para casa com esses alimentos. Por isso, precisam de lugares para esperar pelos ônibus que não sejam expostos ao sol escaldante e que tenham a certeza de que os veículos não estarão muito quentes. Estes são apenas alguns exemplos.

GS: As catástrofes climáticas têm sido uma nova realidade em muitos países. Aqui no Brasil, estados alternam períodos de chuva forte e calor e seca extremos. Como governos e políticas públicas poderiam prever e antecipar ações para evitar essas catástrofes?
LS: Hoje em dia é muito difícil prever qualquer coisa, por isso todos precisam pensar na prevenção – quais são os pontos fortes e fracos de cada cidade ou município, por exemplo? E quem são as pessoas com maior probabilidade de serem afetadas negativamente por eventos climáticos extremos? Estas pessoas participam na tomada de decisões ou são marginalizadas? Acredito que focar no estado de risco agora é fundamental para poder determinar o que precisa ser melhorado.

“Reduzir a vulnerabilidade não se trata apenas de preparação, trata-se de reconhecer processos estruturais que tiram as pessoas marginalizadas da tomada de decisões”

GS: Essas catástrofes climáticas serão vistas cada vez com mais frequência?
LS: A menos que descubramos como reduzir a nossa vulnerabilidade aos impactos das alterações climáticas, sim. Só que reduzir a vulnerabilidade não se trata apenas de preparação, trata-se de reconhecer processos estruturais que tiram as pessoas marginalizadas da tomada de decisões. Por exemplo, quem vive em assentamentos informais, quem vive nas áreas mais expostas? É provável que sejam aqueles que são mais pobres e têm menos acesso aos serviços. Por que? Principalmente por causa do racismo estrutural e de outras formas de opressão. Estes são os motores da crise climática – e não os próprios gases com efeito estufa.

GS: De que forma os países podem evitar novas tragédias?
LS: Observando atentamente os seus modelos de desenvolvimento e como causam o aumento da vulnerabilidade das pessoas às alterações climáticas.

GS: As cidades de todo o mundo serão, de alguma forma, moldadas com a crise climática, seja com o migração de população ou a mudança de estrutura? 
LS: Sim. Tanto em termos de infraestrutura como demograficamente. Acredito que esta é uma questão muito importante que precisamos levar a sério e que todos que decidem as questões urbanas precisam considerar para o futuro.

“A equidade e a justiça são fundamentais para um
futuro resiliente às alterações climáticas”

GS: Por que a mudança climática atinge mais as mulheres?
LS: As mulheres tendem a ser as mais marginalizadas em todas as dimensões da vida: sobrecarregadas com carreiras e filhos, e por vezes as únicas responsáveis por cuidar da casa; geralmente as menos representadas em posições de tomada de decisão ou de poder; e, em muitos aspectos, extremamente expostas e sensíveis às alterações climáticas porque tendem a cuidar de todos antes de si mesmas.

Mulheres e crianças caminhando nos campos perto de Dhulikhel, Nepal | Foto: Lisa Schipper

GS: O que podemos fazer para garantir um futuro para nossas cidades com essa nova realidade climática que vivemos? E como você tem visto especificamente o papel das mulheres nessa atuação?
LS: A equidade e a justiça são fundamentais para um futuro resiliente às alterações climáticas. Se não tivermos equidade de gênero, não poderemos ter uma cidade resiliente. Isto significa que as mulheres precisam participar em todos os aspectos do planejamento das cidades do futuro.

GS: Como cada pessoa, em sua rotina, poderia ajudar a evitar tragédias ambientais?
LS: Não acho que há muito que um indivíduo possa fazer além de sensibilizar amigos e familiares e votar em políticos que se preocupam e reconhecem a importância da justiça e da equidade!

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