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entrevista com Aline Torres

“Uma mulher que ocupa as ruas da cidade muda o mundo”

Primeira secretária negra de Cultura da cidade de São Paulo traz para a cadeira da área os ensinamentos e os aprendizados que teve nas ruas da periferia. Por Graziela Salomão

Foto: Larissa Saram/Púrpura Mag

Aos 38 anos, Aline Torres é daquelas mulheres que seguem seus desejos e lutam pelo que acreditam. Criada em Pirituba, periferia da zona norte da capital paulista, chegou ao secretariado de Cultura da atual gestão municipal de São Paulo mudando paradigmas: em 2021, foi a primeira mulher negra a assumir a cadeira da área. “Acho que nem eu tenho dimensão da importância disso. Talvez, quando eu saia e veja a minha fotinho ali ao lado dos outros secretários daqui uns 20 anos, vai ser impactante o fato de ter sido a primeira mulher negra a ocupar um espaço de poder”, diz, ao fazer referência à galeria de fotos dos últimos 23 secretários que passaram pelo cargo e que fica exposta no histórico edifício Sampaio Moreira, primeiro arranha-céu da cidade e sede da Secretaria, onde aconteceu nossa conversa para o “Mulheres e a Cidade”. De sua sala, a vista estonteante do centro histórico paulistano inspira a ressignificação da cidade para todas as mulheres através da Cultura. “Valorizar as mulheres nos palcos, nos territórios, é muito forte e impactante. Além disso, é uma forma de impulsionar outras mulheres a quererem estar nesse lugar”. 

Para ela, é essa força que aprendeu desde os tempos de adolescente nas ruas de Pirituba, ao som de rap e hip hop, que a faz seguir o que acredita nas mais diversas decisões. “Eu preciso ouvir, não sou dona da verdade. Mas escuto mais ainda o meu sexto sentido. Pode estar todo mundo falando “não faça”, se o meu sexto sentido falar “faz”, eu faço”, afirma. E essa determinação ela traz no currículo. Começou a atuar na Educafro, organização que tem como objetivo promover a inclusão da população afrodescendente e jovem no ensino superior, aos 16 anos. Dois anos depois, já estava envolvida com a política ao ingressar na juventude do PSDB.

Entre críticas e elogios, Aline, que deve ser exonerada até o fim do mês de março para concorrer ao cargo de vereadora nas eleições municipais deste ano, tem um sonho ainda maior: ser prefeita de São Paulo. “Obviamente tenho alguns degraus para conquistar e para me formar, mas espero um dia ser prefeita dessa cidade, fazer um secretariado com um monte de mulheres que entendam do espaço público e de gente”. Nessa conversa, Aline fala sobre descobertas, o flanar pela cidade e, em especial, como a presença das mulheres nos espaços públicos é fundamental para construir uma sociedade melhor.

Aline Torres, secretária de Cultura de São Paulo | Reprodução

Graziela Salomão: Como é ser secretária de Cultura da maior metrópole da América Latina? 
Aline Torres: É um grande desafio, mas ao mesmo tempo, uma grande alegria. Tenho uma trajetória muito diferente da dos outros secretários de Cultura que ocuparam a pasta, não só por serem homens, mas também porque todos tinham um perfil muito acadêmico. Eu trago outra vivência que me leva para um lugar de conhecer, entender os territórios, de olhar no olho de gente, que é diferente do que só ver papel. Ter uma secretária que tem esse outro olhar é tentar, cada vez mais, trabalhar e facilitar a entrada desse público diferente na secretaria. Durante muito tempo foi um público muito específico, centralizado, de artistas acadêmicos. Não é uma crítica, é um olhar diferente. Apesar de ter passado pela Academia, não foi ela que me formou, mas sim a rua. Acho que é essa minha grande diferença.

GS: A cidade sempre teve muita importância na sua vida. Como isso acontece a partir do bairro onde você nasceu e cresceu? 
AT: Nasci no Jardim Peri. Minha mãe veio de Cruz das Almas, interior da Bahia, conheceu meu pai e foram morar lá. Já criança fui para Pirituba e fiquei toda minha adolescência. Hoje moro com minha mãe no Jabaquara. Nos mudamos para ficar mais perto do posto de saúde em que ela trabalhava como servidora pública, em Diadema. Desde adolescente, sempre fui inquieta, já a ajudava na organização de casa, sabia da nossa condição financeira. Meus pais se separaram quando eu tinha 10 anos. Sempre andei muito na rua, era do rap, do hip hop, aquela coisa revoltada dos amigos que grafitavam rua. Sumia e minha mãe ficava enlouquecida. (risos) E, com essa inquietude, sempre quis fazer faculdade, mas a gente era pobre, então trabalhava desde nova. Nessa ânsia de procurar caminhos para conseguir entrar na universidade, conheci o Educafro. Depois conheci o Frei Davi e fui ser professora voluntária de literatura em Paraisópolis. Esse meu jeito me levava a organizar os moradores para fazer algo no bairro. Aos 18, me filiei ao PSDB e comecei a ir nas reuniões e a gostar daquilo. Tive a sorte de conhecer pessoas que me moldaram para um lugar muito maduro. E, na verdade, eu sempre fui meio velha (risos). Eu era de escola de samba e ficava com a velha guarda, chegava e organizava as alas. Mas tinha o sonho de ser passista, até que um dia realizei e fui rainha de bateria de um bloco. 

