Lifestyle

entrevista com Nathachi Silva

“Existe uma cultura do medo que deve ser combatida. Tem muitas mulheres viajando solo com sucesso”

Depois de deixar SP para viajar sozinha de bicicleta por quase três anos, a hoje instrutora de educação ao ar livre fala sobre sua jornada em busca de liberdade e uma vida perto da natureza. Por Larissa Saram

Nathachi Silva em Taubaté, cidade onde mora hoje / Foto: Reprodução Instagram

Os rolês pelas ciclofaixas de lazer em São Paulo inauguraram um novo modo de vida para Nathachi Silva. Formanda em design, a hoje ex-moradora da zona leste estava tão cansada de ir e vir do trabalho nas condições degradantes que o metrô e o trem ofereciam, que decidiu comprar uma bicicleta para, vez ou outra, encarar os 50km entre sua casa – o centro da cidade – sua casa pedalando em avenidas sem ciclovia.

O chamado para uma rotina com mais propósito em outro lugar foi ficando cada vez mais forte para a designer. Então, depois de fazer um bom planejamento, ela saiu da casa do pai e partiu de bicicleta para a serra catarinense. A viagem de quase três anos promoveu uma revolução. A Nathachi, que é uma seguidora querida da comunidade Mulheres e a Cidade, contou melhor como foi essa jornada na entrevista a seguir:

Larissa Saram: Como começou a sua relação com a bicicleta?
Nathachi Silva:
Começou como lazer esporádico, usando a ciclofaixa do [ Parque Linear ] Tiquatira, até eu perceber que poderia comprar uma bicicleta simples para não alugar mais. Depois de algum tempo, comecei a usar para ir e voltar do trabalho. Meu maior incômodo com a rotina em São Paulo, morando na zona leste e trabalhando na zona central era pegar trem e metrô lotados em horário de pico. Era um momento de stress que somavam 4 horas perdidas. Junto a isso, eu precisava me exercitar, sempre fui muito ativa, ir trabalhar de bicicleta foi uma ótima solução.

LS: Você é designer, mas hoje também trabalha como instrutora de educação ao ar livre de crianças e adultos. A bicicleta foi responsável por isso?
NS: A bicicleta fez e faz parte de um movimento em direção ao ar livre na minha vida, mas se estabeleceu mesmo por conta da rotina e de uma longa viagem que fiz.

“(…) fazia parte dessa minha
decisão de largar toda uma
vida que eu não me encaixava
mais, urbana, trabalho CLT em
escritório, a casa de meu pai e
a resposta a uma pandemia muito
dura para quem é das atividades
ao ar livre como eu. Chamei de
sabático no início, mas depois
de 1 ano virou realmente
um nomadismo ou estilo de vida”

LS: Como foi essa viagem?
NS:
O início dela foi em 25 de dezembro de 2020, no meu aniversário de 30 anos. Foi uma cicloviagem pelo sul do Brasil, para conhecer um lugar distante, bem diferente do sudeste. Deixei permanentemente a casa do meu pai em São Paulo e aluguei um quarto em Joinville com o objetivo de percorrer a serra catarinense. Fiquei um mês lá e iniciei minha jornada de Joinville para Jaraguá do Sul. Depois entrei nas cidades de uma das mais famosas rotas de cicloturismo do Brasil, o Vale Europeu. Passei por Rio dos Cedros, Benedito Novo, Rodeio e Apiúna. Depois, segui pelas cidades em direção à serra, Alfredo Wagner, onde fiz a primeira parada longa e voluntariado. Depois fui para Santa Rosa de Lima e Urubici, onde morei realmente e fiz várias mini viagens de 3 a 6 dias, a mais significativa foi a da Coxilha Rica, em Lages. Depois veio Grão-Pará e, por último, fiz de Palhoça a Urubici. Entre idas e vindas, foram quase 3 anos viajando.

Nathachi durante a viagem de quase 3 anos que fez pela serra catarinense

LS: O que te motivou a fazer uma cicloviagem dessa?
NS:
Uma série de motivos. Eu já me aventurava bastante aos finais de semana e feriados e já havia feito uma viagem solo em 2019, de 5 dias, o que me comprovou que, com planejamento e cuidados, eu conseguiria, que era possível para uma mulher solo. Também fui demitida em outubro de 2020, mais o menos, e era algo que fazia parte dessa minha decisão de largar toda uma vida que eu não me encaixava mais, urbana, trabalho CLT em escritório, a casa de meu pai (buscava independência) e a resposta a uma pandemia muito dura para quem é das atividades ao ar livre como eu. Chamei de sabático no início, mas depois de 1 ano virou realmente um nomadismo ou estilo de vida.

