Direitos

entrevista com Leticia Sabino

“Sem considerar a perspectiva das mulheres, não conseguiremos fazer uma cidade verdadeiramente caminhável”

Fundadora do Instituto Caminhabilidade, ONG que atua para que o caminhar seja uma prioridade nas cidades, fala sobre como podemos ser otimistas em relação ao futuro do pedestre

Leticia Sabino é fundadora e Presidente do Instituto Caminhabilidade

Quando completou 18 anos, Leticia Sabino seguiu o tradicional protocolo de toda jovem vivendo num contexto privilegiado e convencional de classe média: ganhou um carro e foi aprender a dirigir. Moradora de Santo André, no Grande ABC, parte da Região Metropolitana de São Paulo, nem questionava as três horas diárias que passava dirigindo para ir e voltar da faculdade. Até que um intercâmbio na Cidade do México mudou tudo: “Pela primeira vez, me desloquei exclusivamente de transporte público, a pé e de bicicleta. Foi uma experiência completamente nova de cidade. Estabelecer essa relação com os espaços públicos e com as pessoas foi um grande encantamento”, conta a hoje Presidente do Instituto Caminhabilidade, ​​uma organização sem fins lucrativos fundada em 2012, liderada por mulheres que, para alcançar equidade de gênero e enfrentar a crise climática, desenvolve cidades em que pessoas e caminhar sejam prioridade.

No começo, a proposta era organizar passeios por diversos bairros de São Paulo e incentivar as pessoas a caminhar. Com o aprofundamento sobre o tema e acesso a dados, veio a necessidade de fazer um trabalho que abarcasse outras iniciativas, que hoje contam inclusive com um prêmio, o Cidade Caminhável. 

Na nossa conversa para o “Mulheres e a Cidade”, Letícia deu detalhes sobre como o Instituto Caminhabilidade atua e deu dicas do que podemos fazer para transformar o espaço público em um lugar melhor pra todo mundo.

Larissa Saram: O que mais te impressionou durante a sua temporada morando na Cidade do México?
Leticia Sabino:
Os mexicanos já tinham algumas iniciativas que aqui ainda não existiam na época que morei lá, de convidar as pessoas a estar mais no espaço público, como o sistema de compartilhamento de bicicletas. Achei incrível! Me cadastrei, pegava e devolvia a bike em lugares diferentes. Isso me deu uma autonomia que nunca tinha tido. E também morei perto de uma grande Avenida que abria pras pessoas todos os domingos. Aquilo era fascinante. Ver chegar gente de todos os bairros, descendo do metrô, famílias inteiras.

LS: Por que o Instituto Caminhabilidade atua no tema da mobilidade relacionada à questão de gênero?
LS:
No início, esse não era o foco. Depois de um tempo atuando, percebemos que esses meios de discussão sobre transporte ainda são muito masculinos, machistas. Qualquer coisa que eu falava tinha um “lá vem a menina falar sobre caminhar”. Também caiu uma ficha de que as outras organizações com as quais nos conectávamos sempre eram lideradas por mulheres. Começamos a pensar ” Por que nós estamos muito mais preocupadas com esse assunto do que homens?”. Essas reflexões foram combinadas com dados, por exemplo, de saber que as mulheres caminham mais do que os homens.

“São as mulheres que
assumem ainda um papel
social de cuidar das outras
pessoas. E esse papel de
cuidado não é considerado
no planejamento da cidade,
dos transportes. Caminha-se
mais por falta de opção do
que por desejo”

LS: O que está completamente conectado à economia do cuidado.
LS:
Sim. São as mulheres que assumem ainda um papel social de cuidar das outras pessoas. E esse papel de cuidado não é considerado no planejamento da cidade, dos transportes. Caminha-se mais por falta de opção do que por desejo. Isso é muito óbvio e mais óbvio na rotina delas, porque as atividades com filhos, com pais, com sogro, sogra, enfim, envolvem deslocamentos mais complexos e o sistema de transporte nunca dá conta. Tanto que mulheres de classes mais altas, quando podem, querem só dirigir. E tem também a camada da gente ser mais ameaçada pelo espaço público. Isso é quase uma dualidade: elas caminham mais, dependem mais da qualidade do espaço público, enquanto por outro lado são as mais ameaçadas. Na sociedade extremamente machista em que vivemos, nossos corpos no espaço público viram público também. Percebemos que só dava para lutar por uma cidade que é melhor para caminhar se ela tivesse a perspectiva das mulheres. Se é melhor para quem sofre mais nesse espaço público, vai ser bom para todo mundo. Sem considerar a perspectiva das mulheres, não conseguiremos fazer uma cidade que seja verdadeiramente caminhável.

LS: Como vocês atuam para promover essas mudanças?
LS:
É um tema bem transversal, temos um modelo diverso de atuação. Há duas frentes principais que se misturam: uma é promover a cultura do caminhar, entendendo que existe uma cultura do automóvel que é predominante na nossa sociedade – e quando a gente fala de cultura é tudo: música, filme, propaganda, criação de desejo. Uma cultura que pauta o desenho das cidades, que faz a gente se sentir menor por não estar dentro de um carro. A outra frente é transformar o espaço da cidade, porque a gente precisa que as pessoas valorizem o caminhar para entenderem que vamos ter que tirar espaço do carro para dar espaço para as pessoas. Pra isso, oferecemos formação e palestras para pautar o discurso público; trabalhamos com o que a gente chama de urbanismo tático, que é quando temos a oportunidade de mudar a rua, pintar uma extensão de calçada, colocar uma sinalização. Tem uma parte muito grande de participação social, de convite às pessoas para avaliar e propor soluções, aliada a uma frente de geração de dados. E atuamos com incidência política, onde acompanhamos políticas públicas. O caso mais conhecido que participamos foi para a criação da Paulista Aberta, que tem relação com a minha vivência no México. Isso vai fazer quase 10 anos e é legal que haja uma geração que nasceu e cresceu nesse contexto.

“Tem um jeito simples de
descobrir se aquele lugar
é bom para caminhar:
você sai na rua e sente
que é prioridade como
pedestre? Se não, ali
com certeza tem coisas
para mudar”

LS: Consegue passar um diagnóstico geral de como hoje as cidades estão em matéria de estrutura para deslocamentos a pé?
LS:
Existe esse panorama, que é um pouco pessimista, porque a gente ainda não tem uma organização e uma visão de uma cidade caminhável. Uma das razões principais dos nossos dados ainda serem muito ruins é a questão das calçadas. Como todas as cidades foram fazendo suas legislações para passar essa responsabilidade para quem mora no lote em frente, pros moradores, a gente fica com esse espaço na gestão pública. Ainda não conhecemos uma cidade que tenha uma autoridade do caminhar, um especialista em caminhabilidade. Isso é bem problemático porque as companhias de trânsito só atuam no espaço viário e eles têm um olhar muito do carro. Todas as faixas de pedestre nas cidades são feitas para o fluxo motorizado, por exemplo. Mas tem coisas acontecendo de forma pontual e dentro delas dá pra ser otimista. Muitas secretarias estão fazendo projetos que têm uma amplitude relevante e que conectam outros temas, como os parques lineares.

LS: Tem algum exemplo?
LS:
Tem o Parque Linear de Caruaru, que foi um dos que venceu o prêmio Cidade Caminhável. Ele foi construído em uma antiga linha férrea, que estava abandonada e cortava a cidade. E agora é um espaço para caminhar, arborizado, com um monte de equipamento de esporte e lazer e que conecta 16 bairros. Isso transforma completamente a cidade. Do ponto de vista do gênero, esses projetos não começam com essa perspectiva, mas a partir do momento que a gente pergunta sobre os resultados, há o relato de que antes meninas e mulheres não eram vistas pela região e agora elas usam o parque.

LS: Quais são as principais lacunas que dificultam a adoção da mobilidade ativa nos centros urbanos?
LS:
Tem uma questão que é forte, que é da infraestrutura mesmo. Você tem que ser jovem e atlética senão nem consegue se deslocar a pé. E tem também a questão da proximidade. Agora, com as Olimpíadas de Paris, emergiu o tema da cidade de 15 minutos. Falar sobre cidade caminhável é falar sobre estar próximo do que é básico. A gente fez uma pesquisa nacional sobre isso na pandemia, de quantos por cento da população brasileira tem acesso a 15 minutos a pé de estudo, cultura, parques, e o resultado foi baixíssimo, algo como 30%, 10%, 8%. Se você não cria acesso, não tem como a pessoa ir caminhando. E não tem como resolver só mudando o desenho das ruas, fazendo calçadas ótimas e pronto. Há outros elementos que entram nesse jogo, principalmente a distribuição do que a gente tem na cidade, em todos os territórios. A rua é uma oportunidade para distribuir isso, é um espaço como uma folha em branco, que podemos decidir usar de outras formas. Se nem todo mundo mora perto de um parque, a rua pode ser um parque, desde que a transformemos nisso. Não tem opções de compra, vamos levar uma feira semanal. E óbvio, usar os equipamentos públicos também. Tem um jeito simples de descobrir se aquele lugar é bom para caminhar: você sai na rua e sente que é prioridade como pedestre? Se não, ali com certeza tem coisas para mudar. Claro, entendendo o tipo de vocação de cada lugar. Não existe um projeto padrão, que tenha definido uma calçada assim, com árvores a cada tantos metros e etc. O gostoso do caminhar, o convite para as pessoas estarem no espaço público por prazer e não por necessidade, é poder ter lugares diversos, respeitando a identidade de cada um deles.

“Se você tem minimamente
o privilégio, alguma condição
de estar no espaço público,
de ir até lá caminhando, vá.
Porque a sua presença no
espaço como mulher vai
garantir outras”

LS: Qual é a principal dificuldade na hora de conscientizar as pessoas sobre a importância de ter cidades mais amigáveis para a mobilidade a pé?
LS:
As pessoas têm a impressão, porque foi vendido para elas, que a cidade só funciona se tiver carros circulando e com acesso total a todos os lugares. A gente viveu muito isso no processo de abrir a Avenida Paulista aos domingos, cada hora surgia um argumento novo, mas no fundo era a dificuldade de abrir mão, por um dia, por algumas horas, de circular numa única rua da cidade. É uma cultura muito intrínseca. E, apesar da maior parte das pessoas se deslocarem a pé ou de transporte público, não são elas que tomam as decisões na cidade, quem toma decisão na cidade está distante dessa realidade.

LS: Como nós, mulheres, e também a sociedade, podem se movimentar para melhorar esse cenário?
LS: Tem que estar presente nos espaços. Com a possibilidade de participar, elas devem falar como se sentem, de como é a experiência. Se você tem minimamente o privilégio, alguma condição de estar no espaço público, de ir até lá caminhando, vá. Porque a sua presença como mulher no espaço vai garantir outras. Se entender como elemento gerador de segurança de um território: se consigo caminhar à noite, posso viabilizar que outras mulheres, outras meninas, caminhem também. Sempre se ler e se entender nesse lugar. É muito sobre participação do cotidiano. É entender a sua vivência como uma vivência ativista. A nossa presença na cidade é ativista e mobilizadora.

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