GS: E como foi isso?
AT: Eu ficava vendo aquelas mulheres incríveis, mas não tinha o perfil da mulher gostosa para ser uma passista. Hoje esse modelo já mudou, ainda bem! Só que, naquela época, era isso. Nunca me vi como referência de beleza, sempre andei com os moleques, tinha a perna toda rachada porque jogava bola, caía, empinava pipa. Mas, aos 25 anos, eu realizei o sonho. Foi legal, mas vi que não nasci pra isso mesmo. Tinha que sorrir muito (risos).

GS: Como secretária da Cultura, de que forma se estimula a presença das mulheres nas ruas cada vez mais e de maneira segura? 
AT: Como secretária, a gente começou a organizar, desde o Carnaval do ano passado, várias ações de proteção à mulher. Mas, no final do dia, ainda temos muitos homens nos espaços e isso passa por uma desconstrução das novas gerações. Porque o homem, seja numa mesa de trabalho ou na rua, ainda acha que tem direito de propriedade sobre qualquer coisa ou corpo que esteja em volta dele. Precisamos mesmo é de leis para eles entenderem da punição, divulgá-las cada vez mais e punir. Agora, a gente vai demorar ainda algumas gerações para que isso mude. E sabe como muda? Tendo mulheres ocupantes dos espaços de poder. 

Apesar de ter passado pela Academia, não foi ela que
me formou, mas sim a rua.”

GS: Você disse quando assumiu o cargo que “ser mulher na política era uma experiência doída e diária”. Ainda continua sendo? 
AT: Continua. É doído, mas é divertido. Por exemplo, no Carnaval de rua do ano passado, a Secretaria de Cultura fez a coordenação, o que envolvia liderar várias outras. A gente teve uma primeira reunião, eram uns 17 homens e eu. Tinha uma apresentação para mostrar com base em um decreto. Comecei a apresentar. Na primeira interrupção, ok, não me importei. Aí foi uma segunda, terceira, quarta, quinta, sexta, parei e falei: “bom, o material está impresso. Vou mandar por e-mail para todos os senhores, se quiserem fazer alguma devolutiva ou não, é isso que será seguido porque eu não consigo falar”. Eles acham que é normal, não conseguem ver o quanto isso é um lugar do machismo mesmo. Para ser ouvida, preciso falar mais alto, mais firme, aí sou brava. Sempre somos adjetivos. 

GS: Que legado você quer deixar?
AT: Nunca consigo responder a essa pergunta. Acho que o legado empírico do que é a representação. Acho que nem eu tenho dimensão da importância que é essa cadeira e ocupar esse lugar. Talvez. quando eu saia, e veja a minha fotinho ali ao lado dos outros secretários daqui uns 20 anos, vai ser impactante o fato de ter sido a primeira mulher negra a ocupar um espaço de poder. Sobre o legado de política pública, vai ser muito difícil uma próxima gestão não fortalecer o artista da ponta. A gente mudou a cultura da cidade, a descentralização do orçamento. Os eixos que trabalhamos aqui são o grande legado. Não dá para voltar a colocar um secretário acadêmico, um playboy como tinha nos últimos anos porque, se ele chegar aqui e não atender ao que as pessoas querem de verdade, não vai funcionar. A Cultura chegou num ponto e ela pode muito mais.

GS: O que é a cultura para você?
AT:  A cultura, para mim, é a maior ferramenta de transformação da sociedade. A maior porque você consegue concretizar ações. Uma criança que mora num lugar de extrema vulnerabilidade, por exemplo, pode assistir a uma contação de história e ser colocada no lugar de princesa ou rainha, realizando um sonho. Sem contar que o setor, hoje, gera muito emprego também. Quando você contrata um show, não contrata só um artista, mas toda uma estrutura. 