LS: Como é a sua estrutura de vida hoje?
NS:
Não estou mais nômade, embora viaje bastante a trabalho e a lazer. Faço viagens de bicicleta e pedais longos mais pontuais. Moro em Taubaté, no interior de São Paulo, pois estive em cidades pequenas durante a viagem e não mais me identifiquei com metrópoles. Absorvi valores como deslocamentos curtos, comer verduras da horta, estimular a economia local, mais segurança e mais proximidade com a natureza.

“Até hoje não sei de
onde tirei tanta força e
coragem. E a verdade é
que a gente não volta, um
pedaço de nós sempre
fica lá”

LS: O que essa viagem significou para você?
NS:
Essa viagem ressignificou muita coisa, na verdade. Foi preciso coragem, vivi muitas experiências, os voluntariados foram incríveis – eu pintei plaquinhas, ajudei a servir café da manhã, fazia reparos no quintal e colhi frutas finas. Explorei tudo culturalmente e em aventura também, fiz trekkings de 3 dias solo, por exemplo. Estava com muito peso, por causa da bagagem, mas preferia estradas de terra e trilhas por segurança e contato com a natureza. As estradas eram duras, ermas, as trilhas tinham nenhum apoio por muitos kms. Traçava rotas com a ajuda de aplicativos, relatos e conversas com ciclistas nativos. Até hoje não sei de onde tirei tanta força e coragem. E a verdade é que a gente não volta, um pedaço de nós sempre fica lá.

LS: A gente sempre fala de como ainda é desafiador para uma mulher poder viajar de bicicleta sozinha. Como se planejou?
NS: O medo esteve presente todos os dias em que estava em deslocamento, mas eu me cercava de tudo o que era possível no planejamento. Tracei a rota de acordo com maior número de passagens, tracklogs nos aplicativos Wikilok e Strava ou relatos de ciclistas. Visualizava no Street View para me familiarizar, avisava pessoas que estavam no meu próximo destino e também quem estava na cidade que estava deixando, colocava num grupo de WhatsApp de amigos o roteiro do dia. O suporte no caminho era criado à medida que avançava, algumas vezes por indicação, outras por desconhecidos, então eu analisava a situação e ouvia minha intuição.  Sofri um caso de assédio explícito. Não peguei muitas caronas com desconhecidos, somente essa para evitar uma rodovia sem acostamento na região de Orleans e Lauro Muller. O homem era pai de uma seguidora, pedi apoio via stories na época e, infelizmente, nessa carona ele fez perguntas invasivas, segurou na minha mão tentando forçar maior contato. Pedi para que ele parasse, fiz B.O. na delegacia online da cidade e sei que ele foi chamado para conversar. Medidas drásticas não foram necessárias no momento, mas depois eu demorei alguns dias para retomar a viagem. Conversei muito sobre o ocorrido até me fortalecer e voltar para a estrada.

LS: Como você lidou com o assédio e com o medo?
NS: Eu lido com o medo analisando se é real ou se é psicológico, algo que nasceu dos comentários das pessoas que se baseiam apenas nas notícias ruins da mídia. Acredito que existe uma cultura do medo que deve ser combatida. Tem muitas mulheres viajando solo com sucesso e raramente isso é noticiado, só as atrocidades são noticiadas, precisamos ponderar. Continuo sentindo medo, mas sigo pedalando e pensando coisas boas, fazendo orações, tentando não julgar cada pessoa que passa. É preciso ser um pouco fria e ter jogo de cintura, mas nunca endurecer tanto o coração a ponto de julgar mal todos os homens que cruzam o caminho. 

LS: Qual dica daria para uma mulher que sonha em viajar de bike e ainda não criou coragem?
NS: Começar com pedais por locais com movimento, próximos, que já tenha visitado acompanhada. Pesquisar bastante a rota, o local e conversar com quem fez, com quem mora no local, fazer antes o trajeto de ônibus ou de carro se for possível, ver as notícias da região e estar informada. Estabelecer o que pode dar errado ou ser inseguro e ter um plano em relação a isso. Elimine as desculpas uma a uma. E se mecânica for o problema, saiba que uma bike revisada dificilmente dá problema. E se der, você pode pedir carona ou ajuda.

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