Cultura

entrevista com Bel Santos Mayer

“Quero mudar o perto para a gente conseguir mudar o longe”

A educadora e ativista da causa do livro acredita que a literatura e as artes são as ferramentas que ajudam a passar pelos tempos difíceis e a mudar realidades. Por Graziela Salomão

Bel Santos Mayer é uma mulher negra usando uma blusa de cor lavanda
A escritora e ativista do livros Bel Santos Mayer acredita que a literatura é uma ferramenta de transformação social por despertar o senso crítico | Foto: Divulgação

Você lembra da sensação que teve ao conseguir ler sozinhx pela primeira vez? E a que sente quando pega um livro novo na mão?  “Se cada um de nós, leitores e leitoras, gastássemos o nosso tempo em transformar mais um não leitor em leitor, a gente estaria em outro lugar”. Esse é o grande sonho – e desafio – da educadora Bel Santos Mayer. Na área social desde os 14 anos quando criou, ao lado de amigos, uma casa de acolhida para meninas em Sapopemba, região leste de São Paulo, Bel é também coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC).

Levar os livros e a literatura aos mais improváveis espaços faz parte da trajetória dessa paulistana de 56 anos. Vinda de uma família de migrantes nordestinos, mãe doméstica e pai metalúrgico, primeira a se formar, a fazer um mestrado e a publicar um livro “Parelheiros, Idas e Vi(n)das – Ler, viajar e mover-se com uma biblioteca comunitária” (Solisluna). Há cerca de 14 anos criou, em Parelheiros, periferia da zona sul da cidade, a Biblioteca Caminhos da Leitura dentro de um cemitério. Foi na casa do coveiro que adolescentes e livros ganharam um território para vivenciar e contar novas histórias.

Conversar com Bel é um sopro de esperança de que, aos poucos e com um trabalho que depende de todxs, podemos transformar a realidade que se abateu no país nos últimos anos: a volta ao Mapa da Fome, o aumento da evasão escolar de crianças e adolescentes e outros indicadores assustadores da piora da condição de vida da população. Isso sem contar a mais recente decisão do governo estadual de São Paulo que recusou os livros impressos do Programa Nacional do Livro e do Material Didático para o próximo ano, optando por usar o material 100% digital e, consequentemente, impossibilitando a experiência tão marcante de ter um livro em mãos. “A literatura nunca foi tão importante quanto nos espaços de reconstrução”, diz Bel, na conversa deliciosa que teve com a Púrpura Mag e que você confere a seguir. Que o exemplo dela e das histórias que marcaram cada um de vocês, leitorxs, sejam inspiração para atravessar os maus tempos e mudar a realidade de alguma pessoa que esteja por perto. Boa leitura!

GRAZIELA SALOMÃO: Para você, a literatura sempre foi uma arma de revolução social. Em um país que, nos últimos anos, voltou para o Mapa da Fome, que tenta se unir e se reconstruir como nação, como você vê a educação e a literatura conseguindo exercer de novo esse poder de transformação?
BEL SANTOS MAYER:
O que nos ajudou até esse momento, mesmo com tantos dados catastróficos, e que permitiu que estivéssemos vivos foi exatamente a arte, a literatura como esse lugar do sonho, da crítica para continuar tendo projeto. Durante os quatro anos de pandemia e de pandemônio, tive com um grupo de jovens e lemos 48 livros. Chamamos de “leituras para atravessar o mau tempo”. Convidamos cinco escritores e mediadores para cada um nos indicar 10 livros para atravessar o mau tempo. E atravessamos pedindo apoio da literatura, para ela também ser a lupa que possibilite vermos  melhor. Para mim, os sentidos da literatura, e da arte de modo geral, é esse de nos ajudar a enfrentar as fake news enxergando a realidade, de enfrentar a desesperança construindo histórias que nos levem além, de aprender a conversar em período de monólogos e de tantas polaridades. A literatura precisa nos ensinar também a falar sobre as vidas, sobre os contextos. Acho que ela nunca foi tão importante quanto agora nos espaços de reconstrução. Veja quantas livrarias de rua têm se tornado presentes! Isso é ir na contramão do que estava anteriormente.

Capa do livro de Bel Santos Mayer com um grafismo em amarelo

GS: No momento em que estamos mais desacreditados é que aflora a potência da arte, da literatura para nos tirar desse fundo do poço?
BSM: 
Acredito que sim. Por mais que, nos contextos difíceis, a gente tenha a vontade de ficar sozinho, nunca estamos sós totalmente, né? Você pode ter plantas. Pode ter quadros. Pode ter livros que vão te fazer companhia. Quer melhor companhia que as personagens e as histórias? Queremos histórias que nos ajudem a dar sentido e até a lembrar quem a gente já foi. Precisamos, às vezes, lembrar de quem fomos para perceber que podemos mudar, que os outros também podem mudar. Para mim, a literatura é esse lugar da esperança.

GS: A sua história é de potência inspiradora para tantas outras mulheres. Qual é o legado que você quer deixar com ela?
BSM:
É mais fácil perguntar para outras pessoas, né? Mas eu acho que o meu legado vai ser aquele de apostar nas mudanças miúdas. Não acredito em grandes transformações que não dão atenção pra aquilo que acontece no cotidiano, o que eu chamo de miudezas. Manuel de Barros, o poeta das miudezas, ensinou muito pra gente. Sou aquela pessoa que não tem medo de atuar no avulso. Me importa que um menino, que uma menina gostem de ler, que um bairro tenha a sua primeira biblioteca. Esse é o meu maior legado: apostar em situações que, às vezes, não dão muitos likes, não dão muito dinheiro, mas que transformam pessoas, que vão transformar outras e que vão transformar outros lugares. Acho que, se cada um de nós, leitores e leitoras, gastássemos o nosso tempo em transformar mais um não leitor em leitor, a gente estaria em outro lugar. Se cada pessoa que aprendeu a ler e escrever, pegasse uma que não sabe ler e escrever e a ensinasse, estaríamos em um outro lugar no país. Quero deixar esse legado de falar que não conseguimos mudar o mundo inteiro, mas não é ele  que está pedindo a nossa ajuda. São as pessoas que estão por perto. Quero mudar o perto para a gente conseguir mudar o longe.

GS: Foi o que você fez com o projeto da Biblioteca Caminhos da Leitura, que parecia uma ação tão pequena, mas ganhou uma proporção enorme. Tanto que, até hoje, ela é uma grande inspiração e virou tema do seu mestrado e do seu livro. Você tinha esse sonho de publicar algo?
BSM:
O livro é resultado da minha dissertação de mestrado, que decidi fazer para estimular os jovens a continuarem a estudar depois da graduação. A defesa foi tão bonita que recebi três convites para publicar. Pensei “será que precisa? os meninos participaram ativamente do processo da dissertação”. Mas tem uma parte dela que chamo de “trocas de turbantes”, um espaço onde coloco meu diário mostrando onde a pesquisadora caminhava enquanto não estava efetivamente na mesa de trabalho escrevendo. Aí uma pessoa me disse “tá bom, a dissertação está lá no banco de teses, vai ser acessada para quem entra nesse universo, mas e a turma da troca de turbantes?”.  Isso me convenceu. A gente vai inaugurando alguns lugares: a primeira da família a fazer a universidade, depois a primeira a fazer o mestrado, a primeira a publicar um livro. Isso vai abrindo caminhos para outras pessoas que querem dizer “eu também posso”. Não era um sonho, mas eu vi outras pessoas sonharem e realizarem e consegui sonhar também.

“Precisamos, às vezes, lembrar de quem
fomos para perceber que podemos
mudar, que os outros também podem mudar.
Para mim, a literatura é esse lugar da esperança”

GS: Você quebra vários muros ao mesmo tempo: o racismo que se intersecciona com a desigualdade social e com o machismo. O quanto isso é forte, mas ao mesmo tempo, pesado para você
BSM:
Pode parecer até falso para uma leonina como eu dizer, mas não tenho nenhuma vaidade em ser inspiração. Se eu pudesse, seria a maior parte do tempo plateia, porque adoro ouvir as pessoas, fico sempre emocionada quando vejo os jovens no palco falando de literatura, da importância da biblioteca em suas vidas. Mas compreendi a importância que tem quando compartilho também, quais são os meus processos, e de mostrar para os meninos e meninas que ninguém nasce pronto e que não estamos prontos nunca. Reconhecer os limites é muito pedagógico. O jeito de não ser pesado é se saber falível, ter coragem de dar marcha ré com dignidade. Fazer dos erros aprendizagem. Eu não me coloco no lugar de rainha, da infalível. Expresso que tenho cansaço, tem um dia em que não atendo telefone e não abro e-mail porque reservo para ficar com meus pais idosos, não porque sou obrigada, mas porque quero. Tudo isso nos humaniza, né?

Foto: Daniela Trindade / Divulgação

GS: Temos falado cada vez mais sobre o uso da tecnologia, da inteligência artificial na educação e na nossa vida cotidiana. Como tudo isso pode impactar a literatura e vice-versa?
BSM:
Uma interferência positiva de quem lê literatura é condições de fazer a crítica do que a inteligência artificial te oferece. Ainda não conseguimos tecnologia melhor do que as conversas entre pessoas humanas, né? A linguagem, a competência de criticar é o que nos diferencia dos outros animais. Quem lê literatura tem muito mais possibilidades de usar esses filtros. Quem ainda está preocupado em fazer o ensino da literatura com resumo do livro tem mesmo que ficar recebendo o texto produzido pela Inteligência Artificial, que pode mesmo refinar buscas sobre vários temas. Mas a literatura é a crítica. O risco que corremos é de achar que a tecnologia vai dar conta de resolver todas as mazelas sociais. Ela não acabou com a fome, mesmo com todos os avanços. Ainda vivemos com o absurdo de ter vidas perdidas em guerras ou usar a tecnologia para eliminar pessoas. Se a gente quiser ganhar, não podemos abrir mão da melhor tecnologia que temos que é a construção da linguagem e da conversa.

“Se a gente quiser ganhar, não podemos abrir mão
da melhor tecnologia que temos que é
a construção da linguagem e da conversa.”

GS: Qual é a sua maior esperança?
BSM:
Espero que os jovens amem a política e se interessem pela vida pública. Foi um grande desserviço nos distanciar das decisões das nossas vidas, das nossas cidades, do nosso país. Foi um lugar de desesperança construído achar que tudo que é política é sujo, que são todos iguais. É preciso pensar soluções, das mais simples às mais sofisticadas, para resolver os problemas que a humanidade tem. Sonho muito que, por meio da literatura, do acesso ao livro, das leituras, das bibliotecas, a gente consiga estabelecer mais diálogos intergeracionais. Caminhamos para ser um país de velhos e ainda estamos fazendo mal a eles e às crianças pequenas. Se não tivermos mais pessoas interessadas nas mudanças estruturais da sociedade, enfrentando o machismo, o patriarcado, o racismo, as desigualdades, vai demorar mais para a gente mudar, né?

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