GS: Mulher, negra e periférica. É um cruzamento de interseccionalidades que faz, muitas vezes, todas as conquistas serem ainda mais difíceis, porém inspiração para várias outras meninas. 
AT: É incrível ouvir algo como uma senhora me disse outro dia, que a neta dela não precisaria ser empregada doméstica que nem ela porque tinha a minha imagem como exemplo. É muito forte, impactante, mas é um lugar de muita cobrança. Como se a gente não pudesse errar. Mas não me deslumbro com isso. Continuo sendo a mesma Aline, até porque dá um trabalho danado criar um personagem. Quando tem alguma manifestação, eu faço uma leitura porque aquilo tá acontecendo. Se a gente errou, vamos atrás para conversar. Agora se é uma coisa manipulada, poxa que pena. As pessoas não conseguem nem se questionar, muito massa de manobra em sua maioria. Sou muito resolvida com a vida. Já é meio caminho andado para toda essa pressão que a gente sofre. 

GS: Qual a importância de mais mulheres na política? 
AT: Temos um monte de mulher inteligente e preparada. Mas tem uma coisa que falta que é a inteligência emocional. É difícil, dói no útero mesmo, a gente naturalmente carrega isso para um outro lugar. Costumo sempre acolher mulheres e dizer “foca no seu e comece a construir esses lugares”. Quantas e quantas vezes não sentei aqui em reuniões com homens e a pessoa que veio para conversar comigo não olhava na minha cara. Falava com meu assessor, mas não comigo. Quando eu tinha algum objetivo, simplesmente abstraia, agora, quando não, eu dava um jeito de terminar e mandava embora. É um ano importante e precisamos ter mais mulheres em vários espaços de poder, não só na política. 

“Para ser ouvida, preciso falar mais alto, mais firme,
aí sou brava. Sempre somos adjetivos.”

GS: Como a cidade te atravessa como mulher? E o que ela representa pra você?
AT: São Paulo é um lugar que amo. Já viajei para alguns lugares, mas amo São Paulo. A cidade tem um ritmo, é um lugar de oportunidades. Quem se empenha em São Paulo tem oportunidade. Ela me atravessa como esse lugar que nunca me desapontou. Aqui sempre foi uma terra muito fértil, me entregou lugares bons, de oportunidade, de pessoas boas.

GS: Qual o lugar mais especial na cidade pra você? 
AT: Pirituba. É minha casa, tem meus amigos, o lugar onde ralei o joelho, né? Tem uma relação muito afetiva. Literalmente de Pirituba para o mundo.

GS: O que almeja agora na política? 
AT: É um sonho de vida. Ainda serei candidata, não, ainda serei prefeita da cidade de São Paulo. Obviamente tenho alguns degraus para conquistar e para me formar, mas espero um dia ser prefeita dessa cidade, fazer um secretariado com um monte de mulheres que entendam da cidade e de gente. 

GS: Você gosta de flanar pelas ruas da cidade? Como se sente?
AT: Talvez eu seja a exceção da exceção. Como sempre andei com as meninas do rap, a rua para mim é um lugar natural. Eu andava à noite na Luz, na Cracolândia, nos becos. Nunca tive medo de nada, até porque me sinto treinada para isso. Obviamente estamos num outro momento de sociedade, tem uma questão de pessoas em situação de vulnerabilidade, a gente se sente um pouco mais acuada de andar em qualquer lugar. Uma iniciativa como fechar a São João no domingo é legal porque você passa a perceber nossa cidade, ver um prédio histórico dos anos 50 ali. Nossa cidade é linda, nosso centro é lindo, então acho que com cuidado e cautela é possível. Se você estiver andando na rua, sentiu um cara te olhando, manda pra aquele lugar, se impõe ali como o dono daquele território também porque ele se acha dono daquele pedaço de chão. Mas, claro, com cuidado. 

GS: Como trazer a escuta das minorias, em especial das mulheres negras e periféricas, para o dia a dia da política e proporcionar uma real transformação da cidade? 
AT: Tenho dois tipos de escuta primordiais. Um de ouvir os outros. Eu preciso ouvir, não sou dona da verdade. Mas eu escuto mais ainda o meu sexto sentido. Pode estar todo mundo falando “não faça”, se o meu sexto sentido falar “faz”, eu faço. E é muito legal porque 99% das vezes dá certo. Se a gente não acredita, quem vai acreditar? 

GS: O que é uma mulher que ocupa as ruas da cidades? AT: Uma mulher que ocupa as ruas da cidade é mudar o mundo. Ao mudar o mundo dela, ela consegue ajudar o outro a crescer. Uma mulher que mora na periferia, viaja a cidade para estudar, para conseguir fazer o trabalho dela, tá mudando o mundo dela. Ela é tão foda quanto eu e você.

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