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entrevista com Tamara Saadé

“Prefiro não imaginar como é ter minha cidade destruída. O que mais sinto falta é não temer que tantas pessoas estejam morrendo”

Fotojornalista libanesa convive com a intensificação dos bombardeios israelenses e o medo de ter que abandonar o país. Mas ela ainda tem esperança de um cessar-fogo. Por Graziela Salomão

A fotojornalista Tamara Saabé vive em Beirute e acompanha a intensificação dos ataques contra a cidade | Foto: Camille Cabbabé

A guerra tem, sim, rosto de mulher. E de crianças e idosos que, geralmente, são os que mais sofrem os horrores de combates que envolvem tanques e mísseis que nunca se sabe quando podem chegar à porta de sua casa. Há quase um ano, o mundo assiste, quase calado, ao confronto justificado como um combate aos grupos extremistas Hamas e Hezbollah, mas que, na realidade, já dizimou milhares de civis entre palestinos e libaneses, matou israelenses, destruiu Gaza, e escala para proporções ainda maiores. 

Desde 7 de outubro de 2023, quando o ataque terrorista do Hamas deixou 1.200 israelenses mortos, a tensão no Oriente Médio tem aumentado. A resposta contra o Hamas em Gaza matou mais de 25 mil palestinos. O exército isralense e o Hezbollah também têm trocado fogo através das fronteiras nesse último ano e, nas duas últimas semanas, o governo do premiê Binyamin Netanyahu intensificou a ofensiva, incluindo invasão terrestre, contra o grupo extremista, vitimando mais de 1 mil libaneses. Em resposta, o Irã, que financia muitos dos grupos extremistas, lançou 180 mísseis contra Israel, que prometeu uma retaliação “decisiva e dolorosa”.  

Em meio a todas as respostas e contrarrespostas políticas e militares, há pessoas que sofrem o desespero da incerteza e da próxima noite de ataques. Não são apenas números, mas rostos e histórias como a sua e a minha que, de um dia para o outro, se veem muitas vezes sem casa, sem rumo, sem futuro. Ou com o medo latente a cada noite em que um míssel cruza o céu da cidade, como acontece com a fotojornalista Tamara Saadé, de 27 anos, que já viveu em Nova York por dois anos e trabalhou em veículos como The New York Times, The Washington e Al Jazeera. Hoje, ela mora há 15 minutos de Dahiyeh, bairro de Beirute onde foi morto o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, escuta diariamente os estrondos “que parecem trovões” e compartilha registros e pedidos de ajuda humanitária em suas redes sociais. “Se você mora em Beirute, está perto dos ataques de fato. Não é sobre ter medo de que Israel atinja meu bairro. É nunca sabermos o que vem a seguir”, conta em entrevista por email para o Mulheres e a Cidade

Dos dias antes da intensificação do bombardeio, a fotojornalista sente falta de não ter medo de que tantas pessoas estejam morrendo. Diariamente, vê famílias abandonando suas casas e não sabe se precisará ser a próxima. A esperança é de que a pressão mundial possibilite um cessar fogo. “Espero que as pessoas percebam o quanto seus países estão envolvidos e reajam”, diz. E, acima de tudo, ela espera que todo esse terror acabe.

Registros de Beirute nas últimas semanas | Foto: Tamara Saadé

Graziela Salomão: Em entrevista à Folha de S. Paulo, você disse que “não é preciso concordar com as ações do Hezbollah para saber que o que Israel faz é injustificável”. Como vê o resto do mundo reagindo ao que está acontecendo na região?
Tamara Saadé:
Acho que o resto do mundo foi levado a acreditar em uma narrativa: que as palavras árabes não valem nada. Então, eles são indiferentes ao que está acontecendo. Acho assustador que alguns países estejam prontos para gastar bilhões em uma guerra que está acontecendo a milhares de quilômetros de suas fronteiras, e sejam indiferentes a dezenas de milhares de vítimas, especialmente crianças.

GS: Nos últimos dias, você viu muitas famílias nas ruas, abandonando suas casas. O que sentiu ao encarar essa realidade?
TS:
Senti um soco no estômago. As famílias que vi poderiam ser a minha, meus amigos. Eles são meu povo, de todo o nosso país. Não consigo expressar o tipo de tristeza, raiva e desespero que você sente quando vê seus colegas nas ruas, sem comida e um lar, apenas com algumas sacolas com seus pertences.

“Não consigo expressar o tipo de tristeza, raiva e desespero que você sente quando vê seus colegas nas ruas, sem comida e um lar, apenas com algumas sacolas com seus pertences.”

GS: Você tem medo de ter que deixar o Líbano? 
TS:
Acho que em uma situação de guerra como essa, todos estão assustados e com medo de ter que deixar suas casas para trás. Por enquanto, não tenho planos de deixar meu país. Somos vítimas de ataques israelenses, não cabe a nós deixar o país, mas a eles parar de nos atacar e à Palestina. Se eu precisar sair do país, farei isso apenas com minha família e irei aonde eles estiverem.

GS: Como é sentir que sua cidade pode ser invadida a qualquer momento?
TS:
Gostaria que as pessoas fizessem essa pergunta aos palestinos também. Mas, para responder brevemente, é um tipo de medo que não deveria existir e que pode ser interrompido.

GS: Você mora perto do bairro de Dahiyeh, que sofreu bombardeios intensos nos últimos dias. Sentiu medo de que um dos mísseis atingisse seu bairro?
TS:
Beirute é muito pequena, então todos moram perto de Dahiye. Estou a cerca de 15 minutos do bairro, e isso é considerado longe para nós, libaneses, mas no grande esquema das coisas — e da geografia —, se você mora em Beirute, está perto dos ataques de fato. Tantos ataques aconteceram nos últimos dias, mas na maior parte tenho ficado em casa. Não é sobre ter medo de que Israel atinja meu bairro, é esse medo geral constante de que Israel tem nos atingido sem parar, e nunca sabemos o que vem a seguir.

Registros das últimas semanas em Beirute | Foto: Tamara Saadé

GS: Qual é a sua principal lembrança antes do medo da invasão?
TS:
Prefiro não imaginar como é ter minha cidade destruída. Em geral, o que mais sinto falta agora é não temer que tantas pessoas estejam morrendo.

GS: Qual é seu maior medo se os ataques ao Líbano se intensificarem?
TS:
Receio que Israel continue seu genocídio em Gaza, e que faça o mesmo no Líbano.

GS: Como analisa a vulnerabilidade das mulheres em um cenário como esse de invasão e ataques?
TS:
As mulheres estão sempre na vanguarda do que acontece. Mas, agora, homens, mulheres e crianças estão sofrendo com as ações de Israel.

“É muito difícil tirar minha câmera da bolsa porque não quero lembrar o que estamos passando. Quero que isso acabe.”

GS: Como espera que o mundo reaja?
TS:
Espero que as pessoas percebam o quanto seus países estão envolvidos e reajam boicotando e elegendo autoridades que sejam contra o genocídio na Palestina.

GS: Como fotógrafa, você tem um olhar muito sensível para ver a realidade. Como sente sobre tudo o que está acontecendo?
TS:
É extremamente difícil ver tantas coisas terríveis acontecendo com seu povo, com seu país. E, como fotógrafa, sei que é meu dever documentar e mostrar ao mundo, mas, às vezes, é muito difícil tirar minha câmera da bolsa porque não quero lembrar o que estamos passando. Quero que isso acabe.